Sobre a educação que realmente transforma

Ter acesso à educação numa sociedade desigual não faz ninguém ser necessariamente mais civilizado, podendo inclusive se converter em um dispositivo que torne a barbárie mais sofisticada

Desde que o caso de Madalena Gordiano recebeu a devida publicidade, no dia 20 de dezembro, por parte da grande mídia, uma série de espantos vieram à tona. Muitas pessoas, em tom de assombro, enfatizaram aspectos inacreditáveis do caso, dado o grau de desumanidade que o caracterizava. “Como puderam explorar o trabalho de uma pessoa desde os oito anos?”; “como puderam transferi-la de uma família para outra?”; “como puderam casá-la com um tio, para se aproveitarem da sua pensão?”; “como puderam privá-la dos recursos mais básicos para se alimentar ou até mesmo para manter sua higiene pessoal?”. Essas são as perguntas que muitos de nós ouvimos ou falamos em diferentes momentos e lugares até agora, ao tentar inventariar o comportamento monstruoso da família Rigueira.

No entanto, nenhuma dessas perguntas se equipara a esta, sem dúvidas a mais espantosa de todas: “como puderam privá-la de educação?”. Era de se esperar que, por ser um professor universitário, Dalton Rigueira encarnasse o símbolo máximo da civilização, dispensando um trato humanitário para com os outros, particularmente com os quais trabalha. Portanto, a barbárie da escravização, ou de situações análogas a esta, aparecia como um símbolo difícil de associar a sua figura.

O espanto decorrente dessa contradição me leva a compartilhar, com você que me lê, a seguinte pergunta: a educação é realmente capaz de nos transformar em seres humanos melhores? Desde o século XVIII, aprendemos com o movimento iluminista que a história do desenvolvimento humano é, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da história da razão. Simplificadamente, a história seguiria uma linha reta, na qual os homens e as mulheres evoluiriam de estágios inferiores – baseados na obscuridade da fé – para estágios superiores – baseados nas luzes da razão. Nesse sentido, a educação se converteria em um instrumento poderoso que nos conduziria da barbárie à civilização.

Essa concepção oculta, entretanto, o fato de que o fenômeno educativo se insere e se articula em um contexto social, o qual participa fortemente de estruturas de poder e dominação que são fundadas a partir de desigualdades de classe, raça, gênero e sexualidade. Numa sociedade capitalista, racista, machista e Lgbtfóbica, a educação, via de regra, se transforma em um meio para perpetuar as hierarquias, determinando a partilha entre aqueles que estão em cima e aqueles que estão em baixo.

A dimensão reprodutora das desigualdades presente na educação mostra os limites da visão – mal deglutida e mal digerida – do iluminismo. Pode-se sustentar, portanto, que o espanto em compatibilizar a figura do professor, por um lado, e do escravagista, por outro, é apenas aparente. Explico melhor: ter acesso à educação numa sociedade desigual não faz ninguém ser necessariamente mais civilizado, podendo inclusive se converter em um dispositivo que torne a barbárie mais sofisticada. Não por acaso, Dalton Rigueira não só privou Madalena da educação como também buscou legitimá-la, com toda arrogância característica dos doutos, afirmando que “não a estimulou a estudar porque não via como ela poderia tirar proveito disso”. Sob este aspecto, é de uma ironia suplementar que o lema do Unipam, onde o escravagista-mor lecionou por mais de uma década, seja: “educação que transforma”. Resta saber para que(m).

Antes de concluir, gostaria de retomar a pergunta anteriormente feita: a educação nos transforma em seres humanos melhores? Suponho que pela resposta já dada, o(a) leitor(a) mais pessimista concluiu que não. Confesso que sou mais otimista. Acredito que a educação é capaz de nos transformar em pessoas melhores, mas, para tanto, é necessário estarmos realmente engajados com um projeto emancipatório integral. Nesse projeto, as transformações educativas precisam ser reflexo de um conjunto maior de transformações sociais, pois, como já dizia Paulo Freire: “a educação não muda o mudo, a educação muda as pessoas e as pessoas mudam o mudo”.

Um comentário

  1. […] Sabemos que o bordão “é como se fosse da família”, um clássico de perpetuação do escravismo no pós-abolição, não é incomum no Brasil. Há várias Madalenas exploradas sob o pretexto de caridade cristã. Embora isso seja algo notório, o esquecimento do escravismo e a dissociação entre ele e a atual exploração do trabalho parecem se beneficiar do argumento da crueldade. Ele consiste em entender que “os tempos são outros” e que a escravização de uma pessoa só pode ser obra da maldade de algozes desumanos, seres totalmente desviantes em relação à sociedade. Essa concepção é errônea. […]

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