A gratidão do povo patense

Em Patos de Minas, os tempos voltam e/ou permanecem com intensidade tal que causam vertigem na moderna cidade que muitos acreditam habitar.

Era três de outubro de 1968, quando a Folha Diocesana, periódico conservador de Patos de Minas, publicou, como de costume, o Boletim Informativo da Câmara Municipal que continha o projeto de lei número 44 daquele ano. Ele será objeto deste texto. Eis a proposição legislativa:

A Câmara Municipal de Patos de Minas decreta:
Art. 1º. Passa a denominar-se de “Rua Dona Serafina” a atual Rua “A” desta cidade, a qual se localiza entre os quarteirões 401-402 130 e 130-A.
§ único – a placa de nomenclatura conterá abaixo do nome, em caracteres menores, os seguintes dizeres: “À mãe Preta Serafina de Jesus, a gratidão do Povo Patense”.
Art. 2º Esta lei entrará em vigor na data de publicação, revogadas as disposições em contrário.
Sala das Sessões, 12 de agosto de 1968.
José Maria Vaz Borges – Vereador

Que o(a) leitor(a) não se engane: o curto projeto não é só um trâmite legislativo de mais de meio século atrás. Abaixo, quando analisarmos a Justificativa do tal projeto, isso se tornará mais claro. Em Patos de Minas, os tempos voltam e/ou permanecem com intensidade tal que causam vertigem na moderna cidade que muitos acreditam habitar. Nas últimas semanas, o caso de Madalena, mulher negra escravizada por uma família branca de “cidadãos de bem” da cidade, tornou-se, como era devido, assunto nacional e vexame local. Trouxe à cena, por conseguinte, a Villa que é a Cidade, demonstrando uma ferida aberta de racismo e escravagismo. Se já não era, ficou óbvio que a tal ferida, supostamente “suturada”, só havia sido escondida com silêncio e ideologia.

Sabemos que o bordão “é como se fosse da família”, um clássico de perpetuação do escravismo no pós-abolição, não é incomum no Brasil. Há várias Madalenas exploradas sob o pretexto de caridade cristã. Embora isso seja algo notório, o esquecimento do escravismo e a dissociação entre ele e a atual exploração do trabalho parecem se beneficiar do argumento da crueldade. Ele consiste em entender que “os tempos são outros” e que a escravização de uma pessoa só pode ser obra da maldade de algozes desumanos, seres totalmente desviantes em relação à sociedade. Essa concepção é errônea.

Decidi trazer ao debate o caso de Serafina especificamente porque ele é mais uma das evidências da amplitude e longevidade de um escravagismo que é profundamente dissimulado e cínico, mas que não consegue não ser escancarado. Contemos essa história.

Na Justificativa do projeto de lei nº 44 de 1968, José Maria Vaz Borges cita integralmente um artigo de Lincoln José de Santana, que, segundo o legislador, escreveria uma série de artigos sobre a genealogia de sua família. Em seu texto, Lincoln fala sobre Serafina – mas também deixa nítido o que é a tal “gratidão do povo patense”.

Segundo ele, ao escrever sobre membros da família, não poderia deixar de lado os “bondosos e quase santos” “pretos escravos que pertenceram à família Santana”. Apesar dessa suposta “agregação” à tradicional família patense, o próprio Lincoln informa que esses escravizados eram conhecidos apenas por seus primeiros nomes. Ou seja, “Domingos, Militão, Marinho, Pedrinho, Rafael e as pretas: Tereza, Rita e a bondosíssima Serafina Francisca de Jesus”, embora colocados num artigo que era sobre a genealogia dos Santana – “como se fossem da família”, para usar um termo dos escravocratas dos dias de hoje – têm como uma de suas primeiras características enunciadas a ausência prática de sobrenome. Se isso te lembra a estranha página de agradecimentos de Dalton Rigueira em sua tese de doutoramento (aquela em que ele agradece aos familiares, a deus e aos porcos), não é por acaso.

Mas a redução das subjetividades dos escravizados, colocando-os como pessoas que só tinham primeiros nomes ou pessoas com o sobrenome “de tal” não é a única forma de manifestação da “gratidão do povo patense”. Lincoln ressalta que Serafina tinha morrido há cerca de três anos e que “prestou muitos serviços a muitas gerações de patenses, depois que foi abolida a escravidão no Brasil.” Segundo ele, Serafina “continuou vivendo aqui, com paciência e humildade que caracterizam essa raça injustiçada, perseguida em muitos países, mas que em nossa nação foi a que verdadeiramente construiu sua grandeza.”

Serafina morreu com 110 anos de idade. Entre outros trabalhos, foi parteira e quitandeira. Como disse Lincoln, foi escravizada por D. Amélia Augusta de Santana, mãe do Capitão Juca Santana. Na narrativa do orgulhoso descendente, Serafina teria permanecido “fiel” aos Santana após a abolição. A descrição ainda acrescenta que ela teria sido “tranquila como a própria tranquilidade” – nunca se exaltando ou se queixando de nada. Imaginemos as consequências de se queixar de uma fantasia como essa da narrativa de Lincoln!

Outra informação curiosa presente na Folha Diocesana é que Serafina foi escolhida, em 1960, a “Mãe do Ano”. Sintomático. Naquela ocasião, o próprio José Maria Vaz Borges fez um discurso dizendo que, além de simples e humilde, Serafina seria “a ‘Negra’ bondosa a serviço dos ‘Brancos’ de Patos de Minas”. O texto é de um cinismo tão grande que chega a ser uma caricatura do mito da democracia racial. E isso não é conclusão minha, mas algo enunciado por Vaz Borges e citado por Lincoln:

“Hoje, felizmente, o Brasil é uma pátria livre dos preconceitos de cor e de raça. Estamos ditando normas de bem viver aos povos que teimam em fazer do preto um ser abominável (…) nós, brasileiros de Patos de Minas, elevamos nossas preces aos pés de Deus, pedindo-lhe que derrame graças e mais graças a todas as mães pretas do mundo.”

É dessa maneira que, falando sobre homenagear Serafina, Lincoln Santana a caracteriza como “querida mãezinha preta, de alma e coração branco”. A homenagem de “Mãe do ano”, então, não foi a criação de um lugar de memória em honra de Serafina, mas uma espécie de subterfúgio da elite branca para “pacificar” a história: é ofertada “em nome dos filhos das mães brancas de Patos de Minas”, que foram criadas com o “leite generoso” de Serafina. A proposta de nome da rua, por sua vez, também foi uma forma de cristalizar uma versão da história que omite o escravagismo e transfigura no espaço essa esquisitice piegas de membros da elite em busca de se afirmarem como generosos, progressistas e compadecidos. Até o modo como se caracteriza a tal rua “A” explicita isso: “uma ruazinha modesta”. Eles operam a “etiqueta” que envolve as relações raciais no Brasil.

Ora, é claro que a memória que se tentava produzir seria de fantasiar que as relações raciais estariam repletas de histórias de sacrifício passivo, humildade e fidelidade cristãs. A essa beatificação da exploração escravista somava-se, então, a generosidade dos ilustrados proponentes de homenagens. É um racismo que se projeta publicamente como o inverso de si, ou, como diria Fanon, é um racismo “assombrado pela má consciência”. Seu objetivo é dos mais óbvios: produzir uma percepção social de que a escravidão passou, de que existiria harmonia e sensatez, de que não se trataria de escravização, mas de maternidade, serviço e abnegação. Em suma, de que bastariam as preces! Como costumo dizer, em referência a um sintomático erro de digitação em um celebrado livro de história local, em Patos de Minas a escravidão não foi abolida, foi “absolvida”!

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