Queremos ser maioria, mas…

Qualquer projeto político de esquerda que busque a efetividade, precisa conquistar a maioria. Porém, antes necessita refletir sobre as seguintes perguntas: quais meios nós devemos utilizar? Quais fins nós almejamos? Não estariam os meios já contidos nos fins?

Como tem sido registrado, nos dois últimos meses, Patos de Minas foi palco de  uma série de manifestações contra Bolsonaro, por enquanto atual presidente da República. Em sintonia com os movimentos em todo o país, a classe trabalhadora patense tem ido para as ruas exigir vacinação em massa, auxílio emergencial digno, respeito às medidas de restrição social e outras medidas que possam conter o avanço da pandemia da Covid-19.

Na medida de nossas possibilidades, nós, do Patos à Esquerda, sempre buscamos cobrir essas manifestações, refletir sobre sua importância e dizer quais lições tirar delas. Toda vez, entretanto, que um de nossos textos acaba rompendo a “bolha”, somos inundados por uma série de comentários desgostosos. “Era só meia dúzia de gatos pingados. ” “Nossa, que multidão! ” “Agora a esquerda derruba o governo mesmo!” Essas são algumas das frases que lemos em redes sociais ou que ouvimos diretamente de pessoas que se identificam com o bolsonarismo, quando elas se deparam conosco ou com nossos argumentos.

A dedução lógica que se saca desse tipo de comentário é que uma estratégia política vitoriosa é aquela que consegue suscitar a adesão da maioria. A obviedade dessa conclusão é facilmente verificável na concretização de qualquer projeto político ao longo da história. Mas, justamente aqui reside o x da questão: quais meios nós devemos utilizar? Quais fins nós almejamos? Não estariam os meios já contidos nos fins?

Uma pista dada por Lucía Sánchez Saornil nos fornece alguns elementos para pensarmos esse conjunto de questões. Para a anarquista espanhola, direita e esquerda são campos completamente opostos, atravessados por princípios radicalmente diferentes. Em suas próprias palavras

“Lá [com a direita], automatismo, submissão absoluta das multidões, anulação da personalidade, acatamento de todos a um; os destinos de todo o povo em uma só mão; enfim, a tirania com todas suas sequelas. Aqui, [no campo da esquerda,] frente a isso, autodisciplina a serviço de uma ideia, respeito mútuo, cooperação, um povo que trabalha seus destinos por si mesmo; em consequência, liberdade. Liberdade que o povo ganha com suas próprias mãos e que não pode nem deve receber como graça de ninguém” [1].

Na direção da trilha aberta por Saornil, podemos dar alguns passos a mais. A direita deseja alcançar a maioria para perpetuar as estruturas de poder e dominação forjadas e/ou retroalimentadas pelo capitalismo. Entre os meios mais utilizados por ela historicamente estão a divulgação em massa de notícias falsas, a exasperação de polarizações ficcionais, o recurso constante aos afetos reativos, a pregação de um moralismo rasteiro e o apelo a um senso sadomasoquista de hierarquia.

Para confirmá-lo, não precisamos ir à Alemanha de Hitler, à Itália de Mussolini ou à Espanha de Franco. Basta evocar a memória recente das manifestações que aconteceram antes e/ou depois da vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018. Em pouco tempo de vida, o bolsonarismo já havia conquistado a maioria. Convertida em massa, essa maioria acabou por se perder e se misturar no meio de uma onda indistinta de camisas amarelas da C.B.F, declamações do hino nacional, marchas militares mal ensaiadas e gritos histéricos contra Lula.

Ainda na direção da trilha aberta por Saornil, continuemos dando alguns passos. A esquerda deseja conquistar a maioria, porém, para que ela própria se liberte das estruturas de poder e dominação, criadas e/ou retroalimentadas pelo capitalismo. Nesse sentido, os meios aos quais devemos recorrer precisam ser coerentes com os fins que desejamos. Ou seja, o recurso à ação autônoma de base, ao protagonismo popular, ao apoio mútuo, ao debate público, ao esclarecimento racional e ao respeito à diversidade são os meios que já prefiguram o mundo igualitário, livre e diverso pelo qual lutamos, ao reivindicarmos o adjetivo de esquerda. 

Os quilombos do Quariterê, as comunas de Paris, os caracoles zapatistas, os cantões curdos são alguns dos exemplos emblemáticos que conformam hoje esse amplo repertório forjado pelo sangue e suor daqueles e daquelas que nos antecederam na luta. Muitos desses episódios, em que foram amplamente empregados os meios acima mencionados, têm servido de inspiração para a luta contra Bolsonaro hoje e para as muitas lutas que se seguirão depois dele.

Por todos os motivos listados ao longo deste artigo, sermos minoria hoje não é o que mais deve incomodar. Pelo contrário, talvez deva até ser louvado como um sinal de resistência frente à adesão acrítica e irrefletida da maioria a um governo genocida, em cuja conta podemos depositar mais de meio milhão de vidas só pela Covid-19. Porém, se pensarmos estrategicamente, devemos nos incomodar seriamente em como nos transformaremos em maioria.

Tal atitude implica não apenas em uma crítica à direita, mas, igualmente, uma autocrítica à esquerda, por não ter retido suficientemente a lição de que os meios utilizados para dominar a classe trabalhadora jamais serão os meios que ela poderá utilizar para libertar a si própria. Para a sua parcela hegemônica, por alguns já chamada de ex-querda, parece ser mais interessante construir candidaturas “vitoriosas” dentro da ordem vigente do que necessariamente criar um projeto político com a ossatura necessária para apontar possibilidades verdadeiras de transformação social.

Com as eleições presidenciais de 2022 já se perfilando no horizonte, a adesão automática da esquerda à estratégia eleitoral já é apresentada como a única alternativa viável para “salvar” o país das “ruínas” que nos legará Bolsonaro. A pesquisa recente que coloca Lula (PT) como vitorioso ainda em primeiro turno aparece como um sinal de alívio. Apesar de qualquer diagnóstico ser prematuro, nunca é bom esquecer o caráter conciliador do lulismo, sempre disposto em fazer pactos de classe, que, no fim das contas, acabam dando a parte maior do bolo, quando não o bolo todo, para a classe empresarial. Refletindo sobre tal traço, há espaço de sobra para duvidar de suas intenções em reverter o caráter neoliberal de muitas reformas colocadas, pelo menos, desde o governo Temer.

Diante desse cenário, a aposta da esquerda precisa ser o retorno à base. O fortalecimento dos movimentos sociais, o estímulo ao poder popular e uma perspectiva anticapitalista, são os únicos meios que nos permitirão conquistar a maioria. Não para usá-la como instrumento cego de nosso projeto (como faz a direita), mas como um meio para que a própria maioria possa realizar o projeto de sua emancipação.


[1] SAORNIL, Lucía Sánchez. O antifascismo, de todos y para todos. Tiempos Nuevos. Barcelona, Julho/Agosto de 1937, tradução do autor.

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