Eixos e refúgios: notas sobre o bolsonarismo para 2022 (parte 1/3)

Como um emaranhado de crenças, por vezes conflitantes, encontra coerência funcional num governo neoliberal/fascista?

É de se esperar que este ano seja absolutamente infernal para qualquer pessoa que se aproxime dos ideais à esquerda. Isso porque ter memória, neste “ano eleitoral”, significará inevitavelmente ser a pessoa “chata” da roda de conversa, uma vez que não faltarão situações em que um doce esquecimento será imposto em nome do “pragmatismo” eleitoreiro ou de uma suposta “civilidade” – para não dizer dos momentos em que isso ocorrerá em nome de uma empatia hipócrita.

É, porém, um esquecimento feliz. Invejo profundamente quem consegue se esquecer do bolsonarismo dos que hoje se dizem comportados liberais, cristãos surpresos, social-democratas ou mesmo “de centro”. Mas esquecer, nesse caso, pode ser tolice. Em 2022, muitos dos que foram entusiastas do fascismo declarado da quadrilha que hoje está no poder dirão ter sido traídos. Uns já procuram amparo na religião, outros no “combate à corrupção” e outros, ainda, dirão ter criado expectativas com a “austeridade” da política econômica do banqueiro Paulo Guedes (aquele sujeito lá mesmo, o das contas offshore!). Passemos, então, a cada um desses refúgios, sem deixar de considerar aquilo que faz com que a besta fascista saia de seu esconderijo e rompa a farsa da civilidade: o anticomunismo.

Este texto, que será publicado em três partes, procura apenas esclarecer alguns pilares da transmutação da “massa” de manobra que elegeu Bolsonaro em 2018. Ele não abarca, por exemplo, a problemática de o governo Bolsonaro ser intrinsecamente um governo de assenhoreado pelos militares – assunto a ser abordado em outra oportunidade. Nesta parte, aborda-se a faceta religiosa do bolsonarismo.

Parte 1: A Civilização do Bezerro de Ouro e o combate ao fantasma do comunismo

Primeiramente, há uma parcela dos bolsonaristas envergonhados que, muito afeita ao cristianismo, supostamente teria se deixado seduzir pela retórica de “deus acima de todos”, do Jair Messias. Para essa fração do movimento (que é maior que o próprio Jair), a figura do líder foi ou é, de fato, um tanto messiânica. É claro que isso poderia ser enquadrado no mito político do herói salvador. Entretanto, criticar apenas o aspecto mítico e fantasioso do bolsonarismo religioso (peço desculpas pelo pleonasmo) é deixar de ressaltar que, na verdade, há interesses bem mundanos por trás do governo catastrófico. 

É importante lembrar que o projeto de poder evangélico, no Brasil, tem como pilares as teologias da prosperidade e do domínio. A primeira remete à promessa de abundância futura para largas parcelas da classe trabalhadora pauperizada, que também é atraída pelas “curas” e resoluções de problemas afetivos e materiais. Contudo, isso ocorre juntamente a um esforço ideológico para legitimar os anseios da pequena burguesia: não importa o quanto haja retrocesso material para a sociedade como um todo, desde que a pequena burguesia (“classe média”) esteja acima de alguém na pirâmide social. Por óbvio, as próprias Igrejas não ficam de fora: o empreendimento evangélico neopentecostal, por exemplo, envolve a exigência de sacrifício (financeiro, de preferência) para a obtenção da graça divina. 

Essas características da teologia da prosperidade se somam às da teologia do domínio, para a qual o cristão não deve apenas ser obediente aos mandamentos bíblicos: precisa travar uma guerra incessante contra os “demônios” que estariam na cultura e nas instituições. Nessa lógica, torna-se necessário ocupar posições de poder em toda a sociedade, especialmente no governo [1]. Acoplados a Bolsonaro, formalmente católico (mas batizado depois na Assembleia de Deus), evangélicos subiram aos altos escalões do Executivo e a bancada da Bíblia tem praticamente uma centena de deputados. Com eles, fazem coro os católicos conservadores. Como esse emaranhado de crenças, por vezes conflitantes, encontra coerência funcional num governo neoliberal/fascista?

Uma das respostas está no anticomunismo. Como não se lembrar, em Patos de Minas, do surto de Edimê Avelar, convocando os fiéis para uma espécie de guerra santa anticomunista? Como esquecer que a campanha de Falcão foi explícita ao trazer para si o eleitorado bolsonarista por meio de agentes que deliravam em extremismo religioso, pregando contra tudo o que fosse minimamente associado à esquerda? Esta Villa de Patos não destoa da dinâmica nacional, em que o comunismo figura, no imaginário cristão dominante, não como uma utopia de sociedade sendo construída com base na teoria e prática do materialismo histórico, mas como mera perversão da família e da propriedade – sendo a família, no fundo, o bastião do patriarcado e da heteronormatividade e a propriedade privada confundida com a propriedade pessoal de uma pequena burguesia que não sabe nem o que é riqueza nem o que é pobreza. 

Nesse meio, a “ameaça” difusa do comunismo serve como aglutinador das diversas tendências. Assim, ocorre que as pautas mais imediatas e materiais dos comunistas (saúde, trabalho, igualdade social, defesa do patrimônio do povo brasileiro, progressividade dos impostos, expropriação de terras improdutivas etc) são transformadas num demônio abominável aos olhos religiosos e pequeno burgueses, que se resumiria às falsificações de comunismo mencionadas acima, sobre família e propriedade – que o próprio Manifesto Comunista já desmente.

Não se deve subestimar o peso dessa forma fervorosa de anticomunismo. Tampouco se deve subestimar a capacidade da propaganda anticomunista de inventar histórias. Como observou Magali Cunha, ainda que a aprovação de Bolsonaro entre os evangélicos tenha diminuído, o setor compõe parcela muito significativa do eleitorado pretendido por Bolsonaro. Enquanto isso, ele utiliza cargos tanto quanto pode para manter os líderes religiosos (charlatães) ao seu lado e faz discursos sobre “costumes” para seduzir crentes ingênuos e amedrontados. Os votos de “deus” ainda estão acima de todos – e são subornáveis o suficiente para que os marqueteiros saibam arrebanhá-los.


Nota:

[1] Sobre o projeto de poder evangélico, ver CASARÕES, Guilherme. Religião e Poder: a Ascensão de um Projeto de “Nação Evangélica” no Brasil? Interesse Nacional. Abr./jun/ 2020. p. 9-16. Disponível em: https://www.academia.edu/download/62794130/Casaroes_-_Religiao_e_poder20200403-100460-allkbb.PDF Acesso em: 25 jan 2022.

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