Votos de Deus: sobre a necessidade de uma pauta anticlerical

Que o Estado não intervirá nas Igrejas, sob um hipotético governo de Lula, não resta dúvida. Mas será que as Igrejas deixarão de interferir no Estado?

Ao longo da corrida eleitoral para a Presidência da República em 2022, Jair Messias Bolsonaro (PL), reeditou a estratégia que lhe concedeu a vitória quatro anos antes (2018) entre o eleitorado evangélico. Em pouco menos de seis meses, usou e abusou da densa rede de comunicação que tinha a seu favor para inundar as redes sociais com uma série de notícias falsas sobre o que ocorreria caso o seu opositor, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), vencesse. Criação de banheiros unissex, legalização do aborto e fechamento de Igrejas foram algumas das peças tragicômicas difundidas e replicadas até a exaustão entre o referido público. 

O resultado material desse trabalho organizado e sistemático de desinformação pode ser visualizado nas pesquisas de intenção de voto entre o eleitorado evangélico, na qual o candidato do PL sempre apareceu claramente à frente do candidato do PT. Em pesquisa realizada recentemente pelo IPEC, Bolsonaro teve 60% dos votos, enquanto Lula teve apenas 34%.

Diante desse cenário nada favorável, Lula, lançou, no dia 19 de outubro, a Carta Pública ao Povo Evangélico. Nela, Lula reafirma seu compromisso com o respeito às liberdades, em geral, e às liberdades religiosas, em particular. Essa reafirmação é acompanhada de um breve histórico, no qual o candidato do PT relembra que, durante as suas gestões (2003-2006 e 2007-2011), adotou várias iniciativas que iam nesse sentido, tais como a Reforma do Código Civil, que assegurou a Liberdade Religiosa no Brasil, bem como o Decreto que criou o dia dedicado à Marcha para Jesus e  o Dia Nacional dos Evangélicos. 

Caso seja eleito, Lula se compromete a respeitar a autonomia das Igrejas, fortalecer a família e defender a vida, pautas que dialogam diretamente com o conjunto de preocupações do referido segmento religioso. A referida carta cumpre, portanto, um objetivo estratégico: reverter, ou ao menos paralisar, o crescimento de Bolsonaro entre o público evangélico. 

No entanto, o fato de o candidato do PT ter que lançar uma carta a esse segmento tendo que assumir compromissos públicos sobre temas que não são de competência religiosa, nos instiga a levantar algumas reflexões sobre o rebaixamento de expectativas na atual conjuntura. Nela, a candidatura, amplamente apoiada pela esquerda,  parece querer rifar os direitos de grupos subalternos para conquistar o apoio de facções fundamentalistas que representam o que há de pior na tradição neopentecostal brasileira.

O primeiro ponto diz respeito à autonomia das Igrejas, com o qual Lula se compromete integralmente. Para tanto, o candidato do PT  afirma que o Estado não deve interferir nas Igrejas, dando a estas a independência para que encontrem a melhor forma de definir os princípios que regem a conduta de sua respectiva comunidade religiosa. Ainda que a título de efeito retórico, entendemos a plausibilidade de Lula se comprometer publicamente com esta pauta. No entanto, verdade seja dita, não há nenhuma evidência de que, caso eleito, o candidato do PT se dispusesse a tamanha ousadia, que não coaduna nem com o seu histórico, nem com o seu caráter conciliador.

Que o Estado não intervirá nas Igrejas, sob um hipotético governo de Lula, não resta dúvida. Mas será que as Igrejas deixarão de interferir no Estado? À luz dessa pergunta, o compromisso em respeitar a autonomia das Igrejas deve se tornar uma preocupação real para a esquerda, pois, não é de hoje que as Igrejas, em especial as neopentecostais, têm se assenhoreado cada vez mais de domínios que, em tese, pertenceriam ao Estado. Com a desculpa de levar adiante um tipo de “guerra santa”, esses fundamentalistas tem se arvorado em definir temas que devem estar presentes na base curricular nacional, intrometer  no estado civil das pessoas, interferir na vida reprodutiva das mulheres, redefinir o estatuto jurídico de povos em extinção, dentre outras audácias que não deixariam nada a desejar ao Estado Islâmico. 

Outro ponto é a defesa da família, pauta que, se mal encaminhada, pode ainda levar mais água para o moinho que move a extrema direita. É verdade que a candidatura do PT acerta ao dizer que o melhor meio de promover a família é permitir a ela as condições básicas de reprodução da vida material. Sob essa ótica, a real preocupação deve se centrar em políticas públicas que garantam o trabalho, o estudo, a alimentação e a moradia, direitos que foram progressivamente destruídos durante a vigência do governo Bolsonaro. 

No entanto, essa defesa abstrata acaba por reforçar o modelo de família nuclear heterossexual, tão glorificado pelos evangélicos, que apresenta uma série de problemas inclusive para aqueles que, em tese, seriam os  seus maiores beneficiários. Em linhas gerais, esse modelo naturaliza uma estrutura parental marcada pela exploração e dominação do homem sobre a mulher, que a toma como um mero objeto de sua posse, seja para perpetuação da prole, seja para satisfação do seu desejo sexual. Não raro, essa dinâmica possessiva se revela em uma série de fenômenos sociais que tem se agudizado sensivelmente, tais como a dependência econômica, a violência doméstica, o estupro marital e, o mais trágico de todos, o feminicídio.

Além disso, essa defesa abstrata acaba por excluir os modelos de família que não se centram ao redor de um homem, uma mulher e seus filhos. Esses modelos que, aliás, são majoritários no Brasil, contemplam uma série de arranjos que vão desde famílias monoparentais até famílias extensas, passando por famílias homoafetivas. Todas essas famílias estão sujeitas, em maior ou menor medida, a uma série de exclusões por não se encaixarem no modelo da família nuclear heterossexual, tais como: o abandono parental, a dupla jornada de trabalho, a dificuldade de inserção do mercado formal e a lgbtfobia. Tais famílias, via de regra tão demonizadas pelos evangélicos, não deveriam também ser defendidas pela candidatura do PT? 

Por fim, mas, não menos importante, está a defesa da vida, pauta que é monopolizada pela direita e da qual a esquerda se tornou totalmente refém. Na sua carta, Lula diz ser a favor da “vida plena em todas as suas fases”, desde a concepção por obra de Deus até a inserção concreta do ser humano em sociedade, o que leva a assumir uma posição pessoal contra o aborto.

O caráter abstrato dessa defesa carrega, igualmente, uma dimensão problemática que gostaria de destacar aqui. Ao subscrever a concepção religiosa de vida, o candidato do PT engrossa as fileiras cristãs que se valem do pretexto de que a vida se inicia desde a sua concepção para legitimar o controle sobre a vida reprodutiva das mulheres. Nesse sentido, cabe questionar a natureza e extensão de sua defesa da vida, à qual não contempla obviamente as mulheres que, por motivos vários, se viram na necessidade de interromper uma gravidez indesejada. 

Parece particularmente problemática tal defesa neste momento, justamente porque inclusive as formas de aborto previstas na Constituição (estupro, anencefália e risco de vida para a gestante) estão sob o fogo cruzado da direita, que se vale tanto de mecanismos formais quanto de mecanismos informais para impedir que as mulheres tenham de fato acesso a esse direito em condições minimamente dignas. Sob este aspecto,  o fato de Damares, então  Ministra da Mulher, Cidadania e Direitos Humanos, ter interferido, no ano de 2020, para que uma menina capixaba de 10 anos, que fora estuprada, não interrompesse a gravidez, confirma de maneira significativa o que quero dizer.

Uma parcela significativa do nosso público-leitor lerá estas linhas com uma espécie de relutância forçosa: mesmo que apoiem Lula, sabem que há uma boa dose de verdade nelas! Talvez essa relutância deixe entrever, entre seus ditos e não ditos, que o problema resida justamente nessa decisão de  travar o embate com o inimigo no campo e nos termos definidos por ele. Dito de outro modo: enquanto a esquerda concentrar todas as suas energias políticas nas eleições, mais dependente ela ficará das exigências feitas pelos grupos hegemônicos que nutrem e são nutridos pelas estruturas do Estado liberal-democrático. 

Dentre esses grupos destaca-se o neopentecostalismo, cuja agenda representa um perigo real para as pessoas trabalhadoras. Combinando políticas neoliberais com políticas  neoconservadoras, os defensores dessa ideologia que se apresenta como religião revelam a face mais violenta do capitalismo contemporâneo. Nele, o recurso ao racismo, ao machismo, à xenofobia e a lgbtfobia aparecem como condições essenciais para a (re)produção da exploração e dominação do status quo burguês. 

Já encaminhando para o fim, gostaria de provocar o público-leitor com algumas perguntas: já não é hora de a esquerda retomar a pauta anticlerical? Os acontecimentos recentes já não deixaram claro que  o combate à burguesia é indissociável da luta contra os clérigos? A criação de uma consciência de classe pode ser atingida sem a libertação das mentes e dos corpos aprisionados pelas Igrejas? Sabemos que o poder das Igrejas neopentecostais não se inscreve no vazio, mas advém da sua capacidade de prover material e espiritualmente a vida seus fiéis, criando entre eles um senso de comunidade, num mundo cada vez mais desagregado e atomizado socialmente. 

Para reverter essa situação, é necessário que a esquerda tome consciência deste dado tão elementar, o qual  já foi sublinhado brilhantemente pelo anarquista Neno Vasco há mais de cem anos: 

[…] para a grande massa trabalhadora, origem e apoio de todas as escravidões como de todas as liberdades, o grande meio de emancipação espiritual é a dura experiência adquirida na grandiosa luta entre o capital e o trabalho, nessa formidável guerra social, que enche por assim dizer toda a história hodierna. É nela que se arruínam todos os ídolos, é nela que o povo vai descrendo de todas as instituições políticas e religiosas (VASCO, Neno. O Livre Pensamento e a Questão Social.A Lanterna. São Paulo.13 /12/1913).

Urge, portanto, que a esquerda retome o trabalho de base junto às pessoas trabalhadoras a partir de suas comunidades, construa redes de apoio material e encontre formas de prover as necessidades espirituais, no sentido amplo do termo. Somente sob tais condições, serão destruídos os ídolos – do céu e da terra – que aprisionam os homens e as mulheres do nosso país. 

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