Por Marcelo Custódio e Diego Silva
Movido por seu costumeiro impulso petulante, o vereador José Luiz Borges decidiu, nesta terça-feira (19), que ele deveria fazer o papel de censor. Adentrando ao recinto da Escola Municipal Norma Borges Beluco, o fanático religioso bolsonarista queria inspecionar o conteúdo de uma aula de ciências e foi (muito corretamente) impedido pela Direção.
Em vez de analisar infraestrutura, merenda, condições de trabalho e condições sanitárias para prevenção ao contágio de Covid, José, elemento estranho em ambiente escolar e/ou acadêmico, preferiu tentar inspecionar o conteúdo de uma aula.
Malfadado em seu objetivo, aparente passatempo de vereador desocupado, José apelou para seus seguidores nas redes sociais, tentando parecer bom moço, cumpridor da Constituição. Alegou ser seu dever constitucional fiscalizar, disse ter registrado Boletim de Ocorrência (ou teria sido o boletim registrado contra ele, o invasor?) e se julgou o grande herói salvador da frágil heteronormatividade.
Ditos conservadores, políticos como José têm uma atuação risível ao se mostrarem facilmente abalados por qualquer coisa que coloque em pane a mente quadrada deles – sendo a diversidade humana um dos principais gatilhos para surtos como o de ontem…
Carentes de atenção, agem como marqueteiros das redes sociais, tendo constante necessidade de inflar os próprios egos e aparentar virtude. Longe de serem ferramentas de transparência, os perfis de políticos como José, Jair, Zema e Falcão são, na verdade, encenações direcionadas ao seus fã-clubes.
Ocorre que o espalhafatoso censor se equivoca duplamente: quanto às questões de gênero e quanto à legalidade.
Ideologia de gênero?
Sua alegação de que naquela aula estaria sendo difundida a “ideologia de gênero” oferece a medida exata da extensão de seu conhecimento sobre o tema: nulo. Explicamos melhor: como bom bolsonarista que é, José é bastante hábil para falar de algo sem saber do que se trata. Como, em nenhum momento, no seu vergonhoso vídeo no Instagram, o nada nobre parlamentar se deu ao trabalho de explicar no que consiste a tal “ideologia” que ele quer denunciar, resta a nós a espinhosa tarefa de fazê-lo.
O termo “ideologia de gênero” surgiu em fins da década de 1990, por parte de grupos neoconservadores. Em larga medida influenciados pela Igreja Católica, tais grupos tinham como propósito desqualificar as pautas que vinham sendo levantadas pelos movimentos feminista e LGBT, voltadas para a criação de uma agenda política mais inclusiva em termos de cidadania.
A ideia levantada por tais movimentos de que categorias como sexo, gênero e sexualidade não eram um dado natural, mas resultado de um conjunto de convenções sociais, caiu como uma “bomba” na sociedade. Sua “explosão” deixava cada vez mais claro que a naturalização do entendimento do que é macho e fêmea; homem e mulher; homossexual e heterossexual servia tão somente para legitimar as estruturas exploradoras e opressivas da sociedade patriarcal.
Para conter o avanço de tais mudanças, os grupos neoconservadores realizaram uma verdadeira cruzada contra o que denominaram, à época, de ideologia de gênero. Segundo esse raciocínio (ou seria delírio?), o reconhecimento de direitos às mulheres e/ou LGBTs passaria pela conversão de meninos em meninas, na doutrinação de heterossexuais para se tornarem homossexuais e na adoção de uma vida sexual promíscua, quando não animalesca.
Desde suas primeiras procedências até os dias hoje, a política neoconservadora assumiu múltiplos alvos. Segundo artigo de Sônia Corrêa:
“Aqui o casamento igualitário será atacado, ali serão as leis de violência de gênero, acolá os direitos das pessoas trans. Gênero e sexualidade na educação estão na mira em toda parte e, por vezes, da cesta também sai o direito ao aborto. Com grande expertise comunicacional, as hidras antigênero navegam em condições políticas singulares, como eleições, colando emoções e significantes flutuantes, incitando pânicos morais, agregando públicos.”
Na sua ânsia por restaurar uma suposta ordem natural – que nunca existiu senão na cabeça de tais fanáticos – o neoconservadorismo oculta as tendências que revelam a face mais virulenta do capitalismo: o neoliberalismo. Não é por acaso que o ataque às leis trabalhistas, a privatização de serviços públicos e a reforma da previdência, aconteça junto com o cerceamento dos debates sobre gênero na escola, tentativas de dificultar o aborto legal e os ataques rotineiros ao casamento civil igualitário. Ainda há gente que se espanta com o fato de que o político do Podemos seja (neo)liberal e (neo)conservador, ao mesmo tempo! Na verdade, não há nada mais óbvio e previsível nisso.
Caso o bolsominion mor de Patos de Minas tivesse prestado mais atenção nas aulas de História, Geografia, Sociologia e Filosofia – parece que nunca foram seu forte – talvez teria aprendido que a importância da discussão sobre sexo, gênero e sexualidade na escola é sobre termos menos crianças estupradas, mulheres menos exploradas, pessoas LGBTs recebendo o devido respeito. Em suma, algo que até mesmo a limitadíssima lógica da democracia burguesa deveria tornar realidade.
Questões de cidadania e legislação
O dever constitucional de um vereador, além de não apoiar atos antidemocráticos, é fiscalizar o Poder Executivo, não o conteúdo de uma aula de um servidor público. Enquanto o governo Falcão deita e rola, praticamente sem oposição na Câmara, José, que nada sabe sobre currículo, pedagogia ou gênero, tenta chamar a atenção para si.
O problema é que, tentando parecer correto, ele menciona a Constituição de maneira equivocada. O dever de fiscalização que essa lei lhe confere (pelo art. 31) é de uma fiscalização sobretudo orçamentária e contábil. Trata-se de fiscalizar as contas públicas e a execução do orçamento. Se há um indivíduo que precisa ser avaliado por José Luiz (no que diz respeito às suas ações públicas), é Luís Eduardo Falcão (e, por extensão, seu secretariado).
Quanto a isso, pensando também em vereadores pouco sabidos a respeito de suas atribuições, a Controladoria Geral da União elaborou uma Cartilha, que explica de maneira mais acessível a função fiscalizadora do vereador (páginas 16, 17 e 18).
Em outras palavras, professores respondem à Secretaria de Educação, não a um marmanjo que acredita presunçosamente que, por ser vereador, precisa “permitir” que algo seja ou não ensinado nas escolas, fazendo isso tentando estar presente em sala de aula, ao lado de adolescentes de 14 e 15 anos.
Vale notar que quem estava fazendo cumprir a Lei eram o professor e o diretor da escola. Eles, sim, agiram em conformidade com normas como o Art. 227 da Carta constitucional, o § 9º do Art. 26 da Lei de Diretrizes e Bases, o Art. 4º da Lei de Combate ao Bullying, os incisos III, IX e X do Art. 2º do Plano Nacional de Educação. Isso para mencionar apenas parte da legislação referente a princípios que são atendidos pelo trabalho com questões de gênero na escola visando educar para o respeito às diferenças. Ou seja, sem adentrar ao conteúdo curricular que prescreve a abordagem do tema em ambiente escolar.
José também desacata a Lei Orgânica do Município. O inciso II do art. 124 dessa lei estabelece que é princípio da educação pública municipal a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”. Ele é idêntico ao inciso II do Art. 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
O chato vereador ainda desrespeita artigo 130 da Lei Orgânica, que diz que
“O currículo escolar respeitará a base nacional comum e seus conteúdos mínimos exigidos, sendo complementado no âmbito municipal com conteúdos programáticos de prevenção do uso de drogas e bebidas alcoólicas, educação para o trânsito, educação sexual, meio ambiente, informática e noções de cidadania.”
Aparentemente, José não considera o respeito às diferenças como condição para a cidadania. Logo ele, que está sempre encenando o “cidadão de bem”! rs
É demasiadamente óbvio que o vereador apenas quis causar estardalhaço para conseguir visualizações e seguidores em rede social. Se estivesse sinceramente preocupado com algo além de sua autopromoção, procederia às medidas cabíveis e às instituições corretas – para se frustrar posteriormente, haja vista que seu discurso não tem fundamento.
O triste é que seríamos poupados do incômodo se o tal José, talvez quando tivesse uns 14, 15 anos de idade, antes de se apaixonar pelo bolsonarismo, tivesse mesmo assistido a uma aula sobre gênero e afetividade. Felizmente, porém, houve uma sonora rejeição ao comportamento imaturo e preconceituoso do vereador, que não está envergonhando a Câmara pela primeira vez.
Esse cara é patético. Se chutar as bolas do Bonoro ele quebra os dentes
Matéria impecável. Desnuda a burrice, ignorância e lambança. De onde saíram estas excrescências? Parabéns!