Ontem foi 7 de setembro, dia em que se comemora a independência do Brasil. A natureza e extensão desse fato que compõe nossa memória histórica pode ser visto e ouvido nas ruas da cidade de Patos de Minas ao longo de quase todo o dia.
Logo pela manhã, assistimos à passeata pró-Bolsonaro, cujo ponto central de circulação foi a Avenida Major Gote. Utilizando carros, motocicletas e caminhões, os adeptos do (ainda) presidente da República, foram para as ruas gritar e buzinar em defesa de um Brasil, supostamente vitimado por um “golpe” arquitetado pelo “comunismo internacional”. Contra os arquitetos de tal “golpe” – que vão desde os ministros do STF até os quadros políticos do PT, passando pelos “ideólogos de gênero” e os militantes “cristofóbicos” – homens e mulheres bradavam palavras de ordem em prol do voto impresso, da intervenção militar constitucional (como se isso existisse) e do fim da obrigatoriedade da vacinação.
De dentro dos seus confortáveis automóveis, a burguesia patense acreditava reproduzir o gesto quase bicentenário do então regente Pedro de Alcântara, que, “às margens do Rio Ipiranga” teria gritado: “Independência ou Morte”. Assim como Pedro teria rompido com Portugal, a elite local acreditava estar dando um passo a mais para romper com o “comunismo internacional”. Nesse delírio, somente quando o rompimento de fato se efetivar é que o Brasil voltará a florescer novamente. Pelo menos isso é que pude deduzir das falas que eles gritavam, isto é, urravam enquanto desfilavam pela principal avenida de Pari… ops Patos.
![](https://i0.wp.com/patosaesquerda.com.br/wp-content/uploads/2021/09/signal-2021-09-07-181709_007.jpeg?resize=768%2C1024&ssl=1)
Não foram uma, duas ou três vezes que pensei, em voz alta, enquanto os automóveis passavam: “Só Freud explica! ” Mas, como não tem Freud, eu mesmo tento explicar. O que esses delírios ocultam ou revelam (depende da perspectiva de onde se olha!) são, na verdade, fatos bem mais comuns do que se pensa, dispensando inclusive o domínio completo da psicanálise para analisá-los. Sob a capa dessa fúria odiosa, localizamos o ressentimento dos poderosos. Esse ressentimento surge entre aqueles que sentem que seus privilégios tradicionais estão desaparecendo por causa da aquisição e/ou ampliação de direitos sociais por parte dos grupos subalternos.
Trata-se do professor universitário que quer continuar escravizando a empregada doméstica negra; do médico que quer continuar traindo a esposa; da blogueira que quer continuar fazendo voos exclusivos; do político que quer continuar despejando sua LGBTfobia; do ruralista que quer continuar perseguindo trabalhadores sem-terra … Mais do que indivíduos específicos, são tipos sociais que alimentam e são alimentados pela pequenez que encerra o horizonte político de Patos. Esse é o Brasil que os cidadãos de bem, ou melhor, que os cidadãos com bens desta cidade foram para as ruas defender e exaltar.
Enquanto os últimos carros que realizavam a passeata pró-Bolsonaro esvaziavam a Avenida Major Gote, no período da tarde, dezenas de pessoas se dirigiam à orla da Lagoa Grande para participar de outro ato. Com faixas nas mãos, bandeiras e megafones no gogó da garganta, militantes de movimentos sociais, partidos e organizações políticas de esquerda se encontraram no ponto central da Lagoa, abrigados por frondosas árvores, para gritar “FORA, BOLSONARO!“
Estavam ali para protestar contra a farsa da independência – a de ontem e a de hoje. Quase duzentos anos depois dessa tal “independência”, o que teríamos, afinal, para comemorar enquanto classe trabalhadora? A falta de emprego? Ver o prato de comida vazio? Não ter um teto sobre a cabeça? A demora na vacinação? A tripla jornada de trabalho das mulheres? O genocídio da população negra e indígena? A discriminação das pessoas LGBTs? Naquele dia, essas foram algumas das muitas perguntas levantadas pelas diversas vozes que se ergueram para apontar a relação umbilical do bolsonarismo com o capitalismo, o machismo, o racismo e a LGBTfobia.
![](https://i0.wp.com/patosaesquerda.com.br/wp-content/uploads/2021/09/signal-2021-09-07-181709_009.jpeg?resize=768%2C1024&ssl=1)
Ali realmente estava o Brasil que eu gostaria de comemorar: o Brasil em que cabem todos os brasis: o da classe trabalhadora, o das mulheres, o dos negros, o dos indígenas, o dos LGBTs… das pessoas que, mesmo em meio a tantas dores, sofrimentos e percalços ainda insistem em construir um Brasil igualitário, livre e diverso. Em algum momento do ato, um companheiro retomou este pensamento, mas, o finalizou reafirmando a necessidade de reunir todo o Brasil novamente, apelando para que todas as pessoas ali presentes se mobilizassem para que, em 2022, retirássemos, por meio das urnas, o fascista-mor do posto máximo do executivo.
Em relação a isso, gostaria de estabelecer uma crítica fraternal. Ora, alguma vez o Brasil já esteve unido? O recurso ao voto já permitiu a conquista dos (sempre parcos) direitos sociais que os grupos subalternos têm? É possível pensar uma democracia, no sentido significativo do termo, sem eliminar as profundas desigualdades de classe, raça, gênero e sexualidade que estruturam nossa sociedade? Para mim, a resposta é não!
A agudização das polarizações que vivenciamos nos últimos anos traz uma preciosa lição, que tem passado despercebida por grande parte da esquerda: os de baixo nunca encontrarão sua libertação recorrendo aos esquemas criados pelos de cima. São eles próprios que devem forjar outros esquemas, pela sua ação autônoma e direta.
![](https://i0.wp.com/patosaesquerda.com.br/wp-content/uploads/2021/09/signal-2021-09-07-181709_022.jpeg?resize=1024%2C768&ssl=1)