Monumentos da cultura, Monumentos da barbárie

A estátua erguida em homenagem a Borba Gato nos fala muito mais de como a sociedade presente está preocupada em criar uma memória que celebra os feitos criminosos do líder bandeirante do que realmente ser um registro histórico dele.

No dia 24 de julho, às 15 horas, membros do Coletivo Revolução Periférica atearam fogo na estátua de Borba Gato, situada na Zona Sul de São Paulo. Durante os cinquenta minutos em que as chamas consumiram o monumento dedicado ao “ilustre” bandeirante, as redes sociais foram tomadas por uma série de tweets, posts e stories destacando um lado da história que, via de regra, desagrada às elites nacionais. Tais publicações ressaltaram o envolvimento do líder bandeirante em atividades como roubo de metais preciosos, genocídio das populações originárias, escravização das pessoas negras e tráfico de mulheres indígenas.

Ações como essa que teve lugar no penúltimo sábado, na capital paulista, não são novidades. Vimos situações similares em Charlottesville (Estados Unidos) a propósito da ida para o museu da estátua do general confederado Robert King, no ano de 2017; em Santiago (Chile) a respeito da destruição da sede da Igreja de Assunção, durante as revoltas sociais de 2020; em Bristol (Inglaterra), no mesmo ano, em torno do lançamento da estátua de Edward Colston, traficante de escravizados, nas águas do principal rio da cidade.  Se fossemos continuar, a lista seria infindável…

O que todas essas ações nos mostram é que as cicatrizes deixadas pela experiência imperialista estão longe de ser um capítulo superado na história das ex- metrópoles e ex-colônias. As desigualdades de classe, raça, gênero, região e tantas outras são sensíveis à observação quando analisamos o cotidiano de exploração e opressão das pessoas subalternas, quer elas estejam nos países “desenvolvidos”, ou nos países em “desenvolvimento”, como nos sugere o vocabulário “bem-comportado” do mundo neoliberal.

No vídeo acima, Munís Pedro Alves apresenta a história concisa dos bandeirantes e suas relações com indígenas e jesuítas. Através da bibliografia, sobretudo com a obra “Negros da terra” do historiador John Monteiro, estabelece contrapontos a algumas teses da história tradicional e aos mitos heroicos construídos pela memória oficial paulista sobre os bandeirantes.

Em face desse cenário, gostaria de levantar algumas indagações sobre o papel da memória. Elas podem ser formuladas da seguinte maneira: como a memória legitima esse passado em nosso presente? Destruir a memória dominante equivale a destruição da memória em si? Como operacionalizar a memória de uma maneira que nos permita um olhar mais crítico e reflexivo sobre nosso lugar na história? Responder essas perguntas, ou melhor, formulá-las, é a maneira que encontrei para aportar o meu grão de areia no imenso oceano que a questão parece encerrar.

Como se sabe, a memória é a capacidade humana de atualizar o passado no presente, permitindo que os saberes, técnicas, comportamentos e sensibilidades construídas pelas gerações passadas sejam transmitidos para as gerações presentes. Dentre as múltiplas manifestações – materiais e simbólicas – da memória está o monumento, que é todo artefato intencionalmente criado pelo ser humano. Um monumento pode ser uma placa, uma tumba, uma pira, um livro. Mas, sua forma tradicional geralmente é a estátua. Sua função é servir como um lembrete, nos advertindo de onde viemos, de quem somos ou de para onde vamos. Possui, em suma, uma “função identificatória”, como escreve Françoise Choay[2].

Gostaria justamente de me deter na função identificatória do monumento, sublinhando a dimensão política que o envolve. O monumento não existe no vazio, mas em um conjunto de relações de poder. Nesse sentido, um artefato que nos lembra de algo ou de  alguém se converte num dispositivo ideológico que as classes dominantes utilizam para legitimar sua narrativa histórica, em detrimento da narrativa histórica das classes dominadas.

Não por acaso, a atualização do passado no presente que os monumentos evocam tende a exaltar um lado da história que ignora os conflitos, potencializa as harmonias e apresenta todos os indivíduos perseguindo um mesmo projeto.  “ Lutadores da união de todo o povo”; “Desbravadores responsáveis pela corrida civilizatória”; “Patriotas desinteressados que criaram o país” são apenas alguns dos muitos lugares comuns que emergem aqui e acolá nos livros de história, reportagens jornalísticas ou em conversas pretensamente desinteressadas, quando o assunto é a ação dos líderes das “bandeiras” em direção ao sertão  “selvagem”.

A força dessa narrativa histórica se torna perceptível quando a memória dominante é atacada, como ocorreu no último sábado em razão do incêndio da estátua de Borba Gato. Em tais ocasiões, um número significativo de pessoas – inclusive da própria esquerda – se apressa em fazer condenações. Para elas – não sabemos se por ignorância, má-fé ou um misto das duas coisas – a identificação com a classe dominante já foi naturalizada e interiorizada a tal ponto, que a memória dominante passou a ser sinônimo da própria memória.

A reação de tais pessoas – que se julgam especialistas em história, mas nunca nem passaram perto de um curso – ignoram um fato básico: os monumentos não são registros espontâneos que surgem do passado. Na maioria dos casos, eles são construídos no presente que lhe sucedeu, com o intuito de mistificar a história segundo a versão que lhes é conveniente. O exemplo da estátua de Borba Gato é emblemático nesse sentido. O líder bandeirante viveu durante o século XVII e a estátua feita em sua homenagem foi erguida apenas três séculos depois, ou seja, em 1963. Em suma, ela nos fala muito mais de como a sociedade presente está preocupada em criar uma memória que celebra os feitos (criminosos) de Borba Gato do que ser um registro histórico dos feitos (repito, criminosos) de Borba Gato.

Por isso, causa estranheza também o argumento de que a destruição da memória – dominante, ressalte-se bem – leve automaticamente a destruição da história – só se for a dominante, não é mesmo? – Destruir (guardar, substituir ou ressignificar) os monumentos –  que também são documentos que historicizam o legado colonial – não é apagar o passado, mas, sim tentar percebê-lo  por outras vias. Afinal de contas, o tal passado que dizem que queremos apagar nem sequer existiu, ou pelo menos, não da forma que insistem em nos contar.

Uma leitura a contrapelo dessa narrativa histórica introduzida pela memória dominante nos conduz a Walter Benjamin, que se ocupou de tal questão ainda nas primeiras décadas do século passado. Nas suas Teses sobre o Conceito de História, o filósofo marxista nos adverte que a função identificatória dos monumentos beneficia diretamente os dominantes, tanto os de hoje quanto os de ontem. A esse propósito, ele escreveu:

“Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão”[3].

Nesse sentido, a pretensa universalidade de monumentos como o de Borba Gato só se sustenta a partir de uma operação ideológica que apresenta os interesses dos dominantes como se fossem os interesses dos dominados, em suma de toda a sociedade. Daí o horror que despertam nas pessoas engajadas com a história dos vencidos. Sabem, alguns por intuição, outros por estudo, que: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”[4].

Essa sabedoria, da qual nos fala Benjamin, reaparece a cada vez que as classes dominadas emergem no espaço público questionando os monumentos que reafirmam a memória dominante. A cada estátua incendiada,  a cada busto decapitado, a cada placa de rua  trocada,  a cada muro grafitado, a cada performance pública realizada, somos forçados a entrar em contato com outros “mundos”, cuja destruição foi uma condição indispensável para que o “mundo” que nós conhecemos fosse construído. Esse contato foi sintetizado em uma imagem poderosa por Élida Abreu, liderança do Movimento Negro Unificado de Patos de Minas. Em um post desde o seu perfil em uma rede social, ela nos lembrou que:

“Nas religiões de matrizes africanas o fogo simboliza transformação, mudança, renovação. Eu particularmente sou do protesto pacífico, mas é aquilo né: notas de repúdio já não nos contemplam mais. Cada canto deste país lembra uma mazela sofrida pelo povo preto. Somos 54% da população, e sempre digo queremos reparação e não vingança. Borba Gato queima! 54%… Já pensou na quantidade de “fogo”?[5]

Estimulado por essa imagem sugestiva, finalizo o texto desejando que essas chamas, que estão consumindo o velho mundo, sejam as mesmas criem o novo mundo que todos e todas nós carregamos em nossas mentes e corações.

PS: No dia 28 de julho, o militante conhecido como Galo, que organiza o movimento dos entregadores de aplicativo, e sua companheira Géssica foram presos arbitrariamente por participação no ato de queima da estátua de Borba Gato. A essa ação autoritária, nosso repúdio, e aos companheiros, nossa solidariedade.


[1] CHOAY, Françoise. O patrimônio em questão: antologia para um combate. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011, p. 12.

[2] BENJAMIN, Walter. Teses sobre o Conceito de História. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. In Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.225.

[3] BENJAMIN, Walter. Teses sobre o Conceito de História. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. In Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.225.

[5]ABREU, Élida. [Comentário pessoal]. Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/elida.abreu.98/posts/1174047739760063 . Acesso em: 30/07/2021.

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