Liberal na economia, conservador na política

O espanto diante da “brincadeira” feita pelo vereador Vitor Porto só se sustenta à custa do desconhecimento ( involuntário ou não) das muitas afinidades existentes entre liberalismo e conservadorismo.

No dia 13 de janeiro, o vereador Vitor Porto (Cidadania) divulgou, em suas redes sociais, um vídeo que lhe rendeu um alcance inesperado. Nele, o debutante no legislativo patense ironizava o colega José Eustáquio (Podemos), pelo fato do ramal telefônico de seu gabinete ser 24. A atitude foi alvo de uma série de questionamentos por parte de seus seguidores, que lhe fizeram o favor de apontar o caráter claramente homofóbico de seu comportamento. No mesmo dia, o recém-eleito legislador pediu desculpas, apagou o vídeo e disse não ser sua intenção ofender ninguém com aquela brincadeira.

As reações à atitude homofóbica de Vitor Porto oscilaram. Os mais coniventes disseram se tratar de uma brincadeira inofensiva, instrumentalizada pela patrulha militante do politicamente “correto”. Os menos tolerantes, com toda razão, disseram se tratar de um crime cuja punição já é prevista em lei. Um terceiro grupo, não tão tolerante nem tão conivente, reagiu com espanto: afinal de contas, como um político liberal pode ser tão conservador? Gostaria de reter minha análise justamente nesta reação.

Uma rápida revisão sobre os princípios básicos do liberalismo do século XVIII é suficiente para mostrar que sua eventual incompatibilidade com o conservadorismo é apenas aparente. Grosso modo, o credo liberal parte do pressuposto de que a história da humanidade é cronologicamente dividida em dois estágios: estado de natureza e sociedade civil. No estado de natureza, a humanidade estava em completa igualdade, agindo apenas em conformidade com as leis instituídas pela natureza. Estas leis seriam o direito à vida, à propriedade privada, à liberdade de expressão, bem como o direito à defesa.

Na medida em que cada indivíduo é colocado como o juiz de si, o risco de um estado de guerra emergir é grande. Para evitar que isso ocorra, faz-se necessário fundar a sociedade civil. Para isso, os indivíduos firmam um contrato em que abrem mão do direito de fazer justiça com as próprias mãos. Delegam, então, ao Estado a função de garantir que todo o indivíduo possa desfrutar de sua propriedade, sem temer por sua violação por parte de ninguém.

Apesar das suas pretensões igualitárias, o liberalismo se coloca de modo ambíguo frente ao estatuto dos sujeitos do contrato social, ponto de partida fundante da sociedade civil. Por um lado, ele assume a igualdade jurídica, reconhecendo esse sujeito como o proprietário no sentido lato do termo ( propriedade de seu corpo, sua mente e seu trabalho ). Por outro lado, ele assume a desigualdade material, reconhecendo que nem todos podem ser esse sujeito, uma vez que não são proprietários ( nem do seu corpo, nem da sua mente, nem do seu trabalho).

Tal premissa oculta, sob a máscara da universalidade, um fato que corresponde apenas a uma parcela da sociedade, que, coincidentemente, é formada pelos homens/brancos/burgueses/heterossexuais, ao passo que exclui a maioria da sociedade, que é formada por mulheres/negros/trabalhadores/homossexuais. Nesse sentido, só o primeiro grupo teria acesso à condição de membro pleno da sociedade civil, ao passo que o segundo seria apenas membro dela, porém de modo subordinado. Como se sabe, a alteração desse quadro, ainda que parcial, demorou décadas para ocorrer.

 Embora o liberalismo busque se apresentar enquanto um avanço em relação ao absolutismo, tentando colocar um limite na intervenção estatal dentro dos espaços privado e público, nota-se que a quantidade e a qualidade desta intervenção sempre se revelaram de modo contraditório. Não se trata, portanto, de entender o Estado como uma instituição ausente, mas, sim de compreender como o Estado se presentifica e do lado de quem ele se posiciona quando os conflitos sociais entram em cena.

Para um liberal, por exemplo, sempre foi comum demandar a ausência do Estado  na hora de checar o cumprimento de uma legislação trabalhista por parte da burguesia,  permitir um branco a escravização de pessoas negras, legitimar um homem matar sua esposa em caso de traição e autorizar o espancamento de  homossexuais no espaço público. Mas, ao mesmo tempo, sempre foi comum para um liberal apelar para a presença do Estado  para reprimir greves operárias, segregar pessoas negras, proibir as mulheres de exercer trabalho remunerado ou criminalizar a homossexualidade como delito.

Para finalizar, o espanto diante da “brincadeira” feita pelo vereador Vitor Porto só se sustenta à custa do desconhecimento ( involuntário ou não) das muitas afinidades existentes entre liberalismo e conservadorismo. Não é por acaso que na última década, o Brasil e o mundo tenham assistido a volta do neoliberalismo e do neoconservadorismo praticamente juntos. A flexibilização de leis trabalhistas, as reformas previdenciárias e as privatizações de serviços públicos estão acontecendo ao mesmo tempo que se busca dificultar o direito já previsto em lei das mulheres ao aborto,  cercear o debate sobre sexualidade nas escolas e minimizar a história de luta do movimento negro. Isso não é um dado meramente fortuito. Trata-se da simples constatação de que o capitalismo precisa do racismo, do machismo e da Lgbtfobia para se produzir e se reproduzir permanentemente.

No passado, essas afinidades estiveram na antessala de vários regimes autoritários e/ou totalitários. Será que elas ficaram mesmo restritas ao passado?

Um comentário

  1. Parabéns ao Diego Silva! Muito bem estabelecida a relação entre liberalismo e conservadorismo no texto.

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