As enchentes do Rio de Janeiro nas crônicas de Lima Barreto

Tragédias climáticas e sociais de ontem e de hoje

Por Patrícia Acs

Em sua breve vida, de 1881 a 1922, Lima Barreto acompanhou atentamente as mudanças, os acontecimentos e os jogos de poder que marcaram a sua época. Não só acompanhava, mas escrevia sobre. Cultivando o que nomeava de “literatura militante”, o escritor escreveu um número bastante significativo de crônicas que abordavam os problemas da cidade do Rio de Janeiro. Sempre com uma perspectiva crítica, temperada com a ironia que perpassa quase toda a sua escrita. 

Nas primeiras décadas do século XX, o Rio Janeiro passava por reformas e modificações em vários aspectos. Conhecido como “bota-abaixo”, o conjunto de reformas de Pereira Passos, que seguia a linha geral da política do então presidente Rodrigues Alves, objetivava trazer a “modernização” para a cidade do Rio, capital do Brasil naquele período, para acomodá-la ao modelo das “grandes” capitais ocidentais – principalmente, Paris. Os decretos do “bota-abaixo” também previam medidas no âmbito moral, uma padronização do que era julgado “civilizado”, para controlar o comportamento das pessoas nos espaços públicos. Decretadas de cima para baixo, as reformas não passavam por debate com o povo nem consideravam as condições de vida da população mais pobre. Pelo contrário, foram orientadas por diversos interesses das elites e ideias “higienistas” que projetavam o embranquecimento da população e das cidades brasileiras.

Atento a tudo, Lima Barreto questionava os reais interesses e jogos de poder por trás das reformas. Sobretudo, apontava como as reformas ignoravam a população e produziam modificações artificiais nas cidades, enquanto transformações concretas e estruturais, que poderiam trazer melhorias de vida para o povo, não ocorriam. O escritor promovia um debate público a partir de suas crônicas. Nessa toada, publicou, no dia 19 de janeiro de 1915, no jornal “Correio da Noite”, a crônica “As enchentes”.

Logo de início, apresenta o problema: “As chuvaradas de verão, quase todos os anos, causam, no nosso Rio de Janeiro, inundações desastrosas”. Em seguida, localiza as consequências: “Além da suspensão total do tráfego, com uma prejudicial interrupção das comunicações entre os vários pontos da cidade, essas inundações causam desastres pessoais lamentáveis, muitas perdas de haveres e destruição de imóveis”. Além disso, indica a falha: “De há muito que a nossa engenharia municipal se devia ter compenetrado do dever de evitar tais acidentes urbanos”.

Com base ideológica socialista e anarquista, como apontam seus textos e as biografias sobre o autor, o escritor não para apenas na denúncia. O cronista identifica a responsabilidade do Estado sobre o problema das enchentes, contrapondo uma demanda real às artificialidades observadas, muitas vezes, nas reformas. Com ironia, ataca: “O prefeito Pereira Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio”. Assim como em outras crônicas, em “As enchentes”, observamos uma concepção social subjacente à crítica barretiana quanto aos problemas urbanos. Por essa concepção, as cidades são estruturadas social e politicamente, a partir dos sistemas de poder. Por isso, os problemas gerados pelas enchentes, como outras demandas urbanas, não são deixados de lado somente por incompetência ou falta de atenção dos governos. Eles são agravados, consequentemente, por projetos políticos que orientam o que deve e não deve ser prioridade, o que se quer e o que não se quer para a cidade. Projetos que atendem e se guiam pela lógica do capital e do Estado.

É nesse sentido que o cronista conclui sua crônica: “Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com os aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social”.  Na crônica “O Conselho Municipal e a arte”, de 08 de agosto de 1920, publicada no jornal “Hoje”, Lima Barreto também questiona os fins das obras promovidas, em contraponto às necessidades do povo. Diz o cronista que o teatro já construído na cidade :

“Tem servido para que uma burguesia rica, ou que se finge de rica, exiba suas mulheres e filhas, suas jóias e seus vestidos, em espetáculos de companhias estrangeiras, líricas ou não, para o quê o pobre mulato pé-no-chão, que colhe bananas em Guaratiba, contribui sob a forma de subvenção municipal às referidas companhias. Povo? Níqueis…”. 

Conforme a perspectiva barretiana, além de atender a interesses elitistas, as obras excluíam o povo mais pobre de seus espaços, pois já eram projetadas com uma visão excludente. Isso fica visível no trecho: “Veio o Passos e tratou de construir o teatro. A justificativa de tal construção era a educação artística do povo; Passos, porém, com quem menos se incomodava, era com o povo”. O escritor identifica a classe que tem poder de decisão sobre as reformas quando apresenta Pereira Passos do seguinte modo: 

“Homem de negócios, filho de fazendeiro, educado no tempo da escravatura, ele nunca se interessou por semelhante entidade. O que ele queria, era um edifício suntuoso, onde os magnatas da política, do comércio, da lavoura e da indústria pudessem ouvir óperas, sem o flagelo das pulgas do antigo Pedro II. Era só isto”. 

Com suas crônicas, Lima Barreto apontou não apenas para os problemas urbanos, mas, também, para as estruturas de poder subjacentes, denunciando o papel do Estado nesse processo. Como disse na crônica “A biblioteca”, publicada em 13 de janeiro de 1915, 

“O Estado tem curiosas concepções, e esta, de abrigar uma casa de instrução, destinada aos pobres-diabos, em um palácio intimidador, é das mais curiosas. Como é que o Estado quer que os malvestidos, os tristes, os que não têm livros caros, os maltrapilhos ‘fazedores de diamantes’ avancem por escadarias suntuosas, para consultar uma obra rara, com cujo manuseio, num dizer aí das ruas, têm a sensação de estar pregando à mulher do seu amor?”.

Projeto do Estado, na visão de Lima, os “palácios intimidadores” excluíam o povo desde sua arquitetura. Para Lima, as mudanças da cidade deviam atender às necessidades do povo, serem estruturais e estarem inseridas em um conjunto de outras mudanças sociais.

As enchentes continuam um problema para o Rio de Janeiro e para muitas outras cidades do Brasil. Mesmo 100 anos depois das crônicas de Lima Barreto, ainda observamos problemas que se repetem, com consequências cada vez mais trágicas, porque são negligenciados pelo Estado e seus governos, como denunciou o escritor. Recentemente, em janeiro de 2024, o Rio de Janeiro teve mais um desses desastres, atingindo diretamente o povo pobre e negro. Nesse tempo que separa o escritor e a tragédia climática recente, a exploração capitalista, a negligência e projetos políticos do Estado intensificaram o número de tragédias climáticas, assim como as suas consequências sociais. O fato do ano de 2023 ter sido o mais quente em muitos anos na série histórica do Brasil, o aumento do volume de chuvas e outros “desastres” ambientais estão relacionados com desmatamentos, queimadas e exploração capitalista do uso da terra e dos recursos naturais. São resultados de anos de capitalismo. A falta de estrutura das cidades tem origem nesse mesmo sistema de exploração e desigualdade. Quem continua a pagar a conta e a sofrer é a classe trabalhadora.

Se Lima Barreto soube identificar as origens dos problemas, soube, também, indicar os caminhos de saída. Crítico aos governos, compreendia que a via da real transformação social não se daria por dentro do sistema, “mudar só de nomes de governantes nada adianta para a felicidade de todos nós” , como disse na crônica “Palavras dum simples”. O escritor sintetiza essa via avançada de luta na crônica “Sobre a carestia”, publicada em 15 de setembro de 1917, no jornal “O Debate”, quando desfere: 

“O povo até agora tem esperado por leis repressivas de tão escandaloso estanco, que é presidido por um ministro de Estado. Elas não virão, fique certo; mas há ainda um remédio: é a violência. Só com a violência os oprimidos têm podido se libertar de uma minoria opressora, ávida e cínica; e, ainda, infelizmente, não se fechou o ciclo das violências. […] Não há outra esperança, pois eles dominam todo o mecanismo legal – o Congresso, os juízes, os tribunais – e tudo isto só fará o que eles quiserem, e seria vão socorrermo-nos desse aparelho”.

Ainda hoje, temos o desafio de avançar na luta contra a exploração capitalista, o poder do Estado e pela construção de um mundo novo. Caso contrário, estaremos, cada vez mais, sujeitos ao esgotamento do mundo para o enriquecimento dos de cima. Se os problemas sociais denunciados e problematizados por Lima Barreto continuam a ser realidade no século XXI, significa que não houve transformações estruturais profundas. Cabe a nós fazer o balanço social e político e construirmos novas saídas.  

Referências

AZEVEDO, André Nunes de. A Reforma Urbana do prefeito Pereira Passos e o ideal de uma civilização nos trópicos. In: Intellèctus. Rio de Janeiro, Ano XIV, n. 2, 2015, pp. 72-87.

BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2002.

BARRETO, Lima. Antologia de artigos, cartas e crônicas sobre trabalhadores. Organizado por Antônio Augusto Moreira de Faria e Rosalvo Gonçalves Pinto. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2012.

______________. Toda crônica: Lima Barreto. Apresentação e notas: Beatriz Resende. Rio de Janeiro: Agir, 2004, vol. II (1919-1922).

______________. Cronista do Rio. Organização: Beatriz Resende. Belo Horizonte: Autêntica editora, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2017.

LOPES, Milton. Um anarquista carioca: o escritor Lima Barreto e suas ligações com o movimento libertário. In: Emecê – Boletim do Núcleo de Pesquisa Marques da Costa. Rio de Janeiro, Nº 22, 2012.

NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.RESENDE, Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. São Paulo: Autêntica Editora, 2016.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *