Terceirizações, Organizações Sociais e Mundo do Trabalho – parte 2/2

Sobre o histórico e os malefícios das terceirizações

Conforme definido na parte 1 deste artigo, proponho-me hoje a historicizar resumidamente as terceirizações no Brasil, explicitando sua relação com o projeto neoliberal de precarização do trabalho. 

Contexto histórico das terceirizações

Nos dias atuais, a terceirização se manifesta pela permissão estatal para que empresas façam o agenciamento de trabalhadores(as) para que prestem determinados serviços. Mas esse tipo de atividade econômica, associado ao neoliberalismo, tem raízes profundas. Diversas formas de terceirização podem ser observadas ao longo da história do Brasil. Por exemplo, a Vergueiro & Cia., empresa do senador Nicolau Campos Vergueiro, operou uma forma de terceirização ao agenciar imigrantes estrangeiros para trabalharem nas lavouras paulistas [1]. O modelo foi considerado uma forma de escravidão por dívida. Não por acaso, em 1856, houve revolta nas fazendas do senador.  

O exemplo serve para nos lembrar que, apesar da urgência da conjuntura, não é de hoje que as terceirizações ameaçam os(as) trabalhadores(as) (e os serviços públicos) no Brasil. Nossas preocupações atuais remetem, porém, a um contexto mais recente. As Organizações Sociais e a dispensa de licitação para elas foram instituídas em 1998, sob o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. Naquele contexto, privatizações (Vale e Telebrás, por exemplo), reformas (fracassadas ou não), apagão e empréstimos com o Fundo Monetário Internacional eram alguns dos acontecimentos mais notórios. Afinal, sob o pretexto de estabilização econômica, numa época que Rubens Ricupero, outro liberal, considerou [2] ingenuamente o ponto máximo, o “apogeu” do liberalismo, não era estranho que surgisse a ideia de terceirizar as obrigações do Estado.

A década de 1990 pode, em partes, ser interpretada como um período de relativização dos princípios da Constituição de 1988. Isso vale especialmente para os pontos que estabeleciam uma estrutura estatal sólida e voltada para a efetivação de direitos. 

A década seguinte, sob Lula, ficou marcada por uma ampliação democrática da República. Marcaram seu governo as políticas de inclusão social, a redução da desigualdade, a ampliação do crédito e o aumento real do salário mínimo. Apesar dos inegáveis sucessos, tudo isso se deu sob uma acomodação às reformas anteriores. Armando Boito Júnior, em um conhecido artigo, publicado já em 2003, denunciava que o governo Lula não se esforçava para extirpar a herança de FHC (privatizações, abertura comercial, desregulamentação financeira, ajuste fiscal…). Assim, sob uma hegemonia neoliberal, deterioraram-se a já precária sociabilidade e os laços comunitários. Ao mesmo tempo em que se expandiu o teor democrático do Estado, não se solidificou a noção de “coisa pública”. No Brasil, atendo-se aos estreitos limites da legalidade burguesa, a República permaneceu um esboço, não ganhou forma para além do tipo de regime.[3]

Dessa forma, no cenário do golpe de 2016, a burguesia não encontrou obstáculos intransponíveis e impôs uma nova agenda de reformas, desta vez mais agressivas. Sim, pois se o petismo, no poder, foi reformista e tímido, a direita mostra há mais de quatro anos suas feições extremistas, num ritmo que não só ameaça destruir a República que “não foi”, mas deseja eliminar qualquer senso de comunidade. A “democracia”, enfim, torna visível sua ossatura liberal-burguesa, ganhando ares de uma “democradura”.

Na frustração profunda do republicanismo veio à cena a “terceirização irrestrita”. Embora a proposta já circulasse no Congresso antes daquele ano de 2017, foi a partir da sanção de Temer que a “terceirização das atividades-fim” ficou autorizada. Antes, uma empresa só poderia terceirizar as “atividades-meio”. Com a nova permissão, não só atividades como manutenção, limpeza e segurança podem ser terceirizadas. Todos os serviços passaram a estar passíveis de terceirização. Quem sofre com isso, obviamente, são os(as) trabalhadores(as). 

Charge: Luiz Fernando Cazo
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Impactos no mundo do trabalho

O efeito das terceirizações para o trabalho já foi bem mapeado pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), que, em nota técnica, constatou no modelo várias desvantagens para a classe trabalhadora. Segundo o Departamento, com a terceirização, a rotatividade dos empregos é duas vezes maior, as jornadas de trabalho são maiores e mais exaustivas, os salários pagos são cerca de 23% menores (o que se agrava ainda mais com as desigualdades regionais), os acidentes de trabalho são mais frequentes.

O estudo do DIEESE também aponta efeitos de longo prazo: piora na distribuição de renda no país e comprometimento do próprio desempenho das empresas. Relata a nota que a terceirização pode levar até à queda da produtividade e à perda da qualidade dos produtos e serviços. 

Para os adeptos do miliciano do Planalto (Bolsonaro) e de seu Posto Ipiranga (Paulo Guedes), vale lembrar que a fórmula de reduzir direitos para gerar empregos já se mostrou falsa. Como é de se notar, a terceirização e a reforma trabalhista não diminuíram o desemprego. O efeito, na verdade, é bem no sentido contrário. Já havia estudo indicando que, no curto prazo, aprovadas em períodos de crise, as reformas desregulamentadoras aumentam o desemprego e, no longo prazo, quando aprovadas em períodos de estabilidade, apresentam efeitos não significativos. 

As terceirizações refletem um histórico de apropriação da coisa pública, dos fundos públicos por entidades privadas. Especificamente na área da Saúde, o modelo de Organizações Sociais nas terceirizações causa, como mostrou Isabelle Araújo, “a desorganização do processo de trabalho em saúde; a flexibilização dos contratos de trabalho e a precarização do trabalho; o desmonte da gestão única do SUS; o comprometimento  da  hierarquização  dos  serviços  de  saúde (…)”.

Como resumiu em 2015 o Juiz do Trabalho e professor da Faculdade de Direito da USP Jorge Luiz Souto Maior, já falando de maneira geral sobre o tema das terceirizações: 

O trabalhador terceirizado não tem vínculos duradouros, não se socializa no ambiente de trabalho, não se vê como classe em antagonismo ao capital que o explora, até porque não o reconhece. O trabalhador terceirizado é segregado, discriminado (…) e submetido a trabalhos em condições precárias de trabalho.

Enquanto uma das armas da burguesia no seu avanço contra os direitos da classe trabalhadora, a terceirização precisa ser rejeitada integralmente. A mobilização dos(as) trabalhadores(as) do Hospital Regional demonstrou a urgência disso.


Notas/referências:

[1] DRUCK, Graça. Terceirização do Trabalho no Brasil: novas e distintas perspectivas para o debate. Brasília: Ipea, 2018. Cap. 6. Disponível no repositório do IPEA. Acesso em: 14 mar. 2021.

[2] RICUPERO, Rubens. Apogeu e frustração do liberalismo. In: BACHA, Edmar et al (org.). 130 anos: em busca da república. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019. Cap. 11. p. 195-198.

[3] Para saber mais sobre essa tese:

SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M.. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 503-504.

STARLING, Heloisa M. Onde estão os repúblicos? In: BOTELHO, André; STARLING, Heloisa M. (Orgs.). República e democracia: impasses do Brasil contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017

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