Este texto é a primeira metade de uma tentativa de esclarecer certos aspectos das terceirizações que não são mencionados por todos os seus opositores. A segunda metade será publicada em 17 de março. Aqui, partindo das informações sobre a tentativa de terceirização da administração do Hospital Regional por meio de Organizações Sociais (OS), aponto fatores pelos quais essas entidades não são uma boa alternativa para o setor público.
O caso do Hospital Regional
Para além do caos deliberadamente instaurado em Patos de Minas, outra discussão veio à tona nas últimas semanas. É a intenção manifestada pelo governo do ultradireitista e neoliberal Romeu Zema de terceirizar a administração do Hospital Regional Antônio Dias (HRAD). O meio utilizado foi a publicação, no dia 24 de fevereiro, de um edital para seleção de Organizações Sociais para gestão do Hospital.
A discussão é complexa e mobiliza vários setores de variadas tendências políticas. Apesar disso, a manifestação mais importante veio dos próprios servidores da Saúde. No dia 25 de fevereiro, em frente ao HRAD, na Major Gote, eles expuseram sua discordância com a medida.
Mais recentemente, em 4 de março, o Conselho Estadual de Saúde exigiu a suspensão do processo de terceirização. Atentos ao calamitoso cenário da região, os(as) trabalhadores(as) do Hospital Regional também produziram uma carta aberta em que defendem a gestão pública do Hospital e denunciam as irregularidades que ocorreram quando se implementou o modelo de gestão por OS em outros lugares.
Ao contrário do que o governo estadual tenta fazer parecer, a alteração é prejudicial a todos. Prova disso é a própria maneira com que se tenta fazer as alterações: sem consultas ou publicização adequada. Quem quer esconder age rápido: os prazos estabelecidos surpreenderam até os gestores do Hospital Regional, que não foram consultados sobre o tema. Todo o processo teria (antes de o cronograma ser alterado) seu resultado divulgado já no primeiro de maio – uma ironia sórdida.
Mas não é só para zombar da memória do Dia dos Trabalhadores(as) que o governo acelera tanto o processo. Na verdade, o atropelamento de qualquer debate democrático se deve ao fato de a proposta ser altamente problemática. Ela não só é nociva a quem trabalha sob a forma terceirizada, mas também ao próprio SUS, uma vez que a terceirização da administração para “Organizações Sociais” é uma porteira aberta para que se passe as “boiadas” da ineficiência e da corrupção.
As Organizações Sociais e suas brechas
“Organização Social” é uma qualificação concedida pelo Estado de Minas Gerais a associações e fundações sem fins lucrativos, de natureza privada”. Uma vez considerada OS, a entidade passa a poder ter contratos (que funcionam como termos de compromisso) com o Estado e participar ativamente da execução das políticas públicas.
O problema maior, no entanto, é que essas “parcerias”, estabelecidas sob o pretexto de flexibilizar processos de contratação, têm peculiaridades. E são, no mínimo, curiosas.
Uma das estranhas facetas das Organizações Sociais é estarem dispensadas de licitação. Isso mesmo, você não leu errado. Pelo inciso XXIV do Artigo 24 da Lei 8666 de 21 de junho de 1993, as OS podem prestar serviços sem passar por processo licitatório, contanto que a atividade em questão esteja prevista contratualmente. Vale lembrar que Zema se elegeu com discurso “anticorrupção”. Agora, seu governo mostra-se apressado em abrir as portas para desvios.
Digo isso porque as licitações são indispensáveis para que qualquer governo possa fazer as contratações mais vantajosas para a população, visando uma boa gestão do dinheiro público. Dispensar esse instrumento ou, como faz Zema, criar um subterfúgio para que a administração pública não precise usá-lo é uma maneira descarada de abrir brechas para fraudes.
Outro ponto em que a probidade da administração pública se torna vulnerável mediante contratos com Organizações Sociais reside no fato de que, pelo Artigo 12 da Lei 9637 de 1998, essas organizações podem receber recursos orçamentários e bens públicos. Ademais, o parágrafo 3º do mesmo artigo estabelece que o meio para que isso ocorra é uma “permissão de uso”. Essa permissão é um ato arbitrário (discricionário) que também dispensa licitação. [1]
Muitos críticos também levantam o problema de as OS permitirem que contratações para prestação de serviços públicos ocorram sem concursos públicos. O melhor que se pode esperar, nesse quesito, é que as OS façam contratações por meio de processos seletivos. Mesmo assim, como Patos de Minas já bem aprendeu com os estranhos “processos seletivos” do atual prefeito, processos seletivos do setor privado não são exatamente os mais transparentes e justos. Certamente, o modelo dos contratos de gestão dificulta a garantia da impessoalidade, da publicidade e até da legalidade das contratações.
Entretanto, se você achou tudo isso muito estranho, provavelmente já começa a se perguntar o porquê de o município não oferecer resistência à tentativa estadual de implantar esse tão bizarro modelo na cidade. Ora, para que o(a) leitor(a) não precise confiar somente neste autor que escreve “à esquerda”, basta que mencionemos o reacionário e direitista Arnaldo Queiroz. Em vídeo que circulou amplamente nas redes, Arnaldo atribuiu a ausência de resistência municipal à terceirização da administração do Hospital Regional a um fato óbvio: “o prefeito [Falcão] é aliado do governador [Zema]”.
Diante do exposto, é bem difícil crer na honestidade das intenções do governo estadual. Ainda mais quando as notícias que temos sobre o Secretário Adjunto de Saúde, Marcelo Cabral, são de que ele anda infringindo até o cronograma de vacinação – obviamente, em benefício próprio.
Aliás, esse mesmo Marcelo Cabral é aquele que fez vídeo colocando panos quentes no assunto e explicando a diferença entre terceirização e privatização de maneira tosca. As terceirizações, de fato, não são essencialmente passagem de coisas públicas para empresas ou entidades privadas (como são as privatizações propriamente ditas). No entanto, a diferenciação jurídica não anula o fato de que a terceirização da administração de um Hospital público concedendo-a a uma entidade privada é um modo específico de privatização. Além disso, é puro cinismo fazer parecer que a diferença jurídica entre privatização e terceirização é motivo para tranquilidade. Que ninguém seja enganado(a) por um cara de pau que fala como se o governo Zema não fosse um notório defensor das privatizações!
Buscando explicitar mais detalhadamente os motivos pelos quais a classe trabalhadora precisa se opor às terceirizações, o próximo texto fará uma contextualização histórica delas e apontará alguns dados sobre seus malefícios.
Nota:
[1] Caso o leitor(a) deseje detalhamentos sobre essas vulnerabilidades, ver GURGEL, Lucas de Araújo. As organizações sociais e a institucionalização da corrupção no Brasil. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57482/as-organizacoes-sociais-e-a-institucionalizacao-da-corrupcao-no-brasil. Acesso em: 14 mar. 2021.
[…] definido na parte 1 deste artigo, proponho-me hoje a historicizar resumidamente as terceirizações no Brasil, […]