Tempos Modernos ou a loucura de Carlitos

A seguir publicamos uma resenha escrita por Mercedes Comaposada sobre o filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin, lançado em 1936. O escrito apareceu originalmente em espanhol na revista Mujeres Libres, n.1, Madrid, de maio de 1936. A tradução do espanhol para o português é de Thiago Lemos Silva. 

Por Mercedes Comaposada

 “Tempos Modernos”, última obra deste homem genial [Charles Chaplin], marca uma nova fase de sua arte, a qual foi atacada por críticos e escritores que não a compreenderam. Sobre o filme, foi dito que não chega ao nível de outros que ele fez. Apontam como defeito uma tendência social que, na visão dos comentadores, exclui o campo sentimental predominante em “Luzes da Cidade”, por exemplo. Entretanto, em “Tempos Modernos”, Carlitos se completa de maneira definitiva.

Se analisarmos a obra de [Charles] Chaplin, podemos dividi-la em três fases bem características. A primeira corresponde ao que poderíamos chamar de “época do malabarismo”: graça espontânea que Carlitos antepõe à graça bem preparada de Max Linder, à graça fácil de Salustiano, localizada na deformação do seu nariz, e à graça vulgar de Toribo. Essa primeira fase é toda agilidade, aventura do movimento, truque do sem truque, reação contra as formas exteriores da elegância em alguns, do grotesco em outros, características marcantes dos comediantes cinematográficos de então.

Como antítese de tudo isso, Carlitos cria sua típica indumentária de vagabundo. Essa não deixa de ser, por imposição do seu mundo interior, uma síntese depurada de todas as decadências da civilização ocidental.

Na segunda fase, a arte de Carlitos se humaniza. O vagabundo se dá conta de que junto com a sua vida existem outras vidas e sai de si para compreendê-las. Muda a graça de sua primeira fase, por uma graça nova: a graça transcendente, construtiva, generosa. O vagabundo malabarista se transforma em vagabundo sentimental – vagabundo sempre – ; um ser livre de preocupações e ambições estreitas, de egoísmos raquíticos. Vive à margem da lei e do instituído. Não renuncia, por uma falsa dignidade, às suas perambulações analíticas e ao descanso em pleno campo. Sabe que é um produto miserável de uma sociedade injusta e se rebela contra a enganosa recompensa de um trabalho que não lhe valerá mais que privações. No entanto, se encontra outro ser no qual a luta impotente deixou algum espaço para a resistência, então a efusão do seu afeto se transborda e o torna capaz de tudo, inclusive de trabalhar. Daqui surgem cenas cômicas, provocadas pelo desacordo entre a vontade que lhe acaba de nascer e a falta de aptidão para realizá-lo.

Nesta fase sentimental, Carlitos sabe se esquivar de qualquer queda sentimentaloide, cortar a tempo todo instante que não seja amplo e fortemente humano e se safar do risco iminente do ridículo. 

Na terceira fase, a de agora, que poderíamos chamar de integral, [Charles] Chaplin evoluiu para o completo. Já não analisa mais contemplativamente, passivamente. Já não basta mais seu sentimento; necessita também de sua razão. O vagabundo se enriqueceu, se fez intelectual. “Tempos Modernos”, assim o proclama. Desde a primeira cena – magnífica cena –  em que confunde os rebanhos de cordeiros com os pelotões de operários à entrada da fábrica, até as últimas cenas, tantas vezes modificadas pela censura capitalista, Carlitos indica ao proletariado o caminho a trilhar, que não é precisamente o da União Soviética.

Em “Tempos Modernos”, fica bem assinalada a vítima do atual progresso mecânico. De maneira impressionante, o grande artista a representa interpretando o acidente corporal e espiritual do operário automatizado, obrigado a adaptar todo o seu ser ao inexorável ritmo padronizado da grande indústria moderna. 

Simbolicamente, expõe a libertação desta negação vital que se chama a “cadeia”. Entre segmentos musicais integrados por sons metálicos que se individualizam, surge a grande tragédia de nosso tempo. A concentração total das atividades de um operário, desde o simples fato de apertar um  parafuso até às distintas velocidades impostas em cada momento pelo cálculo das máximas ganâncias a favor dos acionistas, tem como resultado a obsessão infecunda de parafusar tudo, tudo. Isso transparece, inclusive, na inércia do próprio movimento, da qual Carlitos vai se desfazendo em gradação ascendente. 

No princípio, o transtorno é apenas nervoso; suas células acumularam excessivamente uma mesma impressão e a rebaixam em uma obsessão uniforme, que Carlitos vai transformando em passos de dança que conservam, como taras mecânicas, toda a exatidão, toda a precisão matemática do ballet russo. Quando os demais operários querem se apoderar dele, Carlitos se esquiva e os vence acionando uma esteira rolante, obrigando-os a ocupar seus postos, a despersonalizarem-se para não perder um só minuto no trabalho. Em troca, Carlitos lhes oferece o contraste de sua dança de perfeito ritmo exterior, na qual os trançados e as pausas também obedecem aos mandatos da inflexível justa medida, mas agora sua distribuição e seu cálculo dependem de um impulso próprio. Crescentemente, a expressão de seus movimentos vai recobrando seu espírito anulado, e, em uma luta de exatidões e desproporções, estende os braços que se converterão em asas quando um guindaste o recolhe e o eleva, rompendo alcances verticais que atraem os demais operários em um desejo de equalização.

Carlitos, no fim, se torna louco. Eu acredito mais que sua reação o libertou.

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