Rosa Vermelha: a revolução como furacão do amor e da liberdade

A seguir publicamos a carta Rosa Vermelha: a revolução como furacão do amor e da liberdade, de autoria da escritora e militante brasileira Helena Silvestre. Originalmente publicada em 24 de fevereiro de 2019, na Revista Amazonas, a referida carta nos dá conta das muitas sobrevidas que a revolucionária comunista Rosa Luxemburgo ganhou no período que se seguiu a sua execução política por milícias de extrema-direita, em 15 de janeiro de 1919, durante a malograda Revolução Alemã.

Por Helena Silvestre

Tantos textos foram escritos neste janeiro em que relembramos o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht que minha pequena carta não se faz nenhum pouco necessária. Mas descobri com o tempo que há muitas coisas nessa vida que, embora tenham aparência desnecessária, respondem a necessidades imperiosas que nem sabemos nomear e que alimentam o peito e a cabeça de desejos e liberdade mudadora.

Muitas vezes tenho dito que minha relação com as teorias foi sempre selvagem, porque me relacionei primeiro com as pessoas que as reivindicam e só depois, pouco a pouco, com elas próprias. Isso acontece porque me tornei militante muito jovem, porque não estudei os estudos formais e porque a vida é sempre maior e mais rica do que as teorias são e serão capazes.

Todas as vezes que cantei, enquanto fazia assembleias em ocupações de terra povoadas de trabalhadoras e trabalhadores em luta, alguém me cutucava com este nome: Rosa Luxemburgo. Todas as vezes que senti amor profundo pelos bichos que cruzaram meu caminho pela vida, alguém me soprava num assovio este nome: Rosa Luxemburgo.

Que revolucionário poderia ser lembrado por sua capacidade de amar? Que revolucionário poderia ser lembrado pelo fato de que sua teoria – como qualquer uma, sempre incompleta – encontrava continuidade numa forma de ser e de viver que fossem, elas mesmas revolucionárias e revolucionadoras?

Talvez uma revolucionáriA, talvez uma mulher, talvez uma imigrante judia que mancava de uma perna e dançava pelo mundo convidando a tudo o quanto fosse estático a mover-se deste lugar de apatia para a dança da liberdade, ao redor do fogo que transforma até o aço mais duro.

A alma de Rosa destoa de todo pragmatismo duro, embora assumisse ela as cadeiras que – mesmo no movimento revolucionário – sempre estiveram endereçadas aos homens. Sua capacidade crítica profunda e radical não se opunha a uma lealdade que fazia com que traduzisse fielmente o discurso de seus opositores em ideias porque ela era, sempre, uma combatente leal no campo das diferenças políticas entre lutadores.

Eu li suas cartas de amor, aos amantes e aos amigos amados, antes de conhecer a ferocidade de sua elaboração sobre a acumulação de capital, que ainda agora é um solo firme em que podemos pisar – revolucionárias feministas e povos colonizados – para compreender a engrenagem que destroça nossa vida e que domina nossos corpos e territórios.

 Eu soube que Rosa dançava antes mesmo de haver tomado contato com a maneira impressionante com a qual elaborou sobre a greve geral como uma articulação potente que poderia ir muito além do economicismo corporativista que ainda agora assola muitas “esquerdas”.

Eu conheci sua paixão pela vida antes de entender que a sua inflexível posição anti-guerra era, objetivamente, uma postura que salvaguardava essências revolucionárias, postura que se colocava radicalmente em oposição à ideia de que qualquer melhoria econômica da vida de um povo pode dar-se às custas do genocídio de outros povos.

Tudo isso porque a maneira de ser e de viver de Rosa Luxemburgo fizeram dela uma revolucionária que apequenava as distâncias existentes entre intenção e gesto. Tudo isso porque ela caminhou, por revoluções e cárceres, por amores e rebeliões, por frustrações e alegrias sem deixar de sentir aquilo que pensava e sem deixar de viver a revolução que deseja construir, sem deixar de ser o mundo que também queria dar.

 Queria que fosse possível viajar no tempo, que Rosa pudesse nos visitar e passar um dia desses de verão nalguma roda de conversa lá na ocupação, junto de mulheres tão fortes como ela e olhando a forma louca que este capitalismo foi transformando a nossa classe sem que ela perca esse lugar essencial de sujeito (e não objeto guiado) de qualquer revolução. Eu a convidaria a subir com a gente ali no Pico do Jaraguá, onde vivem nossos compas indígenas e lhe contaria que o interesse dela pelos povos originários do Peru e sua maneira de viver só aumentaria em conhecendo indígenas destas terras, que tanto nos tem ensinado. Lhe contaria da catástrofe que o capitalismo repõe todos os dias – com a engrenagem de acumulação que ela soube enxergar, ainda que faltasse em Marx – encarcerando a vida, humana e não humana, na maldita prisão do progresso.

Eu gostaria de passear com Rosa nas marchas que nós mulheres construiremos no mês de março e de contar a ela o quanto seria débil nossa elaboração se não pudéssemos contar com tantas senhas que ela nos deixou de presente.

Falaria da desgraça dos governos progressistas, social-democratas-anacrônicos que usam o nome socialismo mas mantém tropas no Haiti, que reivindicam a cor vermelha enquanto dão as mãos a nossos assassinos e que falam em democracia ao tempo em que corroem a nossa identidade de classe, afirmando que só aliados a nossos algozes nós podemos caminhar (sem mostrar que caminhamos para o abismo ainda mais distópico que agora). Diria, que aqueles que a delataram seguem hoje delatando e entregando revolucionários nas mãos da direita e da contrarrevolução que professam falsamente combater.

Acho que depois de contar estas coisas eu calaria por muito tempo, pedindo conselhos e ouvindo atentamente sua sabedoria que sempre pôde encontrar – até mesmo em celas de prisão – os caminhos da esperança, da luta, do amanhã que construímos agora, de corpo presente nos combates pela liberdade e emancipação da humanidade e da natureza.

Como tais viagens não são ainda possíveis, brindarei em sua memória uma xícara de chá enquanto leio suas palavras, inscritas em teorias e lutas, impressas na memória e no peito de quem ousa, sempre, pensar diferente. Começarei com esta carta, que ela enviou a Sônia Liebknecht, um tesouro que compartilho com todas as mulheres que neste mundo lutam e vivem a revolução que desejamos ver florescer em toda parte.

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