Recorde de casos de dengue revela desafios históricos e futuros

O Brasil enfrenta desafios persistentes com o aumento recorde de casos de dengue, devido a fatores como vulnerabilidade do sistema imunológico em regiões menos afetadas anteriormente e mudanças climáticas. A falta de recursos para controlar o vetor e questões estruturais relacionadas ao saneamento básico agravam a situação, apesar dos avanços na busca por uma vacina

Quem viveu e cresceu durante os anos de 1990, possivelmente ainda tem a vívida lembrança das campanhas de conscientização e de combate à dengue realizadas pelos governos da época. A dengue já era muito famosa nesse período. Afinal, não viveram todas as aventuras da infância aqueles que nunca precisaram correr do popular fumacê — a tenebrosa charrete motorizada do apocalipse, que lançava uma fumaça mal-cheirosa na porta de todas as casas e na fuça de todos os transeuntes desavisados que flanavam pela rua. De tanto repetirem na televisão e no rádio, ficamos carecas de saber, por exemplo, que não se pode deixar água parada em vasos de plantas e outros recipientes, posto que é dessa forma que o famoso “mosquito da dengue” se reproduz e se prolifera. Tamanha é a fama desse ser alado que ele se tornou um dos poucos animais de nossa fauna cujo nome científico é conhecido pela maioria das pessoas: Aedes aegypti. Tão famoso era esse bichinho azucrinante que um dos assistentes de palco da Xuxa — a eterna Rainha dos Baixinhos — foi apelidado de Dengue. Sim, estou falando daquele sujeito magricela e comprido, trajando uma fantasia espalhafatosa de mosquito!

No entanto, apesar de os anos se passarem, parece que pouca coisa mudou e o tal mosquito continua nos assolando. Além da dengue, ele (na verdade, ela, pois trata-se da fêmea do inseto) também é responsável pela transmissão da febre amarela urbana, da febre zika e da chicungunha.

É importante lembrar que o mosquito é apenas o vetor da doença. A infecção em si é causada por um vírus, inclusive sendo possível que a transmissão se dê por transfusão sanguínea de um ser humano infectado. Atualmente existem quatro variantes do vírus (DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4), cada uma conferindo imunidade duradoura ao mesmo tipo e uma defesa temporária e parcial contra as demais. No entanto, uma infecção subsequente por uma variante diferente pode ampliar o risco de complicações graves. A doença é sistêmica e causa febre aguda, o que provoca debilitação. A maioria dos pacientes se recupera, porém, uma parte pode desenvolver quadros mais graves, como a forma hemorrágica, podendo resultar em óbito.

Entre os sintomas, a Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu complicações do Sistema Nervoso Central como parte das manifestações graves da dengue. Podem ocorrer várias alterações neurológicas devido à infecção multissistêmica pelo vírus, com incidência crescente. Encefalopatia, encefalite, mielite, síndrome de Guillain-Barré e miosite são algumas delas, sendo mais comuns com os tipos DENV-2 e DENV-3, com uma incidência estimada entre 0,5% e 6,2% dos casos. Ou seja, apesar do tom cômico do primeiro parágrafo, a doença em si não tem nada de engraçada e representa um grave problema para a Saúde Pública.

Segundo Denise Valle, pesquisadora da Fiocruz, a data e a origem geográfica da dengue são controversas. Embora o mosquito seja provavelmente originário do Egito, existem registros confiáveis de epidemias de uma doença cujos sintomas são muitos similares à dengue no Império Chinês, no quarto século da nossa era. No Brasil, ela teria aparecido em meados do século 19. Assim, há relatos de epidemias de dengue no ano de 1846, em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, mas sob outros nomes (polca, febre de polca, patuleia e febre eruptiva reumatiforme).

Contudo, é somente no contexto histórico após a Segunda Guerra Mundial que a dengue se torna de fato uma endemia. Isto é, uma doença recorrente em uma dada região e com a qual a população convive. Se você, leitor(a), acredita que isso teria a ver com a urbanização descontrolada, habitações inadequadas, ausência ou escassez de saneamento básico, como sistemas de distribuição de água, esgoto e organização de resíduos, então, devo dizer que você acertou na mosca, digo, no mosquito. A chamada situação de “endemicidade” ocorre, nesse período, em muitos países do mundo, entre os quais, o Brasil.

Entretanto, ações governamentais já estavam sendo feitas para erradicar o Aedes aegypti desde 1902, no Rio de Janeiro, sob a coordenação do médico sanitarista Oswaldo Cruz. Na época, o combate ao mosquito se devia à preocupação pela transmissão da febre amarela urbana, cujo índice de morte por infectados era consideravelmente maior do que o da dengue, ainda não endêmica. Após vários planejamentos, parcerias com empresas privadas e execuções estatais que não conseguiam exterminar de vez o mosquito, em 1947, a Organização Pan-americana de Saúde e a OMS uniram esforços para concluir essa difícil tarefa através do Programa de Erradicação do Aedes aegypti no Hemisfério Oeste. Os programas foram eficientes e tiveram sucesso em muitos países latino-americanos. O Brasil participou dessa iniciativa e conseguiu eliminar o vetor em 1955. 

Parecia que o Brasil tinha se livrado para sempre da febre amarela e, por extensão, da dengue. Mas esse mosquito, minha gente, parece mais aquela mosca cantada por Raul Seixas. Devido a falhas na vigilância epidemiológica do governo ditatorial (a sociedade brasileira experimentava a ineficiência da Ditadura Militar) e mudanças sociais e ambientais decorrentes da urbanização desordenada, o Ae. aegypti reapareceu no país em 1976. Houve a confirmação de 19 reinfestações no Rio Grande do Norte e no Rio de Janeiro. O mais grave ainda estaria por vir. “A partir da década de 1980, iniciou-se um processo de intensa circulação viral, com epidemias explosivas [de dengue] que atingiram todas as regiões brasileiras”, apontam as pesquisadoras Ima Braga e Denise Valle. 

Com a explosão de casos por todo o país, o Ministério da Saúde, sob o governo FHC, publicou, em 1996, o Plano Diretor de Erradicação do Aedes Aegypti do Brasil. O objetivo era claro: acabar com o mosquito. A justificativa aparece logo nas primeiras páginas do documento e era tipicamente econômica. Embora fosse preciso investir muito dinheiro público para dar cabo do insistente mosquitinho, a longo prazo o custo seria menor do que os gastos com saúde e outras consequências adversas. Neoliberal, mas ok. Só que faltaram recursos financeiros e coordenação para universalizar as ações em todos os municípios e o plano foi por água abaixo. E de água, sabemos, o mosquito gosta.

Em 2002, o Brasil registrou aproximadamente 800 mil casos de dengue, representando 80% de todas as notificações nas Américas naquele ano, resultando em 150 óbitos por febre hemorrágica da dengue. Nesse período, o número absoluto de mortes excedeu pela primeira vez o registrado por malária. Foi nesse mesmo ano que o Ministério da Saúde, ainda sob o governo FHC, implantou o Programa Nacional de Controle da Dengue. Sim, teve que aceitar que não conseguiria exterminar o mosquito a curto prazo e, por isso, riscou do caderninho a palavra “erradicar”, substituindo-a por “controlar”. No primeiro ano do programa, mais de 1 bilhão R$ foi investido para controlar o vetor. E nada. Ou melhor, voa.

Até aqui, pelo texto, fica claro que a dengue é uma questão complexa de Saúde Pública. Problemas complexos exigem ações complexas e duradouras. Apesar de ter sido gasto pelo governo alguns bilhões no combate à dengue ao longo de décadas, o próprio Ministério da Saúde a considera como uma doença negligenciada. São doenças que, segundo a organização Public Library of Science, produzem pobreza em razão de seu impacto sobre a saúde, o desenvolvimento infantil, a gravidez e a produtividade do trabalhador. São chamadas de negligenciadas porque não despertam interesse da indústria farmacêutica (supostamente por falta de demanda) e não recebem apoio significativo para pesquisas. 

Na última segunda-feira (13/05), o Ministério da Saúde atualizou o número de casos de dengue no Brasil. São 4 milhões e 766 mil casos prováveis de dengue, somente em 2024. Há registros de 2.524 mortes pela doença. Além destas confirmações, ainda existem 2.629 óbitos em investigação. É o maior número desde que o Brasil passou a contabilizar (a partir de 2000). Minas Gerais está na inglória 2ª posição do ranking dos estados com maior número de mortes, 422. Especificamente em Patos de Minas, do início de janeiro à última semana de maio, havia 17.255 notificações de dengue, quatro resultando em morte. O número de casos tornou necessária a construção de um Centro de Enfrentamento à Dengue em Patos de Minas, uma espécie de hospital de campanha a fim de não sobrecarregar as Unidades Básicas de Saúde do município.

São três as principais razões que explicam esse aumento exponencial no número de casos neste ano, aponta o infectologista Antônio Carlos Bandeira (pesquisador que descobriu a chegada do vírus Zika ao Brasil, em 2015). 

  1. Sistema imunológico vulnerável. A maioria dos casos de dengue de 2023 a 2024 tem ocorrido nas regiões sul e sudeste. O pesquisador considera que as populações destes locais são mais suscetíveis à infecção porque, na média, nunca pegaram dengue ou pegaram somente a de um tipo. É uma situação diferente, por exemplo, a do nordeste, região em que a população frequentemente teve casos pregressos de dengue. Mas esse cenário é consequência dos dois motivos seguintes.
  1. Negligência governamental. Nos últimos anos, ocorreu um desmantelamento de “uma vigilância mais proativa no sentido de instituir medidas como larvicida ou o famoso fumacê”, nas palavras do pesquisador. Acompanhando o ritmo de governos anteriores, em 2023, por exemplo, o governo Lula gastou 12,2 milhões de reais em campanha publicitária contra a dengue. Representa 61% a menos do que (até mesmo) o governo Bolsonaro teria gastado em 2022 para esse mesmo fim (31,6 milhões de reais). Os investimentos voltaram a crescer somente em janeiro e fevereiro de 2024, quando houve uma explosão de casos. 
  • As campanhas de conscientização são importantes porque o mosquito é altamente domiciliar. Segundo afirmação feita pelo Ministério da Saúde em fevereiro de 2024, cerca de 74% dos criadouros do Aedes aegypti estão nas casas. Contudo, é preciso ter cautela com estes apontamentos. Transferir a culpa para o indivíduo é uma tática utilizada pelo governo ao se eximir de suas próprias responsabilidades. O Brasil continua enfrentando o desafio dos lixões e esgotos a céu aberto, indicativos de uma infraestrutura de saneamento básico deficiente. Além disso, a falta de fiscalização adequada contribui para a proliferação de terrenos baldios, tornando-se potenciais focos de problemas ambientais e de saúde pública. Essas questões são reflexo de desafios estruturais (principalmente em comunidades mais pobres) e de políticas públicas que demandam medidas urgentes para promover o bem-estar da população.
  1. Mudanças climáticas. Sim, o calor está por trás da proliferação dos mosquitos. Os bichinhos não aguentam o frio. Por isso faz sentido os nordestinos serem mais acometidos pela doença do que os sulistas e sudestinos. Mas não é só o calor. As chuvas, que no Brasil coincidem com o verão, também são uma condição de propensão à disseminação do mosquito da dengue. Antônio Carlos Bandeira considera que o fenômeno El Niño promoveu um corredor de calor da região centro-oeste para as regiões sudeste e sul. Prova disso teria sido o fato de países vizinhos ao sul, como Argentina e Paraguai, também terem sofrido com a chegada em comboio do Aedes aegypti
  • A cada ano temos acompanhado estarrecidos e suados um aumento considerável da temperatura média do planeta. Ondas de calor estão se tornando muito mais frequentes. Eventos climáticos extremos no Brasil têm acontecido todo ano, como as fortes chuvas que neste momento despedaçam edifícios e vidas no Rio Grande do Sul. Calor e chuva. Sabemos bem quem gosta disso. Se ainda quisermos ter esperança de um futuro menos pior do que o presente, não podemos aceitar projetos políticos que negam a ciência e, por extensão, as mudanças climáticas que batem à nossa porta. Pois, ainda que a dengue seja resolvida, se não agirmos, outros problemas e consequências, como enfermidades, virão.

Para a dengue, o conhecimento científico parece ter inventado uma solução. Pesquisadores do Instituto Butantan, por exemplo, estudam uma vacina contra o vírus da dengue desde 2009. Depois de testes, ao se mostrar eficaz contra quadros graves da doença e receber autorização da Anvisa, o Ministério da Saúde incorporou o imunizante desde dezembro de 2023. No entanto, a Campanha Nacional de Vacinação da Dengue avança a passos de formiga, bem mais lentos do que os voos do tenebroso mosquitinho.

Material consultado:

BRAGA, I.; VALLE, D. Aedes aegypti: histórico do controle no Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde, n. 16, vol. 2, 2007, p. 113-118.

INFO DENGUE. Patos de Minas. Disponível em: https://info.dengue.mat.br/report/MG/3148004/202420

LEITE, A. et al. Revisão das principais complicações da dengue. Brazilian Journal of Implantology and Health Sciences, vol. 6, número 3, 2024, p. 167-175.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Atualização de Casos de Arboviroses. Última atualização 13/05/2024. https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/a/aedes-aegypti/monitoramento-das-arboviroses

PORTAL DO BUTATAN. Vacina da dengue. Disponível em: https://butantan.gov.br/dengue

VALLE, D. N. A (des)construção da dengue: de tropical a negligenciada. In: VALLE, D. N. (org.). Dengue: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2015, p. 23-60.

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