Porque eu parei de assistir BBB

Desde quando o programa começou, a violência, resultado da internalização e banalização da ideologia da competitividade, sempre foi um traço instituinte e estruturante dele. No entanto, é preciso destacar que essa violência tem assumido contornos cada vez mais escancarados e virulentos nas últimas edições.

Ao longo de pouco mais de vinte anos, fui um telespectador regular do “espetáculo de realidade” intitulado Big Brother Brasil. Hoje, porém, resolvi parar. E gostaria de te contar o porquê disso.

Antes de tudo, esclareço que este texto não é um desabafo escrito por um intelectual (mal) iluminado de esquerda, que, depois de ler A Indústria Cultural, de Adorno e Horkheimer[1], tem medo virar pedra ao assistir um programa da televisão aberta brasileira. Pelo contrário, mesmo sendo de esquerda, sempre me senti muito à vontade para consumir os produtos da chamada cultura de massa, tais como programas de auditório, partidas de futebol, novelas e, mais recentemente, “espetáculos de realidade”.

Tendo o meu processo de politização começado aos 18 anos, relativamente cedo para um jovem oriundo de família trabalhadora, devo confessar que, mesmo deglutindo todas essas “iguarias”, nunca as digeri por completo. Desse modo, sempre dispus, em alguma medida, de ferramentas críticas que me permitiram identificar e criticar o modo como as mídias (re)produzem o capitalismo, o machismo, o racismo e a Lgbtfobia. Em síntese: o consumo alienado sempre foi um tanto consciente para mim.

No entanto, confesso que um episódio ocorrido nas últimas semanas do BBB me fez perceber com maior clareza o caráter indigesto do referido programa como um todo. Estou me referindo a uma fala da competidora Larissa Santos, uma das últimas eliminadas do jogo em 2023. Ao se despedir dos antigos “brothers”, ela disse não ser do seu feitio confrontar tão violentamente os outros, mas que, por causa do modo de funcionamento do jogo, ela se via impelida a fazê-lo.

Larissa se refere aqui às dinâmicas ocorridas no chamado “jogo da discórdia”, que, via de regra, ocorre toda segunda-feira. Nesse “jogo”, os competidores são obrigados a se confrontarem com base em seus comportamentos ao longo da semana. Durante tal confronto, eles escolhem um oponente e dão a ele um adjetivo. “Planta”, “pipoqueiro”, “traíra”, “duas caras” são algumas das qualidades nada lisonjeiras escolhidas pela produção do “espetáculo” para tanto. Por fim, o oponente ainda pode levar, como forma de punição, por motivos desconhecidos por eles próprios, um “tiro de fumaça”, uma “porrada de entulho” ou uma “bomba de óleo”.

De acordo com Boninho, o big boss do programa, essa dinâmica não cria os conflitos, apenas os reflete. Assim sendo, eles são apresentados pela direção como oportunidades para que os competidores apenas expressem o que estão sentindo ou pensando a respeito das movimentações dentro do jogo. Mas, será que as coisas são tão simples quanto são apresentadas? Assim como grande parte dos produtos da Indústria Cultural, os “espetáculos de realidade” não prescindem da realidade social, sendo ao contrário, produtos diretos dela. De acordo com Silvia Viana:

“O mote do espetáculo da realidade e seu maior apelo junto aos telespectadores é a concorrência, não o voyeurismo. Portanto, aquilo a que assistimos não é algo obsceno, isto é, fora da cena simbólica; o que se vê é essa mesma cena: um pega-pra-capar. É esse o fundamento que atrai o nosso olhar, pois é o fundamento de nossa reprodução social. Os programas têm a mesma forma que a vida produtiva sob o neoliberalismo: sua organização é a da empresa capitalista contemporânea, sua estrutura é de gestão de trabalho flexível; a voz de comando que ecoa de ambos os lados da tela é uma só e há um mesmo padrão de respostas, de ambos os lados da tela”[2].

Sob essa ótica, aqueles que estão encarregados do processo de produção do programa criam, encorajam e gerem, a todo momento, situações de violência entre os participantes dentro do jogo, que tem na ideologia da competitividade seu aspecto essencial. Essas situações integram, mas, ao mesmo tempo, ultrapassam a violência que “estoura” no “jogo da discórdia”. Sem dúvida, rotular o outro de “duas caras” ou mandar explodir uma “porrada de entulho” em seu rosto pode ser a face mais visível do fenômeno. No entanto, ele se manifesta também na situação de racionamento que se passa na xepa, nas humilhações sofridas durante o castigo do monstro, no envio para o paredão e na própria eliminação do participante.

Tal violência escancara de igual maneira as desigualdades de classe, raça, gênero e sexualidade que atravessam o nosso tecido social sob o capitalismo neoliberal. Nesta edição, assistimos a situações degradantes  envolvendo falas preconceituosas sobre Bruno Gaga, um participante gay de origem social humilde; a discriminação sofrida por Fred Nicácio, um participante negro adepto do Culto de Ifá; e um duplo assédio sexual contra Dania Mendez, uma participante mexicana, que, inclusive, voltou para sua terra natal antes da hora.

Em algumas dessas situações, a direção do programa chegou a intervir. Mas, mesmo assim, não pode fazê-lo sem prescindir da violência que lhe é tão característica. Ainda que a direção puna os participantes que estão supostamente infringindo as regras por assumirem condutas elitistas, racistas, machistas ou Lgbtfóbicas, o modo espetacularizado como procedem acaba por naturalizar a violência da qual a pessoa foi vítima. Ou seja, criam uma narrativa que legitima a revitimização da pessoa, dando entender que ela deveria ter passado “por aquilo”, para que houvesse um debate público sobre o tema, a sociedade civil se sensibilizasse e os culpados fossem responsabilizados.

Desde quando o programa começou, essa violência, resultado da internalização e banalização da ideologia da competitividade, sempre foi um traço instituinte e estruturante dele. No entanto, é preciso destacar que ela tem assumido contornos cada vez mais escancarados e virulentos nas últimas edições. Aliás, essa escalada coincide com o processo em curso de crescente precarização e degradação das condições de vida sob o capitalismo neoliberal, que parece mais forte do que nunca graças a uma pandemia, a um governo liberal-fascista, a uma ameaça de terceira guerra mundial e a um iminente colapso climático.

Tenho consciência de que o consumo alienado é uma realidade difícil de escapar quando falamos de Indústria Cultural, mas é preciso estabelecer algum limite, mesmo sob o neoliberalismo. Somente assim preservaremos alguma criticidade e criatividade que nos permitirão, algum dia, pensar formas de produção e consumo da cultura que promovam a nossa real emancipação.


[1] Nota de explicação para o leitor: “A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas” é um capítulo de “Dialética do esclarecimento”, texto clássico de Adorno e Horkheimer, filósofos da Escola de Frankfurt, publicado em 1947. Eles analisam criticamente o percurso da razão ocidental, aplicando essa crítica às produções culturais contemporâneas. A argumentação deles mostra que as mídias, as técnicas e suas formas de difusão, cheias de uma racionalidade capitalista, acabam por produzir uma contradição na cultura de nosso tempo: tirar dela aquilo que há de criativo e humano (no sentido de ir além da mera existência e/ou reprodução), transformando-a em produto industrializado de uma sociedade industrial.

[2] VIANA, Sílvia. Rituais de sofrimento. Tese ( Doutorado em Sociologia). USP. São paulo.  2011, p.28.

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