Entra ano, sai ano todo 08 de março nos deparamos com uma infinidade de atos comemorativos supostamente em prol do dia da mulher. Nesse dia, há uma verdadeira mobilização social para colocar o gênero feminino no centro das atenções: os homens concedem “folga” do trabalho doméstico, os salões abrem promoções para “dias de princesa”, os chefes dão rosas e bombons, agências publicitárias inundam as redes sociais… a lista seria infindável caso continuássemos.
Você já parou para se perguntar até que ponto esses atos realmente ajudam as mulheres em sua luta rumo à emancipação? Quando os analisamos mais de perto, não fica muito difícil de perceber que todos eles reforçam certa divisão do trabalho por gênero na sociedade capitalista, no qual os lugares ocupados por homens e mulheres aparecem muito bem marcados. Enquanto os homens devem adentrar o espaço público, assumir cargos de liderança na política ou então colocarem-se à frente do competitivo mundo do trabalho, as mulheres devem permanecer confinadas no espaço privado, adotando a responsabilidade pela criação dos filhos e tomando conta do lar.
Aliás, foi justamente para lutar contra esse estado de coisas que surgiu o dia da mulher. Você sabia? Sim! Isso mesmo, a escolha de uma data para agitar a “questão feminina” foi uma estratégia que surgiu entre fins do século XIX e princípios do século XX nos meios socialistas, visando colocar as mulheres em pé de igualdade em relação aos homens em todos domínios da vida social.
Com o propósito de devolver a real dimensão histórica desta data, o Patos à Esquerda republica o texto “Por mulheres, entre mulheres, para mulheres”, de autoria da historiadora Luana Rodrigues. Com isso, esperamos retomar e atualizar o sentido verdadeiro do 08 de março: um dia de luta e não um dia de festa.
Por Luana Rodrigues
No 8 de março, grande dia de celebração e politização, é sempre necessário contar e recontar a história com veracidade, pois ela frequentemente é ocultada, seja de forma intencional, seja por conflitos das fontes do passado.
Hoje quero compartilhar com todas vocês, mulheres, um fio histórico interessantíssimo. A partir dele, proponho-me a fazer brotar em seus corações a semente da luta e do real significado deste dia tão importante para nós mulheres.
Vamos, então, aos acontecimentos. O mundo vivia a tumultuada Segunda Revolução Industrial e, com o crescente êxodo rural, as cidades atraem uma legião de massas trabalhadoras. Uma grande demanda de mão de obra feminina e infantil é massivamente utilizada no mundo das fábricas. Mulheres e crianças eram menos especializadas, logo ganhavam menos e trabalhavam mais. Seus salários, muitas vezes, sequer eram pagos a elas e sim a seus tutores legais, pais ou maridos. Mulheres eram tratadas como incapazes.
Na virada do século XIX para o século XX, as mulheres já faziam muito barulho. Desde a Revolução Francesa, ficou claro que, na busca por liberdades individuais, as mulheres não eram colocadas em conta, mas se insurgiram contra a exclusão. Movimentos sufragistas, então, surgem com muita força. Além da luta pelo voto feminino, ocorre o surgimento, por volta de 1903, da chamada “Women ‘s Trade Union League” (Liga Sindical das Mulheres). Essa liga era composta por sufragistas e trabalhadoras liberais cujos objetivos eram organizar as trabalhadoras assalariadas em busca de direitos. Entre 1907 e 1909 as crises industriais de mão de obra criam um forte fluxo imigratório para os EUA. Muitos dos(as) imigrantes vinham de regiões onde a prática política sindical era forte, como na Itália.
Mulheres não podiam votar nem serem votadas, mas, mesmo assim, muitas aderiram a partidos políticos, como os partidos socialistas. Uma das mulheres que integrava o Partido Socialista dos EUA era Theresa S. Malkiel, uma imigrante ucraniana e judia que sugeriu um dia intitulado “Woman’s Day” (Dia da Mulher), para que as trabalhadoras pudessem discutir e ter acesso à informação, a fim de que adentrassem aos partidos como forma de luta. A finalidade de Malkiel era expurgar a ignorância, trazer informação e educação política às massas de mulheres trabalhadoras para que pudessem, assim, lutar pelos objetivos que lhes eram comuns enquanto gênero. Entre 1909 e 1910 essa comemoração é realizada em Chicago e Nova York, reunindo em torno de três mil mulheres, muitas não pertencentes a partidos.
Além dos partidos políticos, as mulheres também se encontravam organizadas em sindicatos. Aqui se destaca o papel das trabalhadoras da fábrica “Triangle Shirtwaist Company”, tidas como insurgentes. As trabalhadoras da Triangle não aderiram às ligas, mas fundaram um sindicato interno que teve apoio da United Hebrew. Aquelas operárias tinham um histórico de paralisações e greves realizadas. Não fugiam da luta!
Em uma das paralisações, os patrões da Triangle e de outras fábricas contrataram prostitutas para se infiltrar na greve, a fim de desmoralizar as operárias, mas, uma vez infiltradas, as prostitutas abraçaram as lutas das operárias, aumentando o contingente de pessoas mobilizadas.
Em 1909, novamente se discutia se haveria ou não greve nas indústrias têxteis. No meio de uma audiência, uma jovem operária chamada Clara Lemlich, que já havia participado de outras paralisações da Triangle, farta da inação de seus companheiros operários e sindicalistas, discursando em iídiche, anunciou que votava em favor da greve geral. Lemlich foi considerada a líder do Levante das 20 ou 30 mil – como foi chamada a tumultuada e violenta greve, que durou 13 semanas, de novembro de 1909 a fevereiro de 1910.
“sou operária, uma dessas que estão em greve contra condições intoleráveis de trabalho. Estou cansada de ouvir oradores. (…) Estamos aqui para decidir se entramos ou não em greve. Apresento uma resolução a favor da greve geral já”. Clara Lemlich
Clara Lemlich é um exemplo excepcional da insurgência e da urgência da busca das mulheres por direitos e melhores condições de trabalho.
Nesse contexto de mobilização, durante o II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhague (Dinamarca, 1910), ao falar para todas as delegadas ali reunidas, Clara Zetkin, uma revolucionária alemã, propôs que se oficializasse um Dia Internacional das Mulheres, levando à frente o exemplo da socialista estadunidense Theresa S. Malkiel.
Zetkin havia proposto que a comemoração ocorresse junto ao 1º de maio, mas era preciso um dia específico para a questão. Assim, foi publicado no Jornal A igualdade que fizessem um dia para a causa feminina. Naquele momento, não foi imposto um dia ou um mês de referência, apenas que houvesse uma data internacionalmente estabelecida.
Já depois dessa proposta, na fábrica da Triangle, ocorreu o tão famoso incêndio do qual tanto nós ouvimos falar nesta época do ano. Na verdade, o incêndio ocorreu em 1911 e não em 1857, como algumas vezes se propaga. Aliás, 1857 é o ano de nascimento da Clara Zetkin, o que deve ter sido usado para confusão e omissão de datas e significados. O incêndio ocorreu em um dia normal de trabalho. Acusou-se os patrões de causarem o incêndio, o que nunca foi comprovado. As situações precárias da fábrica, no entanto, impossibilitaram qualquer chance de salvarem as operárias. Foram 146 mortes, num evento de caos e muita dor.
De 1911 em diante, vários países da Europa celebraram o Dia da Mulher. Na Prússia, escolheram o 19 de março, rememorando o ano de 1848, quando mulheres foram iludidas sobre o direito ao voto, durante a revolução alemã. Na Rússia, dois anos depois, a comunista Alexandra Kollontai sugeriu que março fosse o mês a ser utilizado, dado a sua importância simbólica para o proletariado, em memória da Comuna de Paris de 1871. Naquele país , governado por Nicolau II, foi proibido que se comemorasse o Dia da Mulher, o que ocorreu em clandestinidade desde 1914.
“Cada distinção especial para as mulheres no trabalho de uma organização operária é uma forma de elevar a consciência das trabalhadoras e aproximá-las das fileiras daqueles que estão a lutar por um futuro melhor. O Dia da Mulher e o lento, meticuloso trabalho feito para elevar a autoconsciência da mulher trabalhadora estão servindo à causa, não da divisão, mas da união da classe trabalhadora.” 1913 – Alexandra Kollontai, jornal Pravda “O dia da Mulher”
Se posso acentuar o motivo de se firmar em 8 de março, é devido ao momento de levante vertiginoso de mulheres, operárias e mães russas, diretamente ligado à participação de seu país na Grande Guerra, ou Primeira Guerra Mundial, como é mais conhecida . Cansadas de verem seus filhos sem trabalho, passando fome e morrendo em conflitos imperialistas, não hesitaram em tomar as ruas como forma de protesto.
Contrariando os sindicatos de operários, que não queriam aderir a uma greve naquele momento, elas saíram às ruas no então 8 de março de 1917 (27 fevereiro calendário juliano). Opondo à guerra e ao czarismo a “greve política e insurrecional de massas”, elas usaram o lema “Pão, Paz e Liberdade”. Aquele foi o prelúdio para a deflagração da Revolução de 1917, a qual não ocorreria se não fosse a tocha da luta das mulheres russas iluminando sua vanguarda. Em 1921, na III Internacional, formalizou-se que o dia da comemoração seria em 08 de março de cada ano.
A ONU promulgou, em 1975, o Dia Internacional da Mulher. Obviamente, com a polarização do mundo durante a Guerra Fria, o mundo do Capital não queria para essa data – tão forte – um passado “vermelho”, com tantas referências relacionadas ao movimento operário . Assim, as informações foram sendo misturadas. A confusão de datas é significativa, pois usa-se o incidente na Triangle de 1911 (que ocorreu em 25 de março daquele ano) como alegoria funcional, visando tirar do 8 de março seu caráter socialista, engajado com a luta pela real emancipação das mulheres. Desse modo, o sentimento ativo da luta é substituído por um sentimento cordial de luto, que perpetua a manutenção da sociedade capitalista.
Esta humilde autora que escreve lhes deseja “Feliz Dia Internacional de Luta das Mulheres!”