Paz entre nós, guerra aos senhores!

Como socialistas enfrentaram a Primeira Guerra Mundial

Por Marcelo Custódio e Diego Silva

O acirramento das tensões referentes à questão da Ucrânia tem levado as pessoas a se perguntarem quais os próximos passos geopolíticos das principais potências e quais as consequências do atual conflito para as pessoas comuns. Enquanto uns se perguntam sobre as possibilidades de escalada do conflito, outros já ficam confusamente procurando escolher um “lado”, esquecendo a mesa redonda de interesses burgueses em jogo.

A severidade dos posicionamentos do reacionário Vladmir Putin contra os interesses do hegemônico imperialismo estadunidense talvez engane alguns incautos comentaristas das esquerdas nacionalistas e/ou anti-neoliberais. Afinal, contra a “Rússia de Putin” (um modelo de capitalismo de Estado) articula-se e expande-se a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), rebento da Guerra Fria que foi criado para funcionar como cordão sanitário anticomunista e que, após a dissolução do Pacto de Varsóvia, permaneceu descaradamente como aparelho de reforço ao império estadunidense. Diante da supremacia aparentemente inconteste dos Estados Unidos desde a queda da União Soviética, em 1991, qualquer poderio antagônico ao Tio Sam, ainda que profundamente capitalista, nacionalista e conservador, tem feito os olhos de uma esquerda acomodada com a derrota brilharem encantados. Daí a apologia acrítica ao modelo socioeconômico chinês e a indiferença para com as investidas russas recentes.  

Em face da dramaticidade dos acontecimentos na Ucrânia, a esquerda tem dado respostas bem tímidas, que revelam o papel coadjuvante que assumiu nas últimas décadas dentro do cenário geopolítico internacional. Muito diferente foi o lugar que ocupou no contexto da Grande Guerra, mais conhecida como Primeira Guerra Mundial, em relação à qual conseguiu articular um posicionamento revolucionário. 

Neste texto, buscamos resgatar as críticas e proposições apresentadas por socialistas [1] para enfrentar aquela contenda bélica entre as potências imperialistas. Na contramão da esquerda de hoje, fortemente impregnada pelo reformismo, a esquerda daquele tempo era majoritariamente revolucionária. Isso nos ajuda a compreender porque concebiam que a guerra não deveria ser travada entre as nações, mas sim entre as classes sociais. Entendia-se que a única maneira de estabelecer efetivamente a paz era por meio da união de todos os trabalhadores contra a burguesia. Dessa união, emergiria uma grande pátria operária, na qual estariam federalizados os povos trabalhadores de todo o mundo [2].

Não temos o despropósito de transplantar mecanicamente as posições da esquerda de ontem para usufruto direto da esquerda de hoje. Apenas gostaríamos de apresentá-las e discuti-las, a fim de ampliar e diversificar o nosso repertório de lutas, tão carente nos dias que correm, de horizontes mais ousados em termos de transformação social.


A Grande Guerra eclodiu em julho de 1914, mas não apareceu como algo tão surpreendente no cenário mundial. Na verdade, as discussões que teorizaram sobre o imperialismo a partir de uma perspectiva de esquerda já indicavam que o conflito vinha sendo tramado pelas burguesias.

Em setembro de 1914, no Sotsial-Demokrat, jornal clandestino que era órgão central do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR, de orientação socialista), Lênin escreveu, sem espanto, que a Guerra havia começado. Explicava ele que a corrida armamentista, a disputa por mercados na fase imperialista do capitalismo e os interesses de monarquias “atrasadas” da Europa Oriental foram fatores que provocaram o confronto. Apesar da inevitabilidade da guerra interimperialista (já que o capitalismo não foi derrotado antes), na concepção de Lênin, cabia aos socialistas o papel revelar a real natureza do conflito, dissipando as mentiras dos que falavam em defesa da guerra, em “patriotismo” e em guerrear para defender uma “liberdade” abstrata:

Conquistar terras e subjugar nações estrangeiras, arruinar a nação concorrente, saquear as suas riquezas, desviar a atenção das massas trabalhadoras das crises políticas internas da Rússia, Alemanha, Inglaterra e de outros países, a desunião e o entontecimento nacionalista dos operários e o extermínio da sua vanguarda com o objetivo de debilitar o movimento revolucionário do proletariado — tal é o único real conteúdo, significado e sentido da atual guerra.

Mais certeira ainda foi Rosa Luxemburgo, cuja leitura crítica em relação aos titubeios de alguns partidos (por terem cedido às pressões pela Guerra) foi importante para reorganizar a postura do próprio campo socialista como um todo durante o conflito. Ocorre que, como projeto das burguesias, a Grande Guerra serviu também para debelar os esforços de organização dos socialistas: a força política dos trabalhadores foi aniquilada, as seções da Internacional tiveram desavenças em lutas fratricidas e os anseios das comunidades foram habilmente direcionados aos rumos do imperialismo.

Rosa Luxemburgo

Nesse cenário, avaliou a pensadora, operou-se, por parte da social-democracia (os partidos de orientação socialista, especificamente os da Alemanha, da França e da Inglaterra) uma suspensão da luta de classes. Em tal período, a classe dominante se fortaleceu às custas do proletariado. Com essa interpretação, Rosa dava voz às resoluções dos socialistas alemães que eram contrários à Guerra. Eles atacavam o argumento da “defesa nacional”, isto é, a noção de que a motivação principal para o conflito era o choque entre interesses antagônicos dos povos e de que o que estaria em jogo era a “segurança” de cada um deles: 

Nesta era de imperialismo desenfreado, já não pode haver guerras nacionais. Os interesses nacionais só servem de pretexto para pôr as massas trabalhadoras populares sob a dominação do seu inimigo mortal, o imperialismo. 

De acordo com o anarquista português Neno Vasco, as guerras entre as nações serviam sempre aos interesses da classe burguesa e jamais aos interesses da classe operária. Sendo os Estados nacionais apenas instrumentos da burguesia internacional, a realização de guerras traduzia apenas a capacidade instrumental daqueles de concretizar os interesses desta. Enquanto a burguesia continuaria usufruindo de suas riquezas livremente, os trabalhadores passariam a sofrer com a baixa dos salários em troca de um trabalho mais duro – ou, caso não encontrassem quem os explorasse no seu país de origem, seriam forçados a migrar para outros países. Isso quando não eram obrigados a ir para os campos de batalha morrer em nome de sua “pátria”. Para Neno Vasco, a situação ficava cada vez mais clara: em vez de fazer a guerra nacional, na qual o povo trabalhador guerreia entre si para defender os interesses da burguesia, a classe proletária deveria fazer a guerra social, na qual o povo trabalhador se une para atacar a burguesia. 

Em uma crônica escrita no periódico brasileiro A Lanterna, em 1915, Neno sintetizou tal visão com as seguintes palavras:

Inimigos das guerras e ódios entre povos, devemos — hoje mais do que nunca — incitar os povos a confraternizarem, a imporem a paz e a declararem a guerra aos senhores. Inimigos dos Estados, do Capitalismo e da Igreja, devemos altamente denunciá-los como fatores únicos das carnificinas internacionais, e cindir energicamente da deles a nossa responsabilidade. Se algum alvo dos nossos ataques devemos especializar, é precisamente o que nos está mais próximo; a pontaria é mais certeira. O nosso “patriotismo revolucionário” deve consistir em combater especialmente os que exploram e oprimem a “nossa pátria”, o politicante, o patrão e o padre que vivem e mandam em nossa casa. Deve consistir em evidenciar como eles nos arrastaram à catástrofe e acumularam a pólvora que havia de explodir e em impedir que eles encubram as suas próprias culpas com as do “estrangeiro”.

Nesse sentido, o único caminho possível para uma paz efetiva e duradoura entre todos os povos trabalhadores passava necessariamente pela revolução social. Ela erradicaria a fonte primária de todos os males que afligem a humanidade sob o signo do capitalismo: a propriedade privada. Uma vez socializados os meios de produção, as fronteiras do Estado-Nação desapareceriam para dar lugar a uma grande federação de povos trabalhadores. 

No entanto, a esquerda da época entendia que a revolução social não cairia do céu, pronta e acabada. Era preciso trabalhar para que ela acontecesse! Por esse motivo, a militância deveria estar atenta quanto às responsabilidades que deveria assumir quando o espírito da indignação tomasse conta das mentes e corações da classe trabalhadora. Foi assim que se manifestou a anarquista brasileira Maria Antônia Soares, quando pronunciou as seguintes palavras:

Logo que se faça notar na massa popular os sintomas precursores da revolta, procuremos fazer nosso o movimento, procuremos afastar os chamados protetores do povo para longe, para onde a sua influência perniciosa não possa produzir efeito. Façamos tudo o que as circunstâncias exigirem! Só assim estaremos à altura da situação e da nossa missão [3].

O “tudo” que a anarquista menciona incluiu um sem fim de atividades, tais como congressos em prol da paz, atos deserção militar em massa, greves gerais e processos revolucionários que eclodiram em distintas partes do globo. Da Alemanha à Argentina, passando pela Manchúria e pela Rússia, chegavam notícias anunciando o fim do capitalismo e o início do socialismo.   

O posicionamento revolucionário deixava bem claro para a esquerda da época qual guerra merecia ser lutada e na trincheira de que lado valia a pena estar. Diante do posicionamento majoritariamente reformista da esquerda de hoje em face da guerra na Ucrânia, perdida em estratégias que não conseguem transcender o capitalismo, enchemos o nosso peito de ar para gritar os versos de A Internacional, que tanto animaram os socialistas de outrora: “Paz entre nós, Guerra aos senhores!”


Notas:

[1] Entendemos, aqui, a palavra socialista na sua definição genérica, ou seja, como um conjunto de pessoas que professam uma doutrina que têm em comum a abolição da propriedade privada e a socialização dos meios de produção entre o povo trabalhador.

[2] Ainda que existam divergências entre algumas correntes socialistas, sobretudo entre anarquistas e marxistas, quanto aos meios de construir uma sociedade comunista (destruição ou tomada do Estado), há uma convergência na acepção de que tal sociedade deve ser uma grande federação autogerida dos povos trabalhadores. 

[3] SOARES, Maria Antônia. Qual será o desfecho da guerra atual?. In: LUDMILA, Aline et al. Unidas nos lancemos na luta: o legado anarquista de Maria A. Soares. São Paulo: Tenda de Livros, 2021.

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