Patos de Minas, uma cidade hostil

Mídia local, pessoas em situação de rua, higienismo contemporâneo e capitalismo

Em 6 de junho de 2021, Farley Rocha publicou, no portal Patos Hoje, uma matéria em que relatava a situação de incômodo de um comerciante patense. O título era “Comerciante denuncia morador de rua que vem vomitando todas as noites em frente a sua loja: todas as vezes que chega para trabalhar encontra a porta da sua loja suja de vômitos”.

No curto e descuidado texto, o autor caracteriza a situação como “desagradável”, diz que as câmeras de segurança registram, “diversas vezes, o mesmo morador de rua indo até o local durante a noite para consumir bebida alcoólica e sempre vomitando”, localiza a loja nas proximidades do Terminal Rodoviário e reitera a “denúncia” do comerciante, que, segundo Farley, suspeita que o indivíduo em situação de rua faça uso de drogas.

De certa forma, a construção rasa do texto se relaciona diretamente com um vídeo de dois minutos, que mostra quatro filmagens das câmeras de segurança. Nelas, o homem de que se fala ingere algum líquido e vomita. Comentando as filmagens, uma voz, possivelmente a do comerciante, diz:

Falta de opção não é, porque, se ele quiser internar, o governo federal já liberou as verbas, as internações já estão todas liberadas. É só ele falar ‘Eu quero’ [que] eu mesmo sou um que sou um voluntário para levar ele e deixar lá dentro da Fazendinha.

Não pretendo, aqui, questionar que a situação é desagradável. De fato, é – não só para o comerciante, mas também para o homem em situação de rua. Mas, em vez de enfatizar o incômodo do comerciante e construir a reportagem como se as imagens falassem por si sós, como fez Farley Rocha, pretendo questionar sobre a atenção midiática ao caso e o sentido dessa atenção. Busco, então, contextualizar o ocorrido para, então, pensar não só a reportagem negligente, mas a situação das pessoas que estão vivendo na rua e as causas disso.

Observando a mídia 

Logo de início, cumpre notar o sentido unilateral da narrativa da reportagem. Embora alegando que a presença do dito “morador de rua” é diária, costumeira, o jornalista não procurou informações sobre o sujeito da reportagem, que aparece objetificado, embora exposto e taxado direta e indiretamente. Ao ler o texto, a impressão que se tem é de que o “morador de rua” em questão, enquanto tal, além de não ter nome, seria supostamente alcoólatra e usuário de drogas.

No vídeo, porém, não há evidência consistente de uso de drogas pelo acusado. O que o comentador das imagens trata como se fosse substância psicoativa é, na verdade, passado na pele dos braços e na cabeça de um outro indivíduo. A “Fazendinha [Senhor Jesus de Patos de Minas]”, portanto, um centro tido como terapêutico, não necessariamente deveria ser indicado como o destino adequado ao homem que aparece nas filmagens – ao menos, não sem a indicação de um profissional especializado.

Além disso, vale notar que o próprio termo “morador de rua” já carrega uma contradição: morador é quem tem endereço, um lugar onde mora, o que não é o caso, obviamente, do “morador de rua”. A terminologia usada na matéria do Patos Hoje exerce a mesma função que termos como “sem-teto” ou “meninos(as) de rua”: naturalizar a situação, dando a entender que não são pessoas que “estão na rua”, mas que são “pessoas de rua”. [1]

Isso posto, vale perguntar o porquê de o Patos Hoje publicar uma matéria como aquela. O discurso não incita nenhuma ação por parte do Poder Público para resolver o problema, tampouco ajuda o comerciante ou o homem “denunciado”. Poder-se-ia afirmar que se trata de apontar que a condição social das pessoas em situação de rua é grave e causa transtornos, mas a matéria não trouxe nenhum dado ou questionamento de natureza sociológica, histórica ou cidadã.

Assim, o efeito da reportagem é provocar pena em uns e ódio em outros, a partir da imagem de que a ordem da cidade estaria ameaçada pela presença de “moradores de rua fazendo sujeira”. O texto pode até mesmo ser considerado uma forma de expor o homem em situação de rua a uma vexação pública.

Basta analisar a repercussão da matéria para constatar que, vistas como apartadas da sociedade, as pessoas em situação de rua passam, na prática, a perder o direito de ter direitos. À comiseração de alguns internautas se contrapõe o higienismo de outros. Digo higienismo porque, na horrorosa área de comentários do site (já famosa por ser repleta de absurdos imoderados), temos o desprazer de ler coisas como “Uma das melhores opções seria a instalação de grades na frente da loja, resolveria 90%” ou “se o comerciante dá um cacete nesse folgado(…)” e outras.

Como é notório, há quem defenda que os comércios de Patos tenham arquiteturas hostis, planejadas para espantar pessoas em situação de rua. Também há quem considere que a agressão é a solução cabível e que quem se contrapõe a tal medida está errado. O raciocínio dessas pessoas não vê injustiça na precariedade social. Elas atribuem o problema somente a aspectos morais individuais. Daí ser tão comum lermos coisas como “não é falta de opção” ou “preferem viver essa vida”.

Com efeito, vivemos em uma cidade construída para ser hostil, governada por quem tem repulsa para com pobres e desabrigados (não raramente, uma repulsa sob o véu da caridade). A cidade também tem a estranha mania de querer se livrar da aparência dos problemas sociais, projetando a imagem de cidade “limpa” e “ordeira”. O higienismo, que se tornou ideologia e modo de organização do espaço público no século XIX, tem tudo a ver com a urbanização de Patos.

Na foto de Helen Cristina, banner encontrado no Terminal Rodoviário José Rangel em janeiro de 2021. Apesar da aparente boa intenção, a primeira afirmação acaba deixando escapar que não se trata exatamente de não querer que pessoas tenham que morar nas ruas, mas de não querer pessoas morando nas ruas. Com a logo da Prefeitura, o texto não traz nenhum indicativo de serviços públicos de assistência social nem indica qualquer responsabilidade do Poder Público.

Aqui, como no restante do país, vigora a percepção de que é possível, sempre, livrar-se dos indesejados com uma simples realocação. Pode ser prendendo-os em alguma cadeia, enviando-os para alguma “colônia correcional agrícola” [2], embarcando-os em algum ônibus com destino às cidades vizinhas ou até chamando a imprensa para dar visibilidade a um incômodo e, assim, punir. O importante, na mentalidade higienista, é limpar do espaço a presença dos pobres, pessoas em mendicância, bêbados, usuários de drogas e outros “desordeiros”.

Todos esses “tipos” são quase sempre confundidos. Numa mídia sedenta por alimentar o discurso (falso) da suposta guerra às drogas, são reduzidos ao estereótipo de “envolvido(a) com drogas” ou simplesmente “drogado(a)”. Uma vez considerada como tal, qualquer pessoa que não seja branca e rica é desumanizada. Pode ser executada, sofrer violências de toda sorte, passar fome ou até morrer sozinha, como já ocorreu. Em vez de se acionar profissionais especializados em serviço social [3], espera-se que algo ruim aconteça para depois naturalizar tudo com indiferença.

Pessoas em situação de rua: contexto e definição

De acordo com dados do Ministério da Cidadania, Patos de Minas tem, pelo menos, 64 famílias inscritas no Cadastro Único que estão em situação de rua. A cidade tem 153 mil habitantes. Contar pessoas em situação de rua não é tarefa simples e os dados existentes são pouco precisos. Afinal, se a lógica da sociedade capitalista é tirar essas pessoas do campo de visão, como contar quem é invisibilizado? Isso implica, obviamente, no problema da subnotificação. 

Gráfico gerado pelo autor com base nos dados da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) do Ministério da Cidadania.

Apesar disso, informações mais recentes, provenientes do Cadúnico e divulgadas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que reúne dados sobre famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, mostraram que há cerca de 150 mil pessoas em situação de rua contabilizadas no Brasil. Minas Gerais tem 18 mil pessoas nessa condição. A imensa maioria do contingente é composta por homens. No país, 68% dessas pessoas se consideram pretas ou pardas. Em Minas, 80%.

Saber quem é a população em situação de rua torna-se algo muito complicado. Notoriamente, números não bastam para obter um perfil completo. Daí a diversidade de histórias e condições que o Estado brasileiro, pelo Decreto 7053, de 2009, tentou abranger na definição de “pessoas em situação de rua”:

o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.

Pelo menos três aspectos precisam ser destacados nessa definição.

O primeiro é que ela reconhece a variedade presente no grupo, de tal sorte que “população em situação de rua” não cabe em nenhum estereótipo, seja ele de mendicância, falta de habitação ou (e muito menos!) envolvimento com álcool e drogas. 

Disso se segue um segundo ponto: não importa, para ter direito ao que é estabelecido na política pública criada pelo referido decreto, se o sujeito está ou não dependente de álcool ou drogas. Isso remete ao princípio IV do Art. 5º da lei, que estabelece o “atendimento humanizado e universalizado” como princípio de toda a Política Nacional para a População em Situação de Rua. 

O terceiro ponto importante é que a definição descreve problemas muito frequentes vivenciados por essa população, demonstrando que não se trata apenas de uma questão econômica.

Um levantamento feito no município do Rio de Janeiro, depois de ouvir 3715 pessoas em situação de rua, constatou que as drogas e o desemprego ficam atrás do principal motivo que leva tais pessoas à condição: o conflito familiar ou o fato de a família já morar na rua (40,41% dos casos). 

Como é de se perceber, os números ajudam a desmentir preconceitos sobre o tema. Eles apontam para questões de classe, gênero e raça e para trajetórias individuais e familiares que se inserem no contexto de uma sociabilidade em que as pessoas tendem a estar totalmente desamparadas. 

No entanto, vale lembrar que não se trata de um “novo problema social”, mas de expressões contemporâneas do “velho problema social” (que se tornou uma “questão” no início do século XIX). Essas expressões são agravadas pelo contexto de desresponsabilização do Estado e responsabilização abstrata da “sociedade civil” e da “família” pela ação assistencial [4]. Não por acaso, em Patos, quando se fala em pessoas em situação de rua, logo aparece alguém para falar em organizações não governamentais, frequentemente associadas a atividades religiosas. Apesar da existência delas, a pobreza e a desigualdade têm se exponenciado, demonstrando a longeva permanência delas no capitalismo. 

Essa permanência só se explica se percebermos que, no capitalismo, a pobreza não é consequência de um desenvolvimento econômico e social precário que levaria à pauperização de várias camadas sociais ou mesmo de uma crise. Ao contrário: é o próprio desenvolvimento das forças produtivas que, em um sistema de acumulação privada de capital, produz a pobreza. Se há paliativos, é por causa das lutas e cobranças dos trabalhadores, que são cada vez mais necessárias para frear a exploração e conseguir redistribuição de renda, direitos básicos e melhores condições de vida[5].


Notas:

[1] RESENDE, Viviane de Melo. “Não é falta de humanidade, é para dificultar a permanência deles perto de nosso prédio”: análise discursiva crítica de uma circular de condomínio acerca de “moradores de rua” em Brasília, Brasil. Discurso & Sociedad, 2(2) 2008, p. 426. Disponível em: <http://www.dissoc.org/ediciones/v02n02/DS2(2)Resende.html> Acesso em 7 jun. 2021.

[2] ALVES, A. W. S. “Entre o bem viver e os ditames da moral pública: as experiências da vadiagem e suas repressões numa Patos oitocentista”. Alpha, v. 20, n. 2, p. 170, dez. 2019. Disponível em: https://revistas.unipam.edu.br/index.php/revistaalpha/issue/view/159/alpha_v20_n1_2019. Acesso em: 9 jun. 2021.

[3] Dados de localização e contato do CREAS – Centro de Referência Especializado da Assistência Social em Patos de Minas estão disponíveis em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/mops/serv-creas.php?s=1&codigo=314800# Acesso em 09 jun. 2021.

[4] NETTO,José Paulo. Desigualdade, pobreza e Serviço Social. Revista Em Pauta, n. 19. 2007. cf. p. 156 e 159. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/190> Acesso em 9 jun. 2021.

[5] MONTAÑO, Carlos. “Pobreza, ‘Questão Social’ e seu Enfrentamento”. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo. Editora Cortez, n.110. 2012. p. 284 e 285. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-66282012000200004 Acesso em 9 jun. 2021.

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