A pandemia da covid-19 desencadeou um debate sobre saúde mental que vínhamos adiando há tempos. Mas, saibam que a deterioração da saúde psíquica de milhares de indivíduos não surgiu com a necessidade do isolamento social. Trata-se da nova ordem estabelecida, cujos pilares são a globalização e o neoliberalismo.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019, 9,3% da população brasileira sofria de ansiedade, o que colocava o país no primeiro lugar do ranking mundial. Já um levantamento feito naquele mesmo ano pela Vittude, plataforma on-line voltada para a saúde mental, apontava que 37% das pessoas sofriam de stress extremamente severo, enquanto 59% se encontravam em estado severo de depressão.
Conforme a Previdência Social, em 2017, episódios depressivos geraram 43,3 mil auxílios-doença, sendo a 10ª doença com mais afastamentos. Doenças classificadas como outros transtornos ansiosos também estão entre as que mais afastaram, na 15ª posição, com 28,9 mil casos. O transtorno depressivo recorrente apareceu na 21ª posição, com 20,7 mil auxílios.
Liberdade por coação, um paradoxo que faz sentido
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han já alertava sobre isto em seu livro-ensaio “Sociedade do Cansaço”, publicado em 2010. Segundo ele, enfermidades neurais são formas de violência sistêmica, produtos do excesso de positividade. Ou seja, pelos excessos de informação, trabalho e funções que marcam a sociedade pós-moderna. Para Han, com o fim da Guerra Fria, estabeleceu-se uma mudança de paradigma, de uma sociedade negativa (ou disciplinar) para uma sociedade positiva (ou livre).
Na sociedade disciplinar do século passado, existia um controle das autoridades sobre a sociedade em domesticar e conter os indivíduos para que fossem mais produtivos para o capital. A sociedade disciplinar é a sociedade das fábricas, dos manicômios, dos quartéis, dos internatos – sempre subordinando as massas ao controle de um chefe, que poderia ser uma autoridade ou um patrão. Porém, esse modelo de sociedade ficou no passado e, hoje, vivemos em uma sociedade “livre”.
Entretanto, para o filósofo sul-coreano, essa liberdade, característica da atualidade, seria uma liberdade de coação, pois os mecanismos de controle ainda existem – agora não mais exercidos pela sociedade disciplinar de outrora, mas pelo próprio indivíduo que passa a conter seus impulsos e exigir mais de si mesmo. Ou seja, o discurso hegemônico da liberdade é um upgrade da exploração capitalista. Nesta nova fase, deixou de explorar os indivíduos por meio dos mecanismos tradicionais, para incutir na sociedade ideias de empreendedorismo e livre iniciativa. A autoexploração é essencialmente mais produtiva que a exploração.
Sobre esse indivíduo, que se crê livre e empreendedor de si mesmo, acaba recaindo uma exaustiva carga de trabalho, porque nessa sociedade do desempenho não existem fronteiras entre o tempo do trabalho e o tempo do lazer. Dessa forma, o indivíduo precisa dedicar-se e superar-se sempre, seguindo os ditames do mundo globalizado.
A autoexploração é essencialmente mais produtiva que a exploração.
Assim, em um ambiente extremamente competitivo, é preciso se destacar de todas as formas possíveis, sempre superando seus ganhos e metas. Quanto mais produtivo, melhor. Porém, diante de tais metas inalcançáveis, muitas pessoas sucumbem pelas exaustivas jornadas de trabalho ou se frustram por não atingir as expectativas – desenvolvendo as mais variadas doenças psíquicas, como a síndrome de Burnout, a depressão, a ansiedade ou o estresse.
Sociedade do cansaço, consequência da sociedade do desempenho
Para Byung Chul-Han, neste contexto de precariedade e autoexploração, existiria a sociedade do cansaço, ou seja, um panorama de indivíduos esgotados, frustrados e doentes por não acompanharem o ritmo atual – por isso a alta incidência de doenças psíquicas. Nesta sociedade do cansaço, todos estão ocupados, fazendo tudo e nada ao mesmo tempo. Levam vidas vazias, porque são apenas preenchidas pelo trabalho.
A situação é ainda pior em um contexto no qual as redes sociais e seus algoritmos repetem os padrões culturais da sociedade do desempenho aprisionando pessoas em bolhas artificiais sem qualquer oportunidade crítica. Essas redes sociais se transformaram no principal instrumento de legitimação do atual sistema.
Não por acaso, Han já havia conjecturado a respeito do fenômeno dos coaches – muito antes de estes existirem e virarem motivo de piada. Coach é aquele “profissional” responsável por motivar seus clientes a se superarem profissionalmente ou pessoalmente. É a personificação do que foi abordado aqui. É por isto que cabe ao indivíduo entender seus limites e procurar ajuda a profissionais de saúde mental e não a coaches motivacionais. Para além disso tudo, antes precisamos nos reconhecer (redescobrir) como verdadeiramente humanos e não como máquinas perfeitas para o capital ou manequins de redes sociais.