A pedagogia do oprimido e a norma culta

Uma discussão essencialmente política

Penso constantemente na facilidade assustadora com que as pessoas separam política de determinadas ações individuais e coletivas. Conversam sobre tudo, mas, quando tocam um assunto político (que mais fala sobre representantes políticos do que sobre política), já se posicionam atrás de um muro protetivo e esquivam-se do assunto, como se, dali em diante, ninguém pudesse ultrapassar: “Melhor não falar de política, para não discutirmos”. Isso já é evidente. Nesse sentido, criam-se nichos específicos de socialização para cada assunto, dentre eles relacionamentos interpessoais, família, vida profissional, estudos… Sobre política, não. Sobre esse assunto não se pode falar.

A verdade é que falamos notoriamente sobre nosso posicionamento político a cada instante, em qualquer decisão que tomamos, porque somos seres indiscutivelmente políticos, se vivemos em sociedade. Daí introduzo meu tema.

Há algum tempo, recebi um vídeo, de um amigo, que falava sobre a norma culta da língua portuguesa. O tal vídeo era de uma professora chamada Cíntia Chagas e era um corte de um programa, do qual a professora participou. O discurso do corte:

“Os professores aprendem, hoje em dia, que eles não devem falar que a criança ou que o adolescente está cometendo um erro de português, mas sim que ele cometeu um desvio da norma culta. (…)

[O que se incute nas escolas hoje] é a ideia de que a língua portuguesa, em vez de ser um instrumento de ascensão social, que é, ela é um instrumento de opressão, de exclusão, na medida em que, no nosso país, quem tem acesso à norma culta é, de fato, a elite. Logo, seria algo para excluir essas pessoas que não tiveram acesso a essa norma culta. (…) A gente não pode nivelar por baixo. Eu não posso falar com um aluno “’nóis vai tá certo’, que ‘nóis vai’ usamos de modo informal”. Eu não posso desmerecer a norma culta, porque a norma culta é a única linguagem, o único meio, a partir do qual a gente consegue fazer interpretação de textos mais elaborados e de construir pensamentos mais elaborados. Então quando a escola, pautada em um bom mocismo, em um politicamente correto, em uma ideologia do oprimido, fala que a norma culta não merece todo esse valor e toda essa atenção, que ela é apenas uma variante linguística como outra qualquer…”

A fala da professora não terminou, porque foi interrompida pelos entrevistadores. 

A priori, a professora Cíntia foi convidada a ir ao programa – onde ela construiu esse discurso – para falar sobre a ideologia por trás do pronome neutro, utilizado, hoje, na língua portuguesa coloquial. Em todo o momento, Cíntia critica a escola por se basear em ideologias (dentre elas a “do oprimido” – referência a Paulo Freire – e à “ideologia de gênero”, mencionada por ela) que, na interpretação dela, ensinam as crianças a se portarem como inferiorizadas, como minorias, como vítimas sociais. 

Pessoas inúmeras comentam sobre as ideias da Cíntia, inclusive em escolas de educação básica, e reproduzem, de bom grado, suas proposições sobre a norma culta, defendendo que sim, ela não deve ser vista só como uma variante. Ela é soberana. O fio das miçangas está no fato de que essas  são as mesmas pessoas que param a discussão quando se fala em política, já que, para elas, uma coisa não tem a ver com outra. 

O discurso da Cíntia é não mais do que um discurso essencialmente político, por meio do qual ela se posiciona em seu devido lugar social, de conhecedora da norma culta. Por isso, como alguém em uma posição de prestígio, ela quer trazer, a custo da degradação da imagem de Paulo Freire, a norma culta, novamente, como soberana. 

Decerto, faz tempo que a professora Cíntia não dá aulas em escolas de ensino básico, tendo em vista que a disciplina de língua portuguesa é completamente voltada para o ensino da norma culta, tendo alguns poucos comentários, no fim de ensino fundamental II e no 1o ano do ensino médio (com retomada no 3º ano do Ensino Médio), sobre as variedades linguísticas, que são apenas mencionadas, pouco estudadas, de fato. E, nesse caso, entender que nossa fala cotidiana é válida, também, como ferramenta de comunicação, é incluir o indivíduo, o aluno, no meio social.

Freud utilizava como principal ferramenta para o processo de análise a língua, e a língua da forma como viesse: mais próxima ao pensamento e à individualidade possível do sujeito. A língua é maior que a norma, no sentido de que há recursos, nela, que a norma culta jamais poderia oferecer para expressarmos o que sentimos, o que pensamos e toda nossa visão do mundo. 

Além disso, para o linguista suíço Ferdinand de Saussure, a língua é um código linguístico, um mero significante, que traduz, com muitas limitações, nosso pensamento abstrato e complexo. Desse modo, se a língua como um todo já é limitada diante da nossa capacidade intelectiva, a norma culta é um quase nada diante dos recursos que conseguimos criar, com as tais variantes, que, pelo que se infere da fala de Cíntia, são limitadas a um “nois vai”, ou qualquer termo similar.

A professora Cíntia, relacionando norma culta e visibilidade social, não descarta só o aluno do ensino básico, que fala conforme aprendeu em seu cotidiano e se expressa genuinamente assim porque há toda uma cultura em torno dele no momento da fala. Ela exclui, também, escritores da literatura que se opuseram, não à norma culta, mas à soberania dela, como Manuel Bandeira, Clarice Lispector e o próprio Guimarães Rosa. Aliás, este último usava a língua como bem entendia e conseguia expressar, com riqueza e muita singularidade, ideias, histórias, modos de vida – de uma forma como só as variantes conseguem comunicar. 

Cíntia Chagas não deseja que o aluno ascenda socialmente, porque a ascensão social não depende de como falamos, infelizmente. Se fosse assim, os professores de língua portuguesa deste país ganhariam mais do que 30 reais (quando muito) por uma aula e seriam um tanto menos negligenciados pelo Estado. A norma culta é sim importante, mas a professora não está pregando o ensino dela (que já existe); está pregando o retorno ao absolutismo da norma culta como forma de expressão, como regra para todas as situações, como norma soberana e, para isso, ela precisa deletar a importância das variantes.

Nesse sentido, é muito evidente que a preocupação da Cíntia é obter notoriedade pelo retorno de um discurso que sempre foi elitizado e que hoje volta com uma força política gritante, força que zomba das minorias e enaltece uma direita que tem perdido atenção sempre que estas conquistam posição de representatividade. Exagero?

Já sabendo disso, resolvi conferir o posicionamento ideológico de Cíntia, lendo as publicações dela nas redes sociais. Há muitos vídeos em que ela discute exclusivamente sobre ideologias sociais – nem as discussões linguísticas estão presentes. Um deles contém um aluno de capital, de 10 anos de idade, de escola privada (inclusive, a escola básica desse aluno é de língua inglesa, ou seja, é de acesso apenas à alta burguesia brasileira, que sobrepõe o inglês ao português, no próprio Brasil), rapaz que foi convidado para “opinar” sobre a ideologia de gênero nas escolas. O menino, por sua vez, mostra-se indignado com o “surgimento” da possibilidade de uma pessoa trans entrar no banheiro em que ela se sentir mais representada. Ele se diz ameaçado e com medo de pertencer a esses ambientes.

Imagem extraída do Instagram de Cíntia Chagas

Para além disso, Cíntia tem entrevistas com convidados como Michel Temer e Fernando Collor, que renderiam outro texto, bem maior que este. Para alguém que se sente ameaçada com a ideologia do oprimido, Cíntia Chagas se mostra muito bem amparada pelos figurões da direita brasileira e segue em seu propósito de divulgar a exclusão como método de ascensão social: a riqueza de uns sempre dependerá da opressão de outros.

A partir disso, retomo um texto que li, de Martha Medeiros, intitulado “A elegância do conteúdo”, no qual ela menciona um livro de Muriel Barbery, o qual conta a história de uma zeladora que precisava fingir não saber se comunicar com eloquência para não humilhar seus patrões, que atrelavam a boa comunicação a pessoas com elevado poder aquisitivo e com posições sociais de prestígio. Finalizo, então, com a contribuição de Medeiros: “Pouco valerá [o bom desenvolvimento econômico de um país] se formos uma nação de medíocres com dinheiro”.

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