Neno Vasco: um amante apaixonado da cultura operária

Este documento histórico nos ajuda a melhor compreender o que foi a cultura operária luso-brasileira, da qual Neno Vasco foi, sem sombra de dúvidas, um dos amantes mais apaixonados.

O texto a seguir é um prefácio escrito por Thiago Lemos Silva para o livro A Greve de Inquilinos, de Neno Vasco, lançado pelas editoras Ambiente Arejado e Entremares, em 2018. Em Patos de Minas, o presente livro pode se adquirido na Livraria Ambulante Comuna de Patos.

Por Thiago Lemos Silva

“Atualmente, a nossa situação no mundo socialista é esta: Proscritos do ‘Partido’ porque, não menos revolucionários que Vaillant e Guesde, tão resolutamente partidários da supressão da propriedade individual, somos além disso  o que eles não são: revoltados de cada instante, homens verdadeiramente sem deus, nem amos, nem pátria, inimigos irreconciliáveis de todos os despotismos, morais ou materiais, individuais ou coletivos, isto é, das leis e das ditaduras (incluindo a do proletariado) e amantes apaixonados da cultura próprria”. [1]

Em 1920, Neno Vasco evoca a Carta aos Anarquistas de Fernand Pelloutier, escrita em 1899. Ao retomar essa célebre passagem do libertário francês, o autor do livro Concepção Anarquista do Sindicalismo nos oferece uma imagem sugestiva para refletirmos a respeito do que de fato singulariza a militância anarquista. Ao entender que a consciência de classe encontrava sua fonte na ação da própria classe, seus membros colocam em primeiro plano a ação direta dos trabalhadores e trabalhadoras na sua luta contra o capitalismo e as instituições que o salvaguardam, tais como o Estado, o Exército e a Igreja.

Essa estratégia de luta política, cara a uma longa genealogia libertária que vai desde a seção federalista da AIT no século XIX até a ala sindicalista revolucionária da CGT no século XX, não se esgota no plano econômico, mas, se prolonga no âmbito cultural. Pois, aqui a libertação integral do proletariado passa tanto pela ruptura com as correntes materiais que perpetuam a exploração da sua força de trabalho, quanto pela destruição dos grilhões simbólicos que a sustentam. Dai a necessidade da criação de uma cultura própria por parte da classe trabalhadora, que, em oposição à cultura burguesa, permitiria a elaboração de uma nova cosmovisão de mundo. 

Iniciar este texto falando a respeito da cultura na militância anarquista de Neno Vasco não constitui um dado fortuito. Afinal de contas, concebe-la, fomenta-la e, principalmente, pratica-la no interior do movimento operário, foi talvez a tarefa para qual ele mais se dedicou durante sua breve, porém, intensa trajetória no Brasil e em Portugal, países no qual ele viveu e militou nas duas primeiras décadas do século XX.

Ainda que Neno Vasco fosse um anarquista que defendeu com vivacidade o sindicalismo revolucionário, por causa do seu temperamento acanhado ele nunca assumiu o papel do militante clássico, que ajudava na edificação direta de sindicatos, se colocava à frente da organização de congressos operários ou ia para frente das fábricas discursar para os trabalhadores e trabalhadoras em greve. O front assumido por Neno Vasco nas trincheiras libertárias estava em outro lugar, qual seja, na direção de periódicos, na publicação de seus escritos, na tradução de autores estrangeiros e na edição de livros, atividades estas que fizeram dele uma presença marcante no mundo cultural do movimento operário de língua lusófona.

Dono de uma pena singular, Neno Vasco se fez notar no campo editorial anarquista tanto pelo rigor analítico quanto pela beleza artística que seus textos revelavam. Transitando entre diferentes gêneros literários, tais como o ensaio, a crônica, o conto, a poesia e a dramaturgia, o autor redimensiona as fronteiras entre estética e política. Sob sua pena, o texto sempre conta com um conteúdo que busca desenvolver uma tese para persuadir o público operário. No entanto, este conteúdo não se impõe a ponto de apagar sua forma, transformando o texto literário em propaganda dirigida. Sua preocupação com o estilo mostra que o autor visava igualmente sensibilizar o público operário.

O intuito de persuadir por meio do cultivo do intelecto e sensibilizar por meio do refinamento dos sentidos, leva Neno Vasco a conceber a formação sindical a partir de uma perspectiva mais ampla. Não se tratava em sua opinião de conferir aos sindicatos funções estranhas à luta econômica, mas sim de empregar meios de potencializar a luta cultural. Os sindicatos deveriam assim e na medida de suas possibilidades, contar com salas para assembleias, bibliotecas, conferências, concertos e espetáculos onde os trabalhadores e trabalhadoras teriam acesso à literatura, música, teatro  e arte declamatória, produzida pelos seus próprios companheiros e companheiras.

Na contramão das posições hegemônicas de cultura operária de sua época, o autor entendia que a arte tinha uma função análoga à da propaganda. Mesmo sem se confundir com a última, a primeira desde que posta ao alcance do povo trabalhador colaborava para o processo revolucionário, uma vez que

“Comovendo-nos, aperfeiçoando-nos o sentimento, ela torna-nos mais sensíveis e sociáveis, criando novas necessidades superiores, delicados e finos sucedâneos dos prazeres brutais e animalescos, fomenta a revolta contra uma organização social em que essas necessidades não são amplamente satisfeitas”. [2]

As estratégias estético-políticas de Neno Vasco podem ser evidenciadas no texto teatral A Greve de Inquilinos, que foi originalmente publicada em 1923 pela editora portuguesa A Batalha e agora republicada pelas editoras brasileiras Ambiente Arejado e Entremares, em 2018. Testemunho indelével do esforço do autor para contribuir na luta por um mundo mais livre, igualitário e porque não belo, este documento histórico nos ajuda a melhor compreender o que foi a cultura operária luso-brasileira, da qual Neno Vasco foi, sem sombra de dúvidas, um dos amantes mais apaixonados.


[1] PELLOUTIER, Fernand apud VASCO, Neno. Concepção Anarquista do Sindicalismo. Porto: Afrontamento, 1984,p.80.

[2] VASCO, Neno. Octave Mirbeau. A Sementeira, Lisboa. 12/05/1917.

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