Neno Vasco por Neno Vasco

fragmentos autobiográficos de um anarquista

A seguir publicamos um prefácio escrito por Jacy Seixas para o livro Neno Vasco por Neno Vasco: fragmentos autobiográficos de um anarquista, de autoria do nosso companheiro Thiago Lemos Silva, que acaba de ser lançado. Quem desejar adquirir o livro, pode obtê-lo na Editora Cancioneiro ou então na nossa Livraria Comuna de Patos.

Por Jacy Seixas

[…] e sabia, por outro lado, que não há nenhum modo mais eficaz de romper a magia da tradição do que recortando o “rico e estranho”, coral e pérolas, daquilo que fora transmitido numa única peça maciça.

Hannah Arendt. “O pescador de pérolas”. Walter Benjamin: 1892-1940

Com palavras precisas, Hannah Arendt rememora Walter Benjamin em ensaio célebre no qual traça uma espécie de biografia intelectual do amigo, entrelaçando o pensamento e a pessoa desse pensador inclassificável, tão nosso contemporâneo, que soube “perfurar” a tradição para atualizá-la em seus “fragmentos de pensamento” e “formas e contornos cristalizados”, para, só assim, capacitá-la a agir. De forma espontânea e subversiva, os comentários de Hannah Arendt vieram-me, muitas vezes, à mente ao ler Neno Vasco por Neno Vasco: fragmentos autobiográficos de um anarquista, que evoca a história e a tradição anarquistas, tematizando a vida de um de seus mais importantes militantes das primeiras décadas do século XX. Gostaria, inicialmente, de tecer alguns comentários sobre esta sincronia, pois a analogia revelou-se em nada disparatada, possibilitando-me uma clave para apresentar o livro a seus leitores. 

Neno Vasco por Neno Vasco: fragmentos autobiográficos de um anarquistacomeçou a ser pensado e escrito por Thiago Lemos Silva quando do desenvolvimento de seu Mestrado, cuja dissertação foi defendida na UFU, em 2012. Tive, então, a satisfação, como professora e orientadora acadêmica, de acompanhar seus primeiros passos, ao mesmo tempo hesitantes e enérgicos, de jovem pesquisador, sua imbatível curiosidade juvenil, sua abertura generosa aos desafiantes temas contemporâneos que lhe eram apresentados e que agitavam nosso “pensar a história”. Hoje, a satisfação e a alegria se renovam com essa espécie de encontro marcado com biógrafo e biografado, após uma década de amadurecimento intelectual do primeiro que nos propicia, com este livro, o conhecimento de um Neno Vasco (1878-1920) transbordante de contemporaneidade.

O livro apresenta-se com um título algo enganador – mas a quem Thiago quer enganar? – ou como uma armadilha capciosa, colocada de imediato ao leitor: Neno Vasco por Neno Vasco… Fórmula que anuncia, em sua enunciação, não a dissimulação autoral, mas a escrita de si, precisamente um dos lócus teóricos que constrói e fundamenta a narrativa histórico-biográfica proposta e que supõe – como finamente discutido ao longo do livro – a presença do/de outro(s), de instáveis jogos de alteridade. Alteridades e diálogos encetados com seus contemporâneos, se pensarmos a construção subjetiva de Neno Vasco, mas também – não podemos descurar – diálogos que cortam a diacronia temporal e servem de fortes elos entre o historiador e seu personagem.

Salta aos olhos um aspecto que ilumina a compreensão do livro: a identificação, ou melhor, os laços de cumplicidade e engajamento que fazem com que vidas, lutas e debates do passado, com suas incertezas e desafios, se projetem, em lusco-fusco, às do presente. Pois é do presente que a trajetória de Neno Vasco, tramada historiograficamente por Thiago Lemos, parte e, sem dúvida, é no nosso presente que ela se instala, com os desconfortos e acomodações próprios à escrita de todo herdeiro, posição e disposição que percebo no autor. Por isso, talvez, o referir-se a Neno Vasco com o uso reiterado da expressão “nosso biografado”; o uso do possessivo exprimindo a proximidade, o longe-perto narrativo e o engajamento mútuos.

Esses “fragmentos autobiográficos” de um anarquista não acolhem concessões à nostalgia de um tempo revoluto ou à glorificação romântica de um Neno Vasco heroicizado ou às batalhas revolucionárias do passado, ciosamente analisadas e interpeladas. Evoco, ainda uma vez, Hannah Arendt traduzindo Walter Benjamin, o “pescador de pérolas”:

Mas, como quer que seja, é preciso agarrá-lo [o presente] firmemente pelos chifres, para poder consultar o passado. É o touro cujo sangue deve preencher o poço para que as sombras dos mortos possam aparecer à sua borda.[1]

 Assim o historiador faz-se herdeiro e, como tal, inscreve-se em uma tradição – no caso, a tradição do pensamento e da história anarquistas, de sua rica e inovadora ética política, das lições da ação direta, da pluralidade e controvérsia de suas ações e modos de vida, em nada monocórdicas e consensuais. Mas o herdeiro de quem falamos não é aquele que quer ressuscitar o passado e que se ajoelha em reverência ao culto ou magia de uma tradição à qual é fiel; ao contrário, ele é também e principalmente um destruidor, um interpelador por definição, desconstrucionista desconfiado de todas as certezas provenientes das filosofias da história. Sua função é, ao reivindicar uma tradição, cuidar de “selecionar seus preciosos fragmentos entre o monte de destroços” legados pela história-historicista, perfurá-la (a imagem é forte e inegociável) em busca das “pérolas” e do “coral”[2]

É nesse sentido, e em uníssono a Benjamin, que Derrida nos fala que “a melhor forma de ser fiel a uma herança é sendo-lhe infiel”.[3] Em meu entender, o resultado mais abrangente e bem-sucedido das reflexões realizadas por Thiago Lemos é o pensar a tradição anarquista, sua atualidade, por meio da vida e da militância – ou melhor, da vida militante – de Neno Vasco, enfocando-a não como uma operação historiográfica de desvelamento, pois uma herança nunca é dada “numa peça maciça” (como escreveu Hannah Arendt), mas deve ser reivindicada, reconhecida, mesmo quando não explicitada. Reivindicar uma herança – e percebo no livro esta postura teórica – “não é acomodar-se no interior do discurso repetitivo consagrado e por isso apaziguador; mas, ao contrário, abrir-se a diálogos imprevisíveis; não é repetir o passado em seu alinhamento, mas inscrever-se na vida por vir […] é relançar o pensamento e a ação, inscrevendo o passado no presente, no devir”[4]

Neno Vasco por Neno Vasco… organiza-se, ecoando sua contemporaneidade, em fragmentos que formam mosaicos, três capítulos-mosaicos, avessos – segundo as intenções do autor – a qualquer desejo de totalização ou de construção da figura do anarquista Neno Vasco em um único perfil homogêneo. Mas, as peças aqui reunidas em mosaico não deixam, em sua composição e textura finais, de produzir uma harmonia que nos permite melhor compreender esse personagem histórico-coral de muitos tons e relevos.

São muitas as contribuições que este livro nos proporciona, em diálogo cuidadoso com a historiografia anarquista e operária e com a figura incontornável de Gregório Nazianzeno Moreira de Queirós Vasconcelos, vulgo Neno Vasco. Se se tratasse aqui de um epitáfio, encontraríamos o sucinto: advogado anarquista originário de Penafiel, emigrou para o Brasil no início do século XX, aos 24 anos, e regressou a Portugal em 1911, à sua “Porta da Europa” – título de coluna que assinou, de 1911 a 1916, no jornal anticlerical paulistano A Lanterna –, falecendo ainda jovem, em 1920, aos 42 anos.

No entanto, os significados e percursos de muitos desdobramentos da vida militante de Neno Vasco fogem da banalidade e das linhas retas e breves. Thiago Lemos escolhe perscrutá-los e construir a narrativa historiográfica a partir de seus escritos diversificados enfocados, porém, como crônicas – artigos, debates e polêmicas do movimento anarquista e congressos operários nacionais e internacionais, análises de fatos históricos macros e micros, eventos do cotidiano, fait divers – e de uma escolha teórica que nelas ressalta a presença transversal e sutil da subjetividade de seu autor, uma escrita de si.

O fato de nosso biografado inscrever seu eu autoral no texto não significa, entretanto, que as portas da sua história de vida estejam “escancaradas”, como se por detrás delas, existisse um eu empírico pleno de sentido, pronto para ser desvelado por este biógrafo[5].

O historiador-biógrafo ressalta no homem de personalidade tímida e retraída às aparições e intervenções públicas, mas muito distante do misógino melancólico e solitário, as figuras inextricáveis do cronista e do militante revolucionário e, ao fazê-lo, ao construir essa indissociabilidade entre escrita e ativismo político, propicia ao leitor conhecer, problematizados, aspectos importantes de uma época do movimento anarquista e sindicalista revolucionário, do movimento operário das primeiras décadas do século XX, tanto no Brasil como na Europa.

Thiago Lemos deixa claros os fundamentos dessa sua escolha e os efeitos esperados na montagem e argumentação dos capítulos:

[…] a crônica de Neno não pode ser reduzida tão somente a uma literatura de cariz panfletário. Sua experiência, enquanto ensaísta, poeta, dramaturgo, dialoguista e contista, possibilitava-lhe enfrentar o evento miúdo do dia a dia e superá-lo, fazendo com que o tema abordado resistisse à erosão do tempo e adquirisse uma atualidade sempre renovada[6].  

Interessante, pois, é essa perspectiva teórica que o autoriza a introduzir, sem os riscos do anacronismo histórico, a discussão contemporânea de gênero, atualizando a pauta cara à cultura política anarquista da igualdade entre os sexos. O tema é longamente abordado a partir de um fato do cotidiano, o “caso Joaquina Rosa”, jovem trabalhadora acusada de infanticídio, e das ambiguidades e conflitos de Neno Vasco ao tratar a questão dos papéis de gênero e da luta pela emancipação.

A crônica do caso Joaquina Rosa revela a dificuldade experimentada por Neno Vasco em encontrar o tom necessário para enfrentar o machismo, inclusive dos próprios homens anarquistas. Nesse processo, ele oscilou em um movimento pendular – ora de ruptura, ora de continuidade – com os valores da moral de seu tempo e de seu espaço. Imerso em um momento particular da história, sua concepção libertária dos papéis de gênero não poderia emergir sem os conflitos que a instituíram e estruturaram enquanto tal[7].

Quero destacar na montagem dos três capítulos-mosaicos, que acabam formando o mural de uma época, alguns de seus fragmentos. O primeiro deles é o relevo da ação direta, pedra de toque e quid do pensamento político anarquista, de ontem e de hoje, ampla e pontualmente analisada no livro. “Eis porque somos partidários da “ação contínua, incessante, que cria o fato”; eis por que, por exemplo, nos agrada a ação sindicalista cotidiana.” – escreve Neno Vasco, em crônica publicada em A Vida, de julho de 1906.

Thiago retoma nos escritos de Neno Vasco as discussões e tópicos que singularizam o anarquismo e o sindicalismo revolucionário no campo histórico da luta revolucionária: a distinção que orienta a ação política nos partidos e nos sindicatos; os fecundos diálogos e dissensões entre anarquistas sindicalistas e anarco-comunistas; a combinação dialética de reformas + revolução que especifica a “dupla tarefa” dos sindicatos sob a ótica do sindicalismo revolucionário. Lembremos: “O anarquismo é sindicalista desde o seu berço […] A ação operária […] não se caracteriza unicamente pelo método, pela ação direta, mas ainda pela natureza das reivindicações”[8]. Ênfase e atenção às “mil formas” da ação direta, sempre apta a se reinventar e acolher o imprevisível da história – ela “cria o fato” –, as noções de “pedagogia revolucionária” e “ginástica revolucionária” que ensinam que a força de transformação advém da força adquirida nas ações de cada dia. De qualquer forma, e em todas as suas potenciais formas, a ação direta – princípio ético-político maior do anarquismo, refletida sem cessar nas crônicas de Neno Vasco – como contraponto às políticas e dispositivos de representação e delegação da vontade e da ação é, assim, alçada à mola principal da lenta e pedagógica transformação histórica, das modalidades de autogestão. Em artigo no jornal A Guerra Social de 21 de agosto de 1912, Neno Vasco afirma: “A ação direta reveste-se de mil formas e é de cada dia, exige uma atividade constante, uma aprendizagem incessante, desenvolve todas as energias e capacidades […] Não existe outra mais maleável, nem mais educativa, nem mais eficaz”.

Aspecto que merece atenção é a escrita historiadora de arquivista de Thiago Lemos, atenciosa às minúcias, aos detalhes, às tonalidades mais do que aos tons dominantes, ao micro da história. Thiago nos traz, por exemplo, um levantamento minucioso dos jornais e publicações com as quais Neno Vasco colaborou de 1901 a 1921 – com crônicas, notícias e comentários, traduções, artigos analíticos – no Brasil e em Portugal, mas também na França, Argentina e Itália, seja como diretor e fundador ou colaborador assíduo ou eventual. Podemos, ainda, encontrar uma verdadeira radiografia da genealogia e percurso de vários dos jornais operários e anarquistas do período, com informações pontuais sobre seu surgimento, grupo ideológico, alcance, militantes envolvidos, atividades.

Atento às subjetividades e modos de vida, o livro nos faz perceber e aquilatar, na pessoa de Neno Vasco, as condições de vida e de trabalho do ativista anarquista do início do século – muitas vezes sem dinheiro para as despesas mais elementares e dividindo-se, mesmo assim, entre colaborações remuneradas (modicamente) em jornais burgueses, quase nunca pontuais nos pagamentos, e o jornalismo militante, feito via de regra gratuitamente. E perpassando todo o livro a questão fundamental da memória e do esquecimento do anarquismo no Brasil e em Portugal, das lutas que se enunciavam revolucionárias nas primeiras décadas do século XX, do sindicalismo revolucionário e do primeiro movimento operário com suas numerosas ligas e associações de resistência.

Fica aqui o convite à leitura de Neno Vasco por Neno Vasco: fragmentos autobiográficos de um anarquista. O personagem, por meio de sua vida, escritos e militância de tempo integral, revela-se, em prismas, um homem engajado com seu tempo, nos desafios que são os seus. Mas que são também, em grande medida, ainda os nossos… “tempos sombrios” em que a serpente nunca suficientemente adormecida do fascismo e do terror totalitário reaparece, alimentada substancialmente pela tecnologia digital, algoritmos e “redes”, em escala nacional e internacional.

Do passado ecoam no tempo presente o alerta e o insubordinado espírito de Neno Vasco: “O pessimismo desalentado me soa mal e o azedume me incomoda, só amo os hinos à vida.” Frase destacada em epígrafe no livro.


[1]ARENDT, Hannah. Walter Benjamin (1892-1940). In: ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 215.

[2] ARENDT, Hannah. Walter Benjamin (1892-1940). In: ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 216.

[3] DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De quoi demain… dialogue. Paris: Flammarion, 200., p. 13.

[4] SEIXAS, Jacy. Formações afetivas totalitárias: sentimentos e linguagens do isolamento. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 2, v. 70, 2022, p. 174.

[5] SILVA, Thiago Lemos. Neno Vasco por Neno Vasco: fragmentos autobiográficos de um anarquista.Teresina: Cancioneiro, 2023, p.153.

[6] SILVA, Thiago Lemos. Neno Vasco por Neno Vasco: fragmentos autobiográficos de um anarquista.Teresina: Cancioneiro, 2023, p.361.

[7] SILVA, Thiago Lemos. Neno Vasco por Neno Vasco: fragmentos autobiográficos de um anarquista.Teresina: Cancioneiro, 2023, p.105.

[8] VASCO, Neno. Concepção anarquista do sindicalismo. Lisboa:Editora de A Batalha, 1920, p.29.

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