M-8 e a anatomia do genocídio contra a população negra no Brasil

Filme de Jeferson De ajuda a compreender os dados da letalidade policial e da violência no país com enfoque na questão racial.

Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem [1]
Mas contra todos aqueles que ousaram se movimentar
O Estado criou a Polícia Militar
Só que seu poder e seu alcance cresceram
E, desde então, ela ataca até aqueles que não se moveram

O Levante – É polícia e é militar

Os dados do Anuário de Segurança Pública

Nos últimos tempos, o termo genocídio tem aparecido recorrentemente nos meios de comunicação. Não se trata de uma banalização do termo, mas de uma banalização do genocídio concreto. Isso não se restringe à sabotagem do combate à pandemia feita pelo governo liberal-fascista de Bolsonaro. É algo que vem ocorrendo desde que o Brasil é Brasil, antes que se inventasse o “brasileiro”. Não é por acaso que, desde sua origem, há mais de quatro décadas, o MNU (Movimento Negro Unificado) denuncia a prática sistêmica de genocídio contra a população negra.

O 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2021, confirma a denúncia. Quando levantaram os dados sobre o perfil das vítimas de mortes decorrentes de intervenções policiais, os profissionais do Fórum Brasileiro de Segurança Pública não puderam deixar de notar que:

78,9% das vítimas eram negras no último ano, percentual semelhante ao encontrado em 2019, quando 79,1% das vítimas eram negras. A estabilidade da desigualdade racial inerente à letalidade policial,ao longo das últimas décadas, retrata de modo bastante expressivo o déficit de direitos fundamentais a que está sujeita a população negra no país (p. 66-67).

Com uma taxa de letalidade policial 2,8 vezes superior àquela contra a população branca, a população negra brasileira tem uma relação nada fácil com as instituições. Ela é injustamente sub-representada na política institucional, nas instituições de ensino e na maioria das posições sociais de destaque. Entretanto, essa população negra é absurdamente super-representada entre as vítimas de letalidade policial.

Notoriamente, a polícia não é uma “anomalia” racista em uma sociedade que não é racista. A própria origem dessa instituição, no Brasil, esteve atrelada à formação do Estado. Consequentemente, a polícia é intrinsecamente ligada à manutenção da escravidão – fator que condicionou e condiciona a formação identitária e social daquilo que chamamos de nacionalidade brasileira. Logo, a condição racial também define nitidamente as mortes violentas em geral:

enquanto os negros são 56% da população brasileira, continuam a representar, ano após ano, pelo menos 70% do total de vítimas de mortes violentas no país (p. 39).

Diante desse cenário digno de ser comparado a qualquer conflito étnico contemporâneo, é preciso pensar além de números de corpos, interrogando a realidade em busca das pessoas perdidas no genocídio contra a população negra. Essa é a proposta do filme M8 – Quando a Morte Socorre a Vida. A seguir, faço uma análise de alguns aspectos dessa obra, sem me ater a todos os detalhes e referências que ela carrega.

Anatomia de uma sociedade racista

Dirigido por Jeferson De, o longa-metragem acompanha a história de Maurício, um jovem negro que cursa medicina em uma universidade no Rio de Janeiro. Filho de Cida, uma enfermeira que lutou para ver ele chegar ao ensino superior, Maurício é um personagem que representa muito. A expansão universitária no Brasil, promovida durante os governos petistas e já sendo destruída pela onda liberal de Temer e Bolsonaro, só nos últimos anos conseguiu começar a viabilizar o acesso de jovens de famílias pobres e, especialmente, jovens negros(as) ao ensino superior. Não por acaso, no filme, Maurício é o único aluno negro de sua turma e vivencia cotidianamente diversas formas de racismo, desde ver pessoas fechando os vidros dos carros quando ele se aproxima até ser chamado de “açougueiro” por um colega após fazer incisões certeiras com o bisturi. Entretanto, vale destacar que, assim como a maioria dos(as) estudantes cotistas, ele se destacava nas notas e nas práticas de laboratório.

A interseccionalidade entre classe e raça se faz notória. Enquanto os colegas de Maurício, brancos e pequeno-burgueses, vão e voltam para a faculdade em seus carros novos, ele pega ônibus. Mas é na sua longa trajetória de volta para casa que o protagonista repara em uma das manifestações das mulheres negras que querem saber onde estão seus filhos e parentes desaparecidos.

Quase simultaneamente, nas aulas de anatomia, Maurício e seus colegas brancos começavam a dissecar corpos negros. As aulas práticas ocorriam com falas cultas e técnicas do professor (também branco), mas despertavam uma certa náusea em Maurício. Frequentemente, ele tinha sonhos e visões em que ficava no lugar de M-8, o corpo analisado pelo seu grupo nas aulas.

A trama do filme se dá em torno dessa incômoda identificação entre o protagonista e o M8. Esse processo subjetivo do personagem é mediado pelos seus encontros com o movimento das mães dos “Desaparecidos do 13 de maio”. Além de cobrar justiça e respostas, o movimento denuncia o racismo e o genocídio contra a juventude negra em um Rio de Janeiro violento, segregador, desigual e militarizado.

Mas há outros mediadores nessa história. Um deles é Sal, um médico aposentado, branco e enriquecido de quem Cida cuidava. Mantendo um relação de “simpatia” com Maurício (embora de hierarquia para com Cida), Sal dá a ele um kit de cirurgia e cita (imprecisamente) Kant: “Sapere aude!” (“Ousai saber!”). A frase, na verdade, é de Horácio, e é citada por Kant em sua resposta à pergunta “O que é Esclarecimento?”. No original, a frase do poeta latino (Nas Epístolas, Livro I, Epístola 2) vem num contexto em que não se estimula somente o estudo, mas a necessidade do estudo para se salvar dos malfeitores, para começar a cura da mente e para escrever [a própria história], algo que não se deve postergar. Como disse Horácio, quem começa já tem metade pronto, e é por isso que se devia ousar saber (ou ousar ser sábio). O detalhe é que Maurício já tinha “começado” sua investigação – e não seria em Horácio ou em Kant que encontraria todos os referenciais necessários para as respostas que buscava.

Indo com dona Cida, sua mãe, a um terreiro de religião de matriz africana, Maurício tem uma nova visão do corpo que estudava (ou de seu espírito) e é informado de que M-8 tinha algo a dizer, embora não se comunicasse verbalmente. A partir daí, começa a ousada procura pelo paradeiro do M-8. E aparecem também perguntas importantes:

Vocês já se perguntaram sobre a história desses corpos? (…) Às vezes eu me pergunto se não tenho mais a ver com esses corpos do que com meus colegas de turma. – pergunta Maurício a dois funcionários negros do laboratório, que, mesmo entendendo o questionamento, alertaram que estavam “mais preocupados em sobreviver.”

Conversando com o funcionário do do Hospital Central, Maurício descobriu que o cadáver foi enviado para a universidade um dia depois de dar entrada no necrotério. “Estava todo quebrado por dentro“, disse o funcionário. A causa da morte: hemorragia interna. Mais: o homem que virou M-8 foi tido como “indigente” e sua morte sequer foi investigada. Restou, então, a Maurício saber se o M-8 era o corpo de um dos filhos das mulheres que protestavam exigindo justiça para os desaparecidos.

Para isso, ele conta com uma ajuda (hesitante) de Domingos e Suzana, colegas de turma e grupo de laboratório, sendo que ela e o protagonista passaram a se envolver afetivamente. A própria relação entre Maurício e Suzana, além de contribuir para a trama, ajuda a escancarar diversas situações de racismo. Um exemplo disso se encontra na cena em que ele é agredido e ameaçado de prisão pela polícia sem motivo algum. Outro exemplo é a cena em que a mãe de Suzana fica estupefata ao encontrá-lo na sala de estar [2].

Entretanto, a relação entre o protagonista e Suzana marca, para Maurício, uma divisão entre a possibilidade de seguir de maneira alienada o curso de medicina, “feliz” com uma namorada e amigos, e a possibilidade de descobrir quem foi M-8. Nessa segunda escolha, o protagonista indagava também sobre a identidade entre ele próprio e o sujeito daquele corpo do laboratório. Aliás, aqui entra um elemento fundamental para a história: depois de estudado, o M-8, pelo protocolo da Universidade, seria destinado à vala comum da Prefeitura.

É por isso que a história de Maurício, além de trazer várias revelações sobre o Brasil, sobre racismo e desigualdade social (aprofundando e representando algumas das constatações do Anuário de Segurança Pública) também lembra um pouco a história de Antígona. Na clássica peça de Sófocles, Antígona decide desobedecer as determinações de Creonte, rei de Tebas, e dar sepultamento digno a seu irmão, que fora deixado sem qualquer rito de passagem por ter supostamente lutado contra a cidade. Na tragédia, Antígona incorpora uma desobediência honrosa, por meio da qual somos lembrados de que os protocolos (a autoridade de Creonte) não são necessariamente justos.

Embora a narrativa de Sófocles termine com morte generalizada, o filme M-8 tende mais a demonstrar o valor da alteridade, da solidariedade, da tradição e da indignação coletiva – talvez fazendo jus aos laços criados comunitariamente e aos ensinamentos do terreiro. Maurício, porém, é investido da virtude de Antígona: age na clandestinidade para dar enterro digno ao M-8, contra as determinações burocráticas. Mas não faz isso pensando só no morto: sua rebeldia dialoga com o homem que depois virou M-8, com as mães negras desalentadas pelo desaparecimento de seus filhos, com a frieza da ciência e da burocracia, com os funcionários(as) negros(as) que cuidavam dos cadáveres, com o racismo entranhado em seus colegas. Sobretudo, sua rebeldia dialoga com os inúmeros desaparecidos, mortos e executados cujas histórias são esquecidas na vala comum e nas estatísticas.


Dados do filme:

Título: M8 – Quando a Morte Socorre a Vida
Ano produção: 2019
Direção: Jeferson De
Estreia: 3 de Dezembro de 2020 (Brasil)
Duração: 84 minutos
Classificação: Não recomendado para menores de 14 anos
Gêneros: Drama e Suspense
Países de Origem: Brasil
Alguns membros do elenco: Juan Paiva, Mariana Nunes, Raphael Logam, Giulia Gayoso, Henri Pagnocelli, Tatiana Tiburcio, Fábio Beltrão, Bruno Peixoto, Zezé Motta, Léa Garcia, Aílton Graça, Pietro Mário, Malu Valle, Lázaro Ramos


Notas:

[1] Referência a uma frase atribuída a Rosa Luxemburgo, sobre quem o Patos à Esquerda já publicou.

[2] É importante notar que os policiais, mesmo espancando Maurício, diziam que se tratava de procedimento padrão. Além disso, uma fala da mãe de Suzana demonstra como a classe média tem uma certa mania de nobreza quando acha que suas posições sociais estão ameaçadas: “Eu acho que ela tem medicina no sangue. E você?” – disse a mulher a Maurício, à moda de burguesa com pretensão de fidalguia…

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