As cartas da prisão de Rosa Luxemburgo

A seguir publicamos uma resenha escrita por  Simone Weil do livro “As Cartas da Prisão”, de Rosa Luxemburgo, publicado pela “Librarie du Travail”, no ano de 1933. A resenha veio à luz em “Revue La Critique Sociale “, de número 10, no mesmo ano. Há uma edição em português das cartas de Rosa Luxemburgo, que saiu pela Unesp, em 2013, sob a organização de Isabel Loureiro. A tradução do francês para o português é de Thiago Lemos Silva.

Por Simone Weil

Datadas de diferentes prisões em que Rosa passou os anos de guerra[1], endereçadas à companheira de Karl Liebknecht, ele também prisioneiro, escritas em plena tormenta, em pleno massacre de toda uma jovem geração, em pleno colapso da social-democracia e do movimento operário, essas cartas quase não falam disso, mas, sim de poesia, de flores, de pássaros, de auroras e crepúsculos e respiram a alegria de viver.

É difícil compreender porque o editor colocou na epígrafe uma frase que a pena de Rosa Luxemburgo, sem dúvida, deixou escapar: “Eu espero morrer em meu posto: em uma batalha ou em uma penitenciária”. Se essa fórmula traduzisse um sentimento profundo, ela dificilmente faria honra a sua autora. Mas, a leitura dessa antologia não deixa dúvida alguma a esse respeito. A vida de Rosa, seu trabalho, e particularmente as suas próprias cartas testemunham uma aspiração à vida e não à morte, à ação eficaz e não ao sacrifício.

Nesse sentido, não há nada de cristão no temperamento de Rosa. Ela é profundamente pagã. Cada linha da antologia respira uma concepção estoica da vida, no sentido que essa palavra teria  para os gregos e não no sentido estreito em que ela é tomada nos dias de hoje. Na verdade, a atitude viril diante do infortúnio, sob a qual geralmente se entende o estoicismo, aparece frequentemente nessas cartas, notadamente naquelas que concernem a morte brutal de um amigo de Rosa. Mas, o que aparece sobretudo, é esse sentimento verdadeiramente estoico, tão raro entre os modernos, e sobretudo de nossos dias, de se sentir em casa no mundo, diante de qualquer evento que possa ocorrer. Daí vinha o amor de Rosa por Goethe. Certamente, ela teria assinado os célebres versos: “​Felizes meus olhos, / que perceberam, / seja lá o que for, /o quão  belo tem sido!” 

A tristeza era para ela apenas uma  falha que  era preciso sofrer em silêncio e fazer desaparecer o mais rápido possível. As lamentações lhe eram odiosas. “Qualquer um que me escreve”, registrou ela, nessa mesma época à Louise Kautsky “ se lamenta e suspira igualmente. Eu não conheço nada mais risível. Você não compreende que o desastre geral é maior para quem se lamenta a esse respeito? Eu posso ficar penalizada quando Mimi[2] está doente ou com algo que aconteça com você. Mas, quando o mundo inteiro sai dos eixos, eu procuro apenas compreender o que e o porquê do que se passou, e no momento que eu cumpro minha obrigação, eu reencontro minha calma e meu bom-humor… Essa aniquilação total na miséria do dia me é incompreensível e insuportável”. E à Sônia Liebknecht: “Estou aqui deitada, sozinha, em silêncio, envolta nesses múltiplos lençóis da escuridão, do tédio, da prisão de inverno – e, enquanto isso, o meu coração bate com uma alegria interior desconhecida, com uma felicidade nova para mim, como se eu caminhasse ao sol radioso em um prado florido. E eu sorrio para a vida na sombra da minha masmorra….  Eu gostaria tanto de lhe passar essa chave encantada, a fim de que  você possa sentir em todas as situações o que existe de belo, de feliz na vida”. Em outra parte, “Você pergunta na sua carta: Por que tudo é assim? Criança, a vida é assim… É preciso saber tomá-la em seu conjunto, sem omitir nada, e encontrar um sentido e uma beleza, em tudo que ela apresenta. É ao menos o que eu faço… Eu não gostaria de apagar nada da minha vida e não desejaria que nada que tenha sido parte dela fosse mudado”. Encontramos acentos parecidos apenas em Marco Aurélio: “Tudo que as estações produzem, ó Natureza, são frutos para mim”.

Essas curtas citações bastam para mostrar qual o interesse humano presente nesta antologia de cartas. Diferentemente de tantos líderes do movimento operário, e sobretudo dos bolcheviques, e particularmente de Lenin, Rosa não restringiu sua vida aos limites da atividade política. Ela foi um ser completo, aberta a todas as coisas e que nada do que era humano lhe era estranho. Sua ação política era apenas uma das expressões de sua natureza generosa. Dessa diferença concernente a atitude interior do revolucionário em relação a ação revolucionária, também procederam os grandes desacordos políticos que surgiram entre eles, e que o tempo só faria aprofundar caso Rosa estivesse viva[3].

É graças ao caráter profundamente humano de Rosa que sua correspondência guardará sempre um interesse atual, qualquer que seja o curso que a história tomar. Nós estamos, nos dias de hoje, em uma situação bem  pior, moralmente falando, do que estavam os militantes dos anos de guerra. Rosa acreditava firmemente que, apesar da falência da social-democracia, a guerra acabaria por colocar em movimento o proletariado da Alemanha e levar até uma revolução socialista. Essa esperança não foi confirmada. O embrião da revolução proletária que se produziu em 1918, rapidamente sufocado no sangue, arrastou junto para a sua ruína as vidas de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Depois disso, todas as esperanças que os militantes puderam ter foram sucessivamente derrotadas. Nós não podemos mais manter, como Rosa, uma confiança cega na espontaneidade da classe operária e as organizações foram derrubadas. Mas, Rosa não tirava sua alegria e seu amor piedoso em relação à vida e ao mundo de esperanças enganosas; as tirava da sua força de alma e de espírito. É por isso que ainda podemos, no presente, seguir o seu exemplo. 


[1] A autora se refere à Primeira Guerra Mundial, que teve lugar na Europa, entre os anos de 1914-1918.

[2] Nome da gatinha de Rosa Luxemburgo.

[3] Rosa Luxemburgo morreu em 15 de janeiro de 1919, por ação de corpos paramilitares – os Freikorps – que a espancaram até a morte, em virtude dos fatos que se seguiram à malograda Revolução Alemã de 1918. Isso impediu com que ela assistisse todo o curso da Revolução Russa. No entanto, suas críticas  já eram amplamente conhecidas. Ver: LUXEMBURGO, Rosa. A Revolução Russa. In: SCHÜTRUMPF, Jörn (org); Rosa Luxemburgo ou o preço da liberdade. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2015.

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