Luxo Comunal

Sobre a "curta e extraordinária experiência proletária de 72 dias de insubordinação criativa e suas sobrevidas".

A seguir publicamos a apresentação escrita por Jean Tible à edição brasileira do livro Luxo Comunal,  de Kristin Ross, lançado em 2021, pela editora Autonomia Literária. O livro pode ser lido na íntegra aqui.

Por Jean Tible

vive la commune! é um grito-chamado ecoando neste século e meio depois do gesto subversivo que tanto marcou e inspirou gerações e gerações de sonhadores-fazedores, dos sovietes de 1905 e 1917, da Comuna de Xangai de 1968 à zad de hoje no bocage do oeste francês e às comunidades autônomas zapatistas nas montanhas do sudeste mexicano.

Kristin Ross já tinha escrito, nos anos 1980, um belíssimo livro sobre a espacialidade da Comuna invocando o poeta-trabalhador, transformado pela Comuna, Arthur Rimbaud [1]. Agora, no contexto dos levantes globais, volta a se debruçar, nesta incrível obra publicada em 2015, sobre a curta e extraordinária experiência proletária de 72 dias de insubordinação criativa e suas sobrevidas.

estouro  e existência

A pesquisadora da cultura e política francesas dos últimos dois séculos nos leva para as reuniões populares que estavam fervilhando a partir de 1868, quando o Segundo Império relaxa um pouco suas leis repressivas e abranda a censura. Embora os sindicatos fossem proibidos, a partir da década de 1860 cai o delito de coalizão e se permite a emergência das associações de trabalhadores. Vai se formando um corpo coletivo contestatário, em greves (legalizadas em 1864), em restaurantes em regime de cooperativa e em espaços como salões de danças, salas de concertos e armazéns onde se juntavam multidões ávidas por rebelião [2].

Nesses clubes, as “colmeias zumbidoras” espraiam a ideia de uma comuna social nas classes perigosas (o grito-chamado acima abria e encerrava muitos desses encontros). A polícia (e seus numerosos espiões), sempre estudiosa das sementes da oposição, vai acompanhar isso de perto – um fervoroso adversário da Comuna vai chamar as reuniões públicas de “Collège de France da insurreição”, percebendo essa escola de elaboração coletiva desobediente. Quando o clima parisiense esquenta para valer, o governo proíbe e fecha todos os clubes no dia 22 de janeiro de 1871.

No início de março, num contexto de derrota e rendição dos governantes, os batalhões da guarda nacional se agitam: organizam um encontro, elegem uma comissão executiva, pensam numa estrutura federativa e levantam a bandeira de defesa da República. Muitas armas estavam em Paris, que havia vivido cinco meses de cerco e penúria, e o governo envia io mil soldados aos bairros operários para retomá-las. Na madrugada do dia 18 de março, o exército estava recolhendo os canhões que defenderiam a cidade na guerra contra a Prússia – era perigoso deixá-los com a população em convulsão. As mulheres de Montmartre se jogam nos canhões e nas armas dos soldados que não se mexem. O general das tropas ordena abrir fogo contra elas. Um suboficial grita mais alto para levantarem as armas, e é obedecido pelos soldados (será fuzilado por Versalhes meses depois) [3]. No que alguns dizem ter sido o primeiro dia de sol do ano, a revolução brota, com sua embriaguez que tudo pode mudar e deslocar.

Daí se encarna um dos mais fantásticos experimentos políticos de igualdade e dignidade – um conjunto de atos de destituição do Estado e suas instituições burocráticas por homens e mulheres comuns. Anônimos revolucionários, um messias coletivo composto por trabalhadores vindos do interior atraídos pelo progresso, artesãos em grande número, operários e mulheres, vagabundos e artistas. Um movimento produz novas condições, relações, afetos e subjetividades, e libera e potencializa as capacidades. O mundo de ponta-cabeça como em todos os processos revolucionários, nos quais as hierarquias são subvertidas e as ruas e a cidade tomadas – “podemos amar uma cidade, conhecer as casas, as ruas na sua mais longínqua e terna memória, mas é somente na hora da revolta que apreendemos realmente a cidade como sua cidade” [4]

Antítese do Império, eis o autogoverno da classe operária. Seu principal trunfo? Sua “existência em ato”, a “forma política enfim encontrada para a emancipação do trabalho” [5]. Não decreta nem proclama o fim do Estado e dos capitalistas, mas agencia ambos com medidas concretas importantíssimas que ali se esboçaram. A Comuna suprime o exército permanente e o caráter político da polícia, substituindo-os pela população em armas. Seus conselheiros municipais são eleitos, com mandatos imperativos e permanentemente revogáveis, e o mesmo ocorre com os demais funcionários públicos – como magistrados e juízes – que passam a receber salários de operários. Ataca-se o poder da Igreja, cortando seu financiamento público e expropriando seus bens. As fábricas e oficinas abandonadas são transformadas em cooperativas. Institui-se a liberdade de imprensa e a moratória dos aluguéis, expulsões e dívidas. O casamento passa a ser livre, e a Comuna adota as crianças não reconhecidas e torna gratuita e para todos a educação (com operários-professores), além de organizar cursos noturnos e salas de leituras em hospitais e creches nos bairros operários. Uma efervescência cultural exuberante, com atrizes e atores tomando posse dos teatros e abrindo-os. Os muros se tornam falantes (com cartazes de diversos formatos e cores) como depois, no mesmo lugar, em 1968 e em 2016-2020.

O governo autoritário abandona a cidade, deixando para trás, inclusive, os doentes nos hospitais. Nas suas poucas dez semanas, a Comuna sustenta as infraestruturas da vida na forma de uma autogestão generalizada – “a posse direta dos trabalhadores sobre todos os momentos de suas atividades” [6]. Rompe, assim, os limites entre o político, o cultural, o social e o econômico, numa proposta geral, total, de uma nova presença. Esse corpo político se opõe à dominação monárquica e de classe, mas, sobretudo, se constitui de modo positivo, a partir da deliberação e tomada de decisões não mais secretas, e sim abertas à criação coletiva.

Capa do livro disponível no site da Fundação Perseu Abramo.

composição e luxo comunal

Para J. B. Clément, autor da célebre música Le temps des cerises e um dos defensores da última barricada, “a germinação extraordinária das novas ideias surpreendeu e causou terror, o cheiro da pólvora comprometeu sua digestão; eles foram pegos de vertigem e não nos perdoarão”. A sinistra semana sangrenta de maio ceifa dezenas de milhares de vidas em sua reação despótica. Os meios que não foram empregados contra os prussianos o serão contra a Comuna (a verdadeira inimiga da ordem), que se encontrava cercada, na parte norte e leste, pelos prussianos e, na parte sul e oeste, por Versalhes – uma aliança de classe sem falhas. “Paris foi cortada na faca, diz Louise Michel, usando uma imagem da caça. “Escrever esse livro”, argumenta a professora e comunarda, “é reviver os dias terríveis nos quais a liberdade passou raspando na gente e fugiu do abatedouro” [7]

Mas não é nesse abjeto e covarde massacre que, felizmente, se concentra Ross. Em outra bonita contribuição anterior, a autora reflete sobre 1968 e sua invenção política que persiste e se reinventa, como na zad de Notre-Dame-des-Landes, que ela já visitou várias vezes e sobre a qual editou e traduziu um livro em inglês [8]. Em 1967, a mítica editora Maspero publica o clássico História da Comuna de 1871, de Lissagaray, um comunardo que se dedicou por mais de duas décadas a uma monumental contrapesquisa para desmontar as mentiras do poder – seu livro será proibido por um bom tempo. Em 1968, outro momento de “febre de fé, de devoção, de esperança” [9], era impossível encontrar um exemplar nas livrarias parisienses que ferviam, todos já vendidos e lidos com entusiasmo [10]. Esses anos loucos vão marcar uma volta do interesse pela Comuna, inclusive por influência dos surrealistas e situacionistas, em facetas que recordam aquelas semanas intempestivas de 1871: a fusão entre política e cotidiano, militância e vida, o prazer das novas amizades e cumplicidades nos gestos anti-hierárquicos de associação e cooperação.

Sua ênfase é no pensamento comunardo, do evento em si e das duas décadas seguintes, na medida em que o acontecimento transformou alguns de seus atores e apoiadores, como Élisée Reclus e Paul Lafargue, mas também Marx, Kropotkin e William Morris. Ross não parte em busca de lições da história, mas de que modos essa experiência se insere no presente e nas suas lutas. Percebe, nesse sentido, a sagacidade do conceito de “luxo comunal”, proposto no manifesto da Federação dos Artistas de Paris, escrito por Eugène Pottier, artesão e autor da Internacional (composta nas semanas posteriores à Comuna). Esse apelo do dia 13 de abril defende uma partilha não somente igualitária das coisas, mas também das nossas melhores habilidades, destacando as artes decorativas e os ofícios como marcenaria, cerâmica, costura, carpintaria, rendaria, sapataria e tantos saberes de artistas-operários. Uma beleza coletiva para todo mundo, de dimensão estética nas vidas cotidianas e não mais nos circuitos e apropriações elitistas e fechados. Uma aposta no fazer partilhado e na relação com a matéria, o trabalho livre, ou melhor, a livre atividade.

Como parte intrínseca das lutas contra as divisões hierárquicas e dominações, ocorre uma sublevação contra as barreiras nacionais – a “Comuna anexou a França à classe trabalhadora de todo o mundo” [11]. Os membros da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) eram bem ativos nos clubes citados acima, fomentando um clima internacionalista e anticolonial. Uma das ações mais conhecidas da Comuna vai ser a derrubada da coluna da Praça Vendôme (feita com a fundição de canhões capturados) por ser uma celebração imperial e militarista de opressão de outros povos. Seu novo nome após a demolição? Praça Internacional. A categoria de estrangeiro é abolida, todos agora são cidadãos. Isso se concretiza na presença-chave dos poloneses Dombrowski na direção das operações de defesa militar e de Wroblewski (um oficial da insurreição polonesa de 1863), do húngaro Frankel (membro da Arr) na comissão do trabalho e da russa Élisabeth Dmitrieff, uma das fundadoras da União das Mulheres pela Defesa de Paris.

Essa organização é fundada a partir de um Apelo às cidadãs que se abre nomeando o verdadeiro inimigo – não o estrangeiro invasor, mas os franceses assassinos do povo e da liberdade. A União vai se dedicar a cuidar dos feridos com ambulâncias e comitês por bairros, além de distribuir marmitas revolucionárias. A União será um dos principais órgãos da Comuna e vai responder a anseios fortes do período anterior, nas reuniões populares desde 1868 e na formação da Sociedade para a Afirmação dos Direitos das Mulheres, sobre o trabalho das mulheres e salários mais dignos, direito ao divórcio e escolas primárias democráticas para as meninas. Naqueles dias embriagantes, um grupo majoritariamente feminino leva uma guilhotina ao pé da estátua de Voltaire e a queima; na sequência, todas serão jogadas no fogo.

Os anos 1870 são marcados por uma dupla tensão, de “movimentos ou acontecimentos espaciais” decisivos. Por um lado, essa década marca um ambiente favorável à expansão colonial, com a velocidade e linearidade das estradas de ferro, conectando pontos antes inacessíveis, em coordenadas sistemáticas e numa movimentação geopolítica consoante com o imaginário da linha reta de Haussmann que perfurou e destruiu bairros operários. A reação, por outro, vai qualificar a Comuna de “Paris no poder dos pretos” e os comunardos de “selvagens, um anel no nariz, tatuados de vermelho, fazendo a dança do escalpe sobre os destroços enfumaçados da Sociedade”, explicitando a guerra civil (e o aniquilamento, cá e lá). Uma categoria racial englobando operários e animais, selvagens e bárbaros que Rimbaud vai reivindicar e positivar como vínculo político concreto [12].

A Comuna, apesar dos limites apontados (por não ter se coordenado bem militarmente e não ter tomado todo o dinheiro do Banco da França), encanta Marx e Bakunin, proudhonianos e blanquistas. Uma confluência das águas subversivas na proposição posterior de um “comunismo anarquista” e sua bagunça das divisões entre perspectivas em conflito (comunismo e anarquismo, por exemplo). A onda de choque da Comuna produz transformações em intelectuais, que se afetam por esse acontecimento e, cada um, com seu tempero, elabora a aposta por uma “transformação baseada numa vasta federação voluntária de associações livres em nível local”. Ross sabiamente conecta a insurreição numa das “capitais do mundo” com o interesse aguçado dos pensadores ligados à Comuna (Reclus, Marx, Morris e Kropotkin) pela organização coletiva da terra em tantos povos e até em coletividades não humanas. O mir russo, pescadores e camponeses islandeses, os iroqueses da América da Norte, o apoio mútuo como chave dos mundos animal, vegetal e humano, o elo entre Louise Michel e outros deportados com os Kanak na Nova Caledônia.

Isso nos situa num dos planos mais significativos de hoje -conjugar organização territorial e laços solidários transnacionais, o que já estava presente nos limites do isolamento que deixava vulneráveis tanto a Comuna de Paris (nos seus vínculos com o campo) quanto as comunas rurais. William Morris, em Notícias de lugar nenhum, imagina a derrubada da coluna de Nelson, monumento nacionalista na Trafalgar Square, em Londres e sua substituição por um pomar, com damasqueiros. O prático e o belo, o útil e o poético nas artes de não ser governado. Partamos da abundância [13]. Não do luxo vazio, destrutivo, medíocre e monocultural capitalista, mas do luxo comunal da riqueza existencial dos povos da terra em luta, nas Américas e no planeta. A comuna como “organização da fecundidade[14], pelo prazer das lutas-vidas-criações; como composto por Waly, cantado por Gil, encenado pelo Oficina e por tantas, a felicidade guerreira.


Notas:

[1] Ross, Kristin. Rimbaud, la Commune de Paris et l’invention de l’histoire spatiale. Paris: Les Prairies Ordinaires, 2013 [1988].

[2] Merriman, John. A Comuna de Paris: 1871 origens e massacre. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2015 [2014], p. 22-23.

[3] Michel, Louise. La commune. Paris: La Découverte, 2015 [1898], p. 178; 266.

[4] Jesi, Furio. Spartakus: symbolique de la révolte. Bordeaux: La Tempête, 2017 [1970-1977], p. 101.

[5] Marx, Karl. “The Civil War in France”. Em: Marx, Karl e Engels, Friedrich. Writings on the Paris Commune. Draper, Hal (org.). Nova York: Monthly Review Press, 1971 [1871], p. 76.

[6] Idem.

[7] Michel, Louise. La commune. Paris: La Découverte, 2015 [1898], p. 233; 42

[8] Mauvaise Troupe Collective. The Zad and No TAV: Territorial Struggles and the Making of a New Political Intelligence. Londres: Verso, 2018.

[9] Lissagaray, Prosper-Olivier. Histoire de la Commune de 1871. Paris: La Découverte, 2000 [1896], p. 200.

[10] Ross, Kristin. Maio de 68 e suas repercussões. São Paulo: Sesc, 2018 [2002].

[11] Marx, Karl. 1871, p. 80.

[12] Ross, Kristin. Rimbaud, la Commune de Paris et l’invention de l’histoire spatiale. Paris: Les Prairies Ordinaires, 2013 [1988], p. 16; 206.

[13] Ferreira da Silva, Denise, comunicação pessoal, agosto de 2020.

[14] Comitê invisível. Aos nossos amigos. São Paulo: n-1 edições, 2016 [2014].

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