O luto na era da aceleração

O luto possui uma temporalidade própria, que não vem sendo respeitada devido a uma série de condições históricas do mundo globalizado e de circunstâncias sociais específicas do Brasil.

Por Munís Pedro Alves

Após entrevistar mais de quinhentos pacientes terminais e seus familiares, a psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross descreveu as cinco fases do luto em suas obras “Sobre a morte e o morrer” (1969) e “On Grief and Grieving” (2005, sem tradução). São elas: a negação; a raiva; a negociação; a depressão; e a aceitação. Não podemos levar este quadro rígido a ferro e fogo, como etapas inevitáveis no processo de reconciliação com a morte, pois nem todos passam necessariamente por estes estágios. Mesmo ciente de suas limitações usarei o esquema como imagem para refletirmos sobre o que a sociedade brasileira atravessa atualmente com a pandemia de covid-19.

Na obra “Luto e melancolia” (1915), o psicanalista Sigmund Freud conceitua o luto como reação à perda de um ente querido ou de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido. Trata-se de um processo natural e importante. E que finaliza com a aceitação, fase em que é possível lidar com a ausência daquele e construir significados à nova realidade, restando a saudade.

Insisto na hipótese de que a pandemia representará um trauma histórico, assim como alguns outros eventos de nossa história. Mas um trauma só pode ser notificado depois que o evento finaliza, o que ainda não é o caso. Minha hipótese é que a dimensão do trauma será amplificada pela impossibilidade de processar o luto de forma natural e saudável. Isto é, o luto possui uma temporalidade própria, que não vem sendo respeitada devido a uma série de condições históricas do mundo globalizado e de circunstâncias sociais específicas do Brasil.

Em relação às condições históricas comuns a todo o globo terrestre que sofre influência do capitalismo tardio na era digital, vivemos uma época em que tudo é e deve ser acelerado. A velocidade de processamento de dispositivos eletrônicos e tecnologias de informação tem exercido um efeito sobre como devem ser os ritmos e as formas de funcionamento dos processos naturais e humanos, como o luto. Agora, em vez de contemplarmos uma obra de arte, “maratonamos” compulsoriamente séries e filmes. Ouvimos mensagens de voz aceleradas na velocidade dois. Assistimos videoaulas também aceleradas. Lemos um livro (um exercício agora tortuoso) e desejamos entender tudo assim que fechamos a última página (se é que temos paciência de aguardar a última página). Notícias são devoradas como petiscos em um churrasco. É tudo para ontem. Os objetos, sobretudo eletrônicos, são fabricados também para se tornarem rapidamente ultrapassados. Consumimos rapidamente e descartamos.

A época, portanto, nos demanda um luto que também seja veloz, acelerado, digital. Mas não é assim que funcionam as coisas. O ser humano não é uma máquina nem um avatar de rede social.

Não bastasse uma pandemia ser um evento apavorante e potencialmente traumático em si, no caso do Brasil, temos desafios adicionais. Houve o azar ou o castigo de o Poder Executivo ser exercido por um governo anticientífico, apologista da tortura e da ditadura militar, influente e influenciado por redes de poder paralelo, disseminador de notícias falsas e (como vem demonstrando a CPI) com indícios de corrupção do tamanho de uma manada de paquidermes. O drama é que (ainda) recebe apoio estratégico de setores importantes da economia, do Poder Legislativo, das forças de segurança, de instituições religiosas e de uma parcela despolitizada da população. Um combo perigoso e danoso que desde o início da pandemia se negou a acatar as recomendações dos órgãos internacionais de saúde, apostando ora na inexistência, ora na inefetividade do vírus ou em estratégias, medicamentos e tratamentos sem qualquer comprovação científica para o enfrentamento da patologia causadora da pandemia.

Toda essa rede de apoio, crenças, ações e omissões deu sustentação ao preterimento da compra antecipada de vacinas, atrasando a campanha de vacinação e destruindo a possibilidade de milhares de brasileiros continuarem vivos. Embora muitos de nós tenhamos naturalizado a civilização pandêmica e estejamos anestesiados, milhares de brasileiros continuam morrendo semanalmente.

Enterros no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, no dia 15 de julho. Andre Penner. Extraída do site do El País.

As perdas têm sido tantas, em tão curto espaço de tempo e em dada circunstância social (“não podemos parar ou desacelerar!”) que a sociedade não tem tido condições adequadas, temporal e simbolicamente, de processá-las. É como se o caminho natural do luto estivesse interditado. Há muitas famílias que perderam vários parentes, por exemplo. Mas a perda à que se refere o conceito de luto não é apenas de pessoas, como explica Freud. Há perdas de ideais, de esperanças, de valores, de crenças e até mesmo da ideia de um país. Ainda há Brasil ou haverá Brasil depois disso?

Pelo menos desde a eleição de 2018, perdemos a ilusão com a qual enxergávamos determinadas pessoas queridas. A pandemia, por várias razões, em vez de encerrar esse processo, o alargou e o desestabilizou. Sem dúvidas, passamos da fase da negação, em que não aceitávamos a realidade e dizíamos “Não acredito”, “Isso não é possível”. Mas ainda estamos oscilando entre a fase da raiva, da negociação e da depressão. Na fase da raiva responsabilizamos os demais pelas desgraças, desde o candidato progressista (que viajou para Paris no segundo turno da eleição) ao vizinho, que deu uma festinha na pandemia. Na negociação, suplicamos a uma entidade para esse pesadelo acabar logo ou contamos a ilusão a nós mesmos de que isso tem um lado positivo, um propósito maior. Já na depressão, um sentimento profundo de tristeza, desalento e passividade nos toma conta. Não há nada a ser feito. É daí para pior. 

De qualquer modo, embora a fase da aceitação pareça ainda distante no horizonte (afinal, para quem está vivendo a perda, a sensação é de que este momento nunca chegará), é importante que, após um processamento de tempo proporcional à dimensão do que foi perdido, consigamos chegar a tal etapa. Como escreveram os pensadores, a fase da aceitação é quando conquistamos a capacidade de atribuir novos significados à perda para continuar a viver. E se o Brasil como conhecíamos foi perdido, é necessário que substituamos o luto pela luta, a fim de construir um outro Brasil. A depender de como for, nem saudades sentiremos.   

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