Interesses drásticos – parte 1/3: salário

Esta série de três textos abordará temas fundamentais para a classe trabalhadora.

Introdução: uma dica de Theodor Adorno

A campanha eleitoral tornou mais evidente algo que já se manifestava no cenário político cotidiano desde o início da última década: a tendência de a direita, e especialmente de sua fração extremista, de ou mentir sobre economia ou fugir do debate. Não por acaso, o conservadorismo bolsonarista deixa para suas linhas acessórias (como o Partido Novo e alguns farsantes que se apresentam como guias de investimentos pessoais) a difusão da doutrina neoliberal. Na mesma linha, o ministro da conta offshore, Paulo Guedes, procura ser uma figura discreta e operar em silêncio. Jair, por sua vez, não se arrisca em matéria de economia. 

Tudo isso não ocorre só pela incompetência administrativa e teórica dos principais membros da extrema-direita. O fato é que a propaganda deles, que é o essencial do seu extremismo, funciona melhor com táticas que causam pânico moral. Por sua vez, esse pânico funciona melhor com temas relativos à “pauta dos costumes”, longe da experiência material vivenciada pela classe trabalhadora. Afinal, sobre a vida material, cujas dificuldades assombram o cotidiano, é mais difícil mentir.

Apesar de muito alertada sobre isso, a esquerda tem deixado que o bolsonarismo escolha o campo de batalha. Como era de se esperar, ele prefere não falar de economia – ou pelo menos, não falar do povo na economia. 

Theodor Adorno, em Aspectos do novo radicalismo de Direita, uma conferência de 1967, alerta para algo relevante para fazer frente a isso. O contexto era de preocupação generalizada com o neonazismo na Alemanha e na Áustria (onde a palestra foi proferida). Diante da aparente incorrigibilidade dos indivíduos apoiadores do que Adorno chamou de radicalismo de direita, ele refletiu que:

A única coisa que me parece realmente prometer algo (…) é alertar os potenciais apoiadores do radicalismo de direita sobre suas consequências, tornar-lhes claro que essa política inevitavelmente conduzirá seus próprios apoiadores à desgraça e que essa desgraça já é refletida de antemão (…). Ou seja (…), deve-se referir aos interesses drásticos daqueles a quem a propaganda se dirige. Isso vale especialmente para a juventude (…). 

Há, portanto, um ponto mais sensível no extremismo bolsonarista, algo que vale a pena lembrar sempre, haja vista a operação de esquecimento/apagamento feita pela direita. Vamos, pois, aos fatos que podem subsidiar uma crítica que acerte o tom quanto aos interesses drásticos da classe trabalhadora. Esta série de três textos abordará salário, combustíveis e inflação

Salário 

O primeiro indicativo que deveria ser destacado nas candidaturas é a maneira pela qual elas enxergam algo elementar na vida do trabalhador: o salário. No caso de Jair e Lula, seus governos mostram a relação que os dois tiveram com o salário mínimo. Lula, de maneira regular, manteve aumentos acima da inflação, de modo a assegurar que o consumo das famílias estivesse em constante crescimento, favorecendo a melhoria no padrão de vida e o crescimento econômico. O saldo do governo petista foi um aumento real de 77%. Bolsonaro, por sua vez, não fez reajuste acima da inflação. Para 2020, o reajuste não trouxe “nenhum ganho real”, apenas repôs a inflação de 2019. Para 2021, o aumento também só repôs a inflação, consolidando a escolha do governo de não conceder aumento real, rompendo com a política de aumento legada pelas gestões petistas, que era garantida até 2019. Ainda em 2021, o governo deixou de conceder 2 reais de reajuste, que só foram incorporados na determinação do salário para 2022, ano em que também não houve aumento real (acima da inflação). Para encerrar o governo com mesquinharia exemplar, Bolsonaro se consolida com o “título de primeiro presidente da República, desde o Plano Real, a  concluir o mandato com o menor poder de compra que um salário mínimo  poderá alcançar”. Na verdade, o governo Bolsonaro só fez os reajustes constitucionalmente obrigatórios.

Observe, no gráfico abaixo, a valorização do poder de compra do salário mínimo no governo Lula e a sua desvalorização no governo Bolsonaro:

O escândalo mais recente foi o vazamento, originalmente para a Folha de São Paulo, de um plano econômico do ministro das contas offshore, Paulo Guedes. No plano, descreve a Folha, Guedes fala em desindexação do salário mínimo em relação à inflação. 

Traduzindo: o governo não seria mais obrigado a reajustar o salário mínimo e repor as perdas de poder de compra causadas pelo aumento dos preços. Aterrorizada com a má repercussão da medida, a campanha bolsonarista tratou de fazer escancarar no jornalão da Burguesia, o Valor Econômico, que Guedes teria dito que o salário mínimo e as aposentadorias seriam reajustados “pelo menos de acordo com a inflação”.

Adiantou pouco, pois o próprio Guedes insistiu na discussão das desindexações, tentando relativizar o processo. Uma das ideias discutidas: indexar o valor do salário à previsão de inflação. Como previsão não é garantia, na prática, uma medida assim significaria a possibilidade concreta de o salário mínimo não ser reajustado conforme a inflação que realmente ocorra.  

Em matéria para a Reuters reproduzida pelo UOL, Rodrigo Viga Gaier e Bernardo Caram explicaram que:

Na prática, ao desvincular o Orçamento, o governo fica desobrigado a enviar recursos a áreas que hoje possuem destinações carimbadas. Da mesma forma, a desindexação acabaria com a exigência de correção de gastos por índices pré-determinados, como ocorre hoje com o reajuste do salário mínimo pela inflação.


Em outras palavras, a contra-argumentação da campanha de Bolsonaro oferece nada mais que a palavra dele de que os reajustes não estão ameaçados. Porém, como mencionado acima, Guedes e Bolsonaro já não fizeram aumento real do salário no atual governo. Acuados, prometem esse aumento para 2023. Ocorre, entretanto, que as promessas de Bolsonaro já somavam, no início de outubro, 158 bilhões de reais, dos quais boa parte não aparece na projeção orçamentária de 2023. Quem aponta isso é um órgão da imprensa conservadora, o Estadão. Será mesmo que Bolsonaro irá contrariar seus financiadores e adotar a política de taxar grandes fortunas (uma pauta de esquerda para a qual Guedes apela agora em desespero) para atender promessas feitas no sufoco da campanha? Lula, por sua vez, não precisa apelar para a fé do eleitor em sua palavra. Em que pese suas limitações e falhas, tem histórico de aumento real do salário mínimo.

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