“Há de vir tempo bom!”: Uma nota de reverência à rica musicalidade da Banda de Pau e Corda

Com meio século de existência, a Banda de Pau e Corda celebra uma jornada musical marcante. Convidamos os leitores a explorar sua trajetória, permeada por uma riqueza sonora singular.

Nos meus tempos de criança, lembro-me de ver no acervo de bolachões empoeirados do meu pai a capa do disco “Redenção”, da Banda de Pau e Corda. Era curiosa, sendo composta  por um grupo de seis bonequinhos de argila tocando diferentes instrumentos, cada um com o seu chapéu meia-lua, sentadinhos e posicionados em um ciclorama de palha. A iluminação da imagem, ressaltando os tons pastéis dos objetos que foram usados em cena, desenhava supostamente o cenário da Caatinga – bioma esse que, assim como a Banda de Pau e Corda, é único no mundo.

Eu me lembro que, ainda nessa época, na minha casa, havia muitos objetos pequenos feitos artesanalmente. Vez ou outra, esses objetos eram incorporados nas minhas brincadeiras de criança. Gostava de saber que eles eram moldados do zero, um a um, usando mãos ao invés de máquinas. Mesmo que fossem para ser um conjuntinho de objetos iguais, um era mais lascadinho que o outro, ou mais tortinho, ou maiorzinho. Existe uma beleza nessa “imperfeição” que a torna extremamente perfeita e humana.

Infelizmente, foi no início da juventude que fui começar a ouvir os discos da banda. Demorei bastante tempo para conhecê-los musicalmente, apesar de que cada música que passou pelos meus ouvidos ativou lá no fundo aquele nostálgico “hmm, eu conheço essa música”. Sim, esses discos eram muito distintos, na forma e na textura.

A Banda de Pau e Corda tem origens recifenses e carrega consigo os vários estilos da música regional pernambucana e do nordeste brasileiro. São canções em frevo, repente, poesia musicada e forró que enaltecem as raízes do folclore nordestino, o heroísmo de Lampião e Maria Bonita, o cotidiano e a realidade social do Brasil interiorano.

Música “Lampião” do álbum Vivência de 1973 da Banda de Pau e Corda

Realidade

“Me diga homem há quanto tempo que você não come
Mas diga apenas uma vez pra eu não perder a fome
Me diga homem o que é que fez pra estar pagando assim
Mas diga apenas uma vez porque pobre de mim.”

Me Diga Homem, Assim… Amém, Banda de Pau e Corda, 1976

Na música “Me Diga Homem”, a poesia da banda, por meio de uma possível conversa com o “homem” que passa fome, narra o êxodo do povo trabalhador, que tenta ganhar a vida no interior brasileiro. A dureza da miséria, que a letra da música faz questão de expressar na realidade de 1976 (e também na realidade de 2024, quiçá na realidade secular), dá o tom amargo. É um soco no estômago. O “homem” miserável só pode estar “pagando” por um pecado para passar tanta fome. A miséria, assim, é sintoma de um “mundo” que precisa que ela exista para ser o calvário do povo.

“Eu sou do mesmo sangue
Eu sou da mesma terra
Eu sou do mesmo santo
Eu sou do mesmo nome”

Atrás da Morte, Assim… Amém, Banda de Pau e Corda, 1976

A banda não faz questão de se diferenciar do povo que a cerca. Assim como nos moldes artesanais da capa de Redenção, são homens comuns, moldados na própria cultura que os cerca, perfeitos do “imperfeito” e que poetizam empaticamente a realidade nordestina e do Brasil. Mesmo assim, há o questionamento, em “Atrás da Morte”, do porquê das diferenças das condições de vida do povo que, vez ou outra, não se deixam passar despercebidas. Na realidade, o que se passa é que são diferenças realmente gritantes, que são forçadas, “misteriosamente”, a serem despercebidas.

Dos instrumentos e da linguagem musical

A música é colorida com as notas da viola caipira. Diferentemente da forma como nós, mineiros, estamos acostumados a ouvir na música sertaneja, a viola da banda expressa suas notas de forma solista sem o ritmo do pagode costumeiro, original das músicas do Tião Carreiro. A inspiração para o uso da viola, como é apresentada nos discos da banda, pode-se dizer que vem de outra grande banda chamada Quinteto Violado. É quase impossível falar de Banda de Pau e Corda sem falar de Quinteto Violado. Entretanto, Sérgio Andrade, voz da Banda de Pau e Corda, afirma que a viola veio nas músicas para conversar com as flautas transversal e de pífano1:

“Nesse contexto, a flauta e a viola entraram porque a gente tinha exatamente essa influência do Quinteto. Só que a gente começou a utilizar a viola e a flauta de uma forma diferenciada, fazendo essa conexão dos dois instrumentos, além dos vocais. […] Esse diálogo que existe entre a viola e a flauta desde o primeiro disco é uma característica muito forte da banda…”

Sérgio Andrade em entrevista para a Carta Capital

Esperança

“Mas há de vir tempo bom
Aliviando essa dor
Pois quem cultiva esperança
Rega em seu peito uma flor”

Esperança, Redenção, Banda de Pau e Corda, 1975

A música que dá o título deste artigo é uma mensagem bonita para quem tem fé na luta e na resiliência do povo. Tem de existir a esperança frente a todas as medidas do sistema que só nos fazem assentar nos degraus mais baixos. Na música “Esperança”, é retratada a seca, e, de forma irônica, ilustra-se também as “cercas”. Isso fica expresso no verso   “Se a chuva não caiu do lado de cá, regar com água do corpo e não esperar”. É um cenário que se replica nos mais diversos prismas da luta de classes: a classe trabalhadora, em desamparo, se vira com o que não é tomado pela classe burguesa.

“Há de vir tempo bom” quando da organização do povo se fizer o levante contra as desigualdades e pela redistribuição das riquezas e das propriedades privadas. Nota de recomendação para quem for ouvir a Banda de Pau e Corda: esperança e luta!

Feliz 50 anos de existência, Banda de Pau e Corda!

  1. DINIZ, Augusto. Banda de Pau e Corda faz 50 anos sem se desligar da sonoridade de sua formação, 2024. Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/blogs/augusto-diniz/banda-de-pau-e-corda-faz-50-anos-sem-se-desligar-da-sonoridade-de-sua-formacao/> ↩︎

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