Genocídio em Ruanda completa 27 anos: entenda o que aconteceu

Na década de 1990, milhares de tutsis foram exterminados pelo governo hutu. Gênese do conflito está no imperialismo europeu.

Em 1994, o mundo presenciava um dos piores capítulos de sua História: o genocídio ruandês, responsável pela morte de milhares de pessoas da etnia tutsi. Durante dois meses, a maioria hutu, de etnia rival, caçou e matou cerca de 800 mil pessoas, principalmente a golpes de facões.

A rivalidade entre tutsis e hutus remonta à época colonial, quando europeus distinguiram a população entre etnias para facilitar a colonização do território. Os tutsis, minoria de ascendência aristocrática, por muito tempo mantiveram-se aliados aos europeus, em detrimento da maioria camponesa hutu. Entretanto, este sistema acabou após uma revolução hutu em 1959 e, posteriormente, com a independência de Ruanda em 1962.

Com a chegada dos hutus ao poder, toda a comunidade tutsi passou a ser marginalizada, independentemente de suas raízes aristocráticas ou não. O discurso oficial era de que tutsis representavam um perigo, eram conspiradores e parasitas. O golpe militar do major hutu Juvénal Habyarimana,veio reforçar este regime em 1973. O militar estabeleceu uma ditadura, decretou confisco de bens, deslocamentos da população, leis de exclusão e proibição de casamento mistos, cujo os principais afetados foram os tutsis.

Nesse contexto, diversas pessoas fugiram ou se exilaram em países vizinhos, mas o tom mudou quando tropas rebeldes tutsis resolveram reagir ao governo, iniciando uma guerra civil no país centro africano.  Em 1991, à medida que os rebeldes ganhavam terreno, o discurso de ódio contra tutsis escalou de vez para o extermínio. Em comícios, nas rádios populares e nas universidades, o discurso era de eliminação das “baratas”. Apresentadores famosos da época, como Simon Bikindi e Kantano Habimana, pregavam abertamente a destruição dos tutsis.

Apesar do genocídio ter-se iniciado em 1994, quando o ditador hutu Habyarimana é morto em um desastre aéreo, e a milícia tutsi da Frente Patriótica do Ruanda (FPR) é responsabilizada pelo atentado, acredita-se que o extermínio foi planejado durante o inverno de 1993 ou bem antes. Élie Mizinga, ex-militar hutu, confessou em depoimento “que a ideia do genocídio germinou em 1959, quando começamos a matar pencas de tutsis sem sermos punidos; e desde então nunca a enterramos totalmente.”

“A ideia do genocídio germinou em 1959, quando começamos a matar pencas de tutsis sem sermos punidos; e desde então nunca a enterramos totalmente.”

Colocando o plano em ação, o Exército e a milícia hutu  Interahamwe, principal braço do partido dominante, massacraram todos os tutsis que encontravam pela frente, além de ativistas, jornalistas e defensores dos direitos humanos. O governo possuía listas de diversos tutsis e não foi difícil encontrá-los no minúsculo país. O exército também forçava hutus a assassinarem seus vizinhos, parentes e também a delatar tutsis escondidos. Entretanto, muitos hutus não hesitaram ou tampouco se comoveram com seus amigos e vizinhos tutsis e também se juntaram na matança.

O massacre começou em abril e terminou apenas julho, quando a FPR conseguiu tomar a capital Kigali e expulsar os inimigos hutus, que fugiram principalmente para o Zaire, atual República Democrática do Congo – onde até hoje representam uma ameaça. Com o avanço da FPR, milhares de civis hutus também foram assassinados por vingança. A guerra civil gerou milhares de refugiados nos países vizinhos, onde muitos morreram de cólera e de fome – principalmente crianças. Entretanto, a principal dúvida que fica é, como a comunidade internacional na época permitiu um genocídio previamente anunciado?

As principais nações ocidentais envolvidas no conflito, notadamente França e Bélgica, pouco fizeram para evitar o genocídio. Os belgas, que ocuparam Ruanda até a Segunda Guerra Mundial, retiram suas tropas após a morte de dez soldados. As forças de paz da ONU evacuaram os estrangeiros e também se retiraram. O chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan,  apesar dos alertas do comandante das tropas de paz, o canadense Roméo Dallaire, ignorou completamente a ameaça antes e depois do genocídio.

A França até hoje é acusada por colaborar com o genocídio. Um relatório, divulgado em março deste ano, aponta uma série de omissões e imprudências por parte do governo francês de François Mitterrand (1981-1995). Segundo a investigação, a França manteve-se aliada ao regime extremista do ditador Habyarimana e ignorou completamente os indícios do genocídio. O governo francês, com intenções colonialistas, chegou a entregar milhares de armas, munições e treinar o exército ruandês antes do genocídio. Quando a bomba estourou, pouco fizeram para remediar.

Entregues à própria sorte, durante dois meses civis tutsis e até mesmo hutus moderados foram assassinados. Após o fim da guerra civil, milhares foram julgados nos tribunais de Gacaca e no Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Hoje, Ruanda ainda segue sob o governo de Paul Kagame, fundador da FPR. O país conseguiu seguir em frente, apesar das críticas.  Atualmente, a nação tem crescido e prosperado, se tornando referência. Porém, a relação com os franceses continua tensa.

Mesmo após os julgamentos e punições dos responsáveis pelo genocídio, a crítica que não se pode esquecer é ao imperialismo europeu na África – que remonta ao século XIX e início do século XX. A rivalidade entre tutsis e hutus foi muito bem explorada pelos colonizadores, que distinguiram a população acirrando disputas. Do imperialismo às intervenções externas no país africano, tudo isso contribuiu para a guerra civil e o massacre em 1994. Mesmo com sua inegável parcela de culpa, o ocidente branco abandonou o pequeno país africano no momento da guerra e até hoje nega seu envolvimento indireto com o genocídio.

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Dica de leitura: Uma Temporada de Facões: relatos do genocídio em Ruanda. Jean Hatzfeld, 2003.

Dica de Filme: Hotel Rwanda, 2004. Direção:Terry George. Disponível na Amazon Prime Video.

Bônus (livro): Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias. Philip Gourevitch, 2006.

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