Enquanto esperamos a chuva passar

Por Thaíssa Oliveira

Dando continuidade ao clima de tragédia que paira sobre o território brasileiro, o ano de 2022 chegou acompanhado de cenas desesperadoras relacionadas ao impacto do período chuvoso em diversas regiões de Minas Gerais. No período de 01 a 28 de janeiro de 2022 o INMET (Instituto Nacional de Meteorologia) registrou um índice pluviométrico cerca de 180% maior do que aqueles previstos para este período do ano no Estado. Para se ter uma ideia, a capital, Belo Horizonte, recebeu, apenas no mês de janeiro, metade de todo o volume de chuvas previsto para o ano de 2022. Esses episódios desencadearam aumentos significativos no nível de diversos rios da região, causando alagamentos, deslizamentos de terras em áreas rurais e periferias urbanas, e interdições de mais de 121 rodovias em todo o estado.  Se, por um lado, a magnitude das chuvas é um alerta incontestável do aumento da periodicidade de eventos climáticos extremos, por outro lado, os desastres vivenciados pela população mineira passam longe de serem naturais.

De outubro de 2021  até o último dia 07 de fevereiro, os dados fornecidos pela Defesa Civil de Minas Gerais registram que pelo menos 25 pessoas foram mortas, 49.234 pessoas foram desalojadas e cerca de 8.400 estão desabrigadas em decorrência das enchentes, deslizamentos de terra e (ameaças de) rompimentos de barragens no estado. Além disso, temos um incontável número de pessoas que sofreram outras perdas materiais e imateriais relacionadas a esses acontecimentos. Exemplificam isso  as pessoas que ficaram sem acesso à água potável em virtude de danos causados a estruturas de sistemas de abastecimento e as que tiveram seus planos interrompidos pela interdição de rodovias.

Passado exatamente um mês do que acredita-se ter sido o período mais crítico, a grande mídia continua investindo em suas coberturas sensacionalistas e muito pouco se fala sobre as atuais condições de vida das vítimas desses desastres ou sobre os processos de reparação dos danos sofridos. Nada mais normal, se considerarmos a narrativa falaciosa de que todo o problema é decorrente apenas de um comportamento inesperado da natureza. Afinal, se o culpado é São Pedro, mandaremos aos céus a conta de todo esse prejuízo? Quem pagará pelos nossos mortos?

Uns plantam, outros colhem

Ainda que o volume de chuvas deste período hidrológico tenha sido superior ao esperado, é importante compreender – e, sobretudo, denunciar – a relação direta que existe entre estes eventos e o modelo de “desenvolvimento” levado a cabo pelo capitalismo. Em Minas, a intensificação de processos de urbanização insustentáveis e de modelos arcaicos de drenagem urbana se somam à compactação dos solos nas áreas rurais, resultado do desmatamento e da expansão do agronegócio, com suas pastagens e monoculturas. A cereja do bolo fica por conta da atividade mineradora e de seu rastro de lama, responsável pela morte dos rios, pela contaminação dos solos e pelo deslocamento forçado de centenas de pessoas. 

As mudanças climáticas prometem prejuízos em diversos setores, porém é fácil perceber que são sempre as populações pobres as que sofrem o maior impacto desses desastres ambientais e tecnológicos, na medida em que são forçadas pela própria estrutura de desigualdade a ocuparem áreas de risco, como as encostas de morros, margens de canais, várzeas e beiras de córregos. Enquanto os ricos e bilionários lucram com o modelo predatório de desenvolvimento, os mais pobres sofrem periodicamente com as tragédias anunciadas – que incluem a perda de seus familiares, de suas casas e de seus próprios modos de vida. Seja em Belo Horizonte, em Patos de Minas ou nas demais cidades do interior, as notícias nos mostram que as pessoas mais afetadas pela chuva têm classe social e cor muito bem definidas. E, justamente por isso, sofrem com a já conhecida invisibilização de seus sofrimentos e de suas lutas.

“Ainda que o volume de chuvas deste período hidrológico tenha sido superior ao esperado, é importante compreender – e, sobretudo, denunciar – a relação direta que existe entre estes eventos e o modelo de ‘desenvolvimento’ levado a cabo pelo capitalismo (…)”

Com o custo de vida cada vez mais alto e a taxa de desemprego no Brasil maior do que 13%, as cheias de 2022 têm o agravante de aconteceram em um momento no qual mais de um quarto da população mineira já se encontra em situação de pobreza ou extrema pobreza. Assim, os impactos sentidos pela população são multiplicados pela impossibilidade de recuperação econômica e pela incapacidade (programada) do Estado em dar conta das demandas apresentadas, como a realização de obras de urbanização que possibilitem a moradia segura nos locais que atualmente estão sob risco, programas participativos de reassentamento, justa indenização pelos danos materiais e imateriais sofridos, direito à memória, verdade e justiça pelas vítimas e indenização pela perda de atividades econômicas.

A partir do momento em que compreendemos que as perdas e danos provenientes das chuvas não podem ser atribuídas a causas naturais, e sim a injustiças ambientais, torna-se imperioso que os culpados por estes desastres sejam devidamente responsabilizados e cobrados. Assim, um dos primeiros passos para uma verdadeira mudança é assumir que ações de âmbito assistencialista – como a distribuição de cestas básicas, a alocação das famílias atingidas em abrigos temporários insalubres e a realização de campanhas de doação de roupas – estão longe de ser suficientes para resolver o problema.

Revitimização das populações atingidas por barragens

Além de um agravamento dos episódios anuais de mortes e deslocamentos forçados decorrentes das enchentes e deslizamentos de terra, as chuvas de 2022 em Minas Gerais trouxeram à tona uma espécie de trauma coletivo ligado aos recentes episódios de rompimentos de barragens no estado. No dia 08/01, o extravasamento de um dique de contenção de água na Mina de Pau Branco (da multinacional francesa Vallourec) atingiu veículos e interditou durante vários dias a BR-040 em Nova Lima. Mais do que isso, nos lembrou da ameaça das atividades de mineração no estado, que, no dia 17 de janeiro, estava com aproximadamente 36 barragens na iminência de um rompimento. 

Dentre os casos mais emblemáticos deste período, citamos o de Pará de Minas, que emitiu alerta máximo para os moradores do entorno da Barragem do Carioca (da Pequena Central Hidrelétrica Santanense), culminando na evacuação de emergência de diversas comunidades rurais em municípios vizinhos. 

A cerca de 160km daquele local, no mesmo dia 08/01 os moradores de Congonhas assistiram aterrorizados a deslizamentos de terra na barragem Casa de Pedra (Companhia Siderúrgica Nacional – CSN), maior barragem de rejeitos de mineração localizada em território urbano da América Latina, que em 30 segundos seria capaz de soterrar completamente alguns dos bairros da cidade. 

Para alguns, o fantasma do rompimento de barragens assombra pelo constante estado de medo e alerta. Para outros, é um passado que retorna a cada início de ano, com as cheias que carregam mais uma vez a lama tóxica para dentro de suas vidas. Esse é o caso das famílias que moram às margens da Bacia do Rio Paraopeba, atingidas em janeiro de 2019 pelo rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. 

A erosão dos rios e córregos, provocada pela onda de lama, somada à natureza argilosa dos rejeitos depositados em seu fundo e em suas margens, alterou de maneira decisiva a capacidade desses rios de assimilar as chuvas mais pesadas do verão. Desta maneira, tanto no ano de 2020 quanto agora, em 2022, registra-se um processo de revitimização das comunidades atingidas, que, além de estarem há três anos com suas fontes de água comprometidas e impedidas de utilizar o Rio Paraopeba para suas atividades sociais, econômicas e produtivas, tiveram mais uma vez suas casas alagadas pela água contaminada e suas áreas produtivas invadidas rejeitos da mineração.

Moradores dos municípios de Esmeraldas e Paraopeba informam que em alguns pontos o rio chegou a subir até 8m acima do seu nível normal, deixando centenas de famílias desabrigadas, sem acesso à água potável e isoladas devido à interdição das estradas rurais, já de péssima qualidade. Enquanto isso, os donos da Vale S.A. continuam enriquecendo e exibindo em horário nobre suas propagandas mentirosas sobre a recuperação socioambiental do território atingido. 

Neste contexto, é importante destacar o abandono das comunidades por parte da Vale e das estruturas do Estado, que insistem em desvincular os recentes episódios de cheias e o rompimento da barragem, ocorrido em 2019. Tal situação, além de escancarar mais uma vez a relação promíscua do Estado de Minas Gerais com mineradoras criminosas, aponta para a insustentabilidade do modelo de mineração capitalista, que coloca o lucro acima da vida das pessoas e opera contra os anseios e as necessidades do povo. Contudo, se o desafio de se morar em áreas atingidas é grande, maior ainda é a luta das comunidades, que continuam resistindo bravamente na reconstrução de seus territórios, de suas vidas e da denúncia dos crimes provocados pelas mineradoras.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *