Eleições no fim do mundo: quem nos salvará do fascismo?

Definitivamente, a eleição que acabamos de passar não foi comum. E se o nosso cenário oculta uma crise muito maior?

Por Gustavo Lagares

“A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; no meio tempo, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”

Antônio Gramsci

Definitivamente, a eleição que acabamos de passar não foi comum. Ao que parece, foi o auge de um período nefasto no país iniciado com o golpe de 2016. Desde o fim da ditadura civil-militar em 1985, o Brasil não se aproximava tanto do fosso do autoritarismo quanto na eleição de Bolsonaro no pleito de 2018 e na sua quase reeleição no pleito de 2022. Como no meme do filme De Repente 30 (abaixo), muitas pessoas que nasceram na época da redemocratização não imaginavam iniciar a vida adulta com perspectivas tão sombrias. Como chegamos nessa situação? Meu argumento é que o nosso cenário oculta uma crise muito maior. Crise não, já que crises são passageiras. Oculta, na verdade, a falência do sistema em que vivemos. Tanto pela estagnação da economia mundial, quanto pela iminência de um colapso ecológico.

Que o capitalismo é guiado pelo lucro, todos sabemos. Mas isso significa que a economia não se dedica a suprir necessidades humanas: visa produzir novas demandas por mercadorias infinitamente. Por isso, para funcionar, o sistema capitalista precisa produzir sempre mais mercadorias e mais barato. Só assim consegue manter a taxa de lucros necessária para acumular mais capital e reinvestir uma parte em um novo negócio, ainda mais lucrativo. Mas é claro que isso tem um limite, porque não é possível seguir expandindo a produção infinitamente em um planeta finito.

Esse processo gera dois lados da mesma tragédia: o primeiro é a mercantilização contínua de todas as esferas da vida. Inclusive daquilo que nem é mercadoria, porque não foi produzido por ninguém como a terra e até nós mesmos. Por isso as relações vão, cada vez mais, se tornando individualistas e nosso sentido de “comum” vai sendo esvaziado. Não é de se surpreender que nos sintamos cada vez mais isolados e alienados por conta disso. Fomos expropriados da terra e privados de viver algum sentido de comunidade, como boa parte das sociedades humanas viveu na maior parte do tempo.

O segundo lado é a destruição das condições de habitabilidade do planeta. Essas condições são mantidas por um sistema complexo e adaptativo, movido pelas interações diversas entre energia, matéria e organismos vivos. As emissões de gases de efeito estufa, a sexta extinção em massa de espécies e o excesso de poluentes estão a ponto de engatilhar um “modo de operação” alternativo do sistema Terra, que será irreversível e destruidor para a vida humana e não-humana. Não se trata da extinção da vida na Terra, mas certamente do fim do mundo como conhecemos. Ou seja, o capitalismo é um sistema suicida.

Estou convencido que nenhuma tecnologia ou reforma política irá acabar com a necessidade do capitalismo por lucros crescentes. É algo que está no seu DNA, uma estrutura de funcionamento sem a qual ele simplesmente rui. Por isso, após 50 anos de negociações internacionais em torno da questão ambiental, nunca se emitiu tantos gases de efeito estufa, o desmatamento e a poluição seguem galopantes. Não existe razão para esperarmos que esse quadro se reverta pela ação de governantes bem-intencionados.

Nesse caso, colocar todas as nossas energias políticas em vencer eleições, como uma parte expressiva da esquerda fez, não é uma boa estratégia de médio e longo prazo. É evidente que foi importante evitar uma reeleição de Bolsonaro de um ponto de vista imediato. Mas se o que enfrentamos é uma crise estrutural do capitalismo que ameaça nossa condição de vida no planeta, focar unicamente em processos eleitorais é um tiro no pé. Não é por acaso que tanta gente se mostrou desesperançosa com os pleitos atuais. Os dois lados votaram mais por rejeição do que por identificação. Ou seja, a maioria das pessoas está insatisfeita com a falta de alternativas.

O fascismo sempre à espreita

Para entendermos melhor essa crise oculta, é preciso conectar a ditadura com o cenário político atual, a fim de reagir à altura do desastre que estamos vivenciando hoje. Afinal, como resistir a esta onda tão violenta que acomete nosso país? Como é possível que, em uma década, nossa perspectiva de vida e de futuro tenha se desfeito?

Antônio Gramsci, comunista e filósofo italiano, perguntou-se algo parecido ao ser preso e derrotado pelo fascismo na década de 1930. Foi nesse contexto em que ele escreveu a frase que abre este texto. Regimes autoritários dentro do capitalismo, como o Nazifascismo, seriam os sintomas de um sistema em crise incapaz de parir um novo. Podemos dizer, de uma forma um tanto simplista, que o fascismo é instalado quando as instituições liberais se tornam incapazes de garantir a continuidade da expansão do capital. Se o fascismo está sempre à espreita, é porque ele é o último recurso do capitalismo em crise.

Proponho aplicar essa mesma ideia à ditadura e ao bolsonarismo. No primeiro caso, a derrubada de João Goulart em 1964 integrou a onda de golpes que ocorreu na América Latina fomentada pelos Estados Unidos em resposta à revolução Cubana (1959). O fantasma da ameaça comunista foi a justificativa central dos governos ditatoriais, que cercearam liberdades, torturaram e mataram opositores e submeteram o país aos interesses estrangeiros. “Deus, pátria e família” já eram evocados por uma parcela da população – minoritária, mas poderosa.

Passados 21 anos, o Brasil havia se tornado mais desigual, mais violento e com uma dívida enorme com o capital externo. O sonho do progresso nacional, sustentado pelo Milagre Econômico em 1970, revelou-se um pesadelo na década perdida de 1980, quando a crise do petróleo e a retomada da hegemonia estadunidense desembocaram no neoliberalismo. Os países já não deveriam aspirar seu desenvolvimento econômico nacional, mas se conformar em pagar suas dívidas, abrir mão dos seus investimentos e manter o orçamento sempre positivo. Era preciso renunciar à política econômica nacionalista para saciar a agiotagem do setor financeiro.

Apesar dessas restrições, a redemocratização abriu um período de melhoria sob diversos aspectos, sobretudo nos primeiros 10 anos de governos petistas. Caso você seja um millennial, como eu, é possível que você tenha crescido acreditando que a sociedade está em constante evolução e que eventualmente “chegaremos lá”, em um tipo de bem-estar social tupiniquim. Quem imaginava o que estava por vir? Golpearam Dilma, entregaram o pré-sal, mataram Marielle, desmontaram a indústria nacional, passaram a boiada, sufocaram os investimentos em educação e saúde, barraram as pautas feministas e raciais… (a lista segue, infelizmente).

Mas como uma figura detestável e inapta como Bolsonaro chegou ao poder em 2018 e quase repetiu o feito agora em 2022? Sua ascensão começou em 2012, quando os generais de pijama o viram defender as torturas e assassinatos da Ditadura no contexto da Comissão da Verdade, que apurava tais crimes. “Quem procura osso é cachorro”, constava na faixa do deputado. Isso agradou gente como Ustra, de quem Bolsonaro se tornou próximo. No entanto, na década de 1980 ele havia sido preso por indisciplina e quase foi expulso da corporação por elaborar planos de atentado à bomba em quartéis. Nesse processo, o então Ministro do Exército o descreveu como “um mau militar” que “havia maculado a dignidade militar”.  

O apoio dos milicos aposentados se somou ao dos fóruns online de Alt-Right que o nomearam Mito, seguido pelos apoios de neonazistas, garimpeiros, madeireiros, latifundiários, milicianos e demais oportunistas. O movimento cresceu e ganhou apoio de lavajatistas e fundamentalistas, o que deu maior capilaridade ao movimento. A tônica moralista e religiosa mobilizou tabus, medos e, principalmente, ressentimentos. A política econômica nem era mencionada, porque ninguém ganha eleição dizendo que vai cortar os investimentos sociais e entregar tudo para o setor privado. Mesmo porque o orçamento já estava estrangulado pelo teto de gastos de Temer. Tudo o que o presidente precisaria fazer é “não atrapalhar o empresário” (tá okay?).

Se o Bolsonarismo é o sintoma, qual é a doença?

Voltemos ao meme expoto no início do texto. Talvez o leitor estranhe eu trazer um meme aqui, mas, convenhamos, memes  são muito eficazes em transmitir uma mensagem. O que esse Meme em específico diz para os jovens adultos além de “se f***”? A meu ver, a mensagem implícita é que os donos do poder já romperam o “pacto civilizacional” firmado pelo capitalismo. Tudo o que querem é lucrar o máximo no menor prazo possível (já que o amanhã arrisca não existir). A promessa de melhoria social nunca se concretizou. Ao contrário, o abismo social só aumentou e as perspectivas de vida se deterioraram. A burguesia agora aguarda o apocalipse em seus bunkers ou sonha colonizar Marte!

Suponhamos que eu encontre o João, um petista ferrenho, e apresente esse quadro para ele. É possível que ele argumente: “por isso tivemos que eleger o Lula! Para mudar de vez esse cenário”. Essa ideia me parece superestimar a capacidade de um presidente resolver problemas num país. Ainda que bastasse reformar o capitalismo, por que Lula não fez isso na sua presidência? Com 80% de aprovação e maioria no Congresso (meio comprada), não pautou uma reforma tributária progressista, tampouco a reforma agrária. Também fomentou a guerra às drogas e manteve as isenções fiscais para o setor extrativista (agronegócio e mineração). E que a gente não se esqueça de Belo Monte!

Por que esperar que ele faça um governo mais progressista agora, com um cenário muito mais desfavorável? Diante dessa questão, a Maria, minha amiga do PSOL, poderá argumentar: “realmente, é muito difícil, mas precisamos ao menos ampliar direitos!”. Acho que é esse é o ponto! A eleição de um governo progressista permite a ampliação real de direitos? Se a gente considera direito fundamental o acesso e pertencimento à terra (do qual os outros dependem), mesmo os governos progressistas retrocederam. Já as políticas assistenciais e de inclusão são concessões momentâneas, revogadas em qualquer sinal de crise. Ao menos é isso que ocorreu sistematicamente nos países periféricos. Ou seja, são paliativos. Elas podem aliviar males sociais momentaneamente, como a fome, falta de moradia e estudo, mas que logo em seguida eles reaparecem e até mesmo se agravam.

O quanto essas concessões nos permitem avançar na superação do capitalismo, eu tenho fortes dúvidas. Concordo que o investimento e o acesso à educação ampliam horizontes e que pessoas alimentadas vão ter mais energia para construir alternativas. Mas se elas não compõem um projeto concreto de transição para além do modelo Estado-mercado, parece-me que a luta por alternativas reais arrefece e as pessoas passam a acreditar ainda mais na possibilidade de o sistema ser “domado”.

Finalmente, a Maria poderá dizer: “mesmo que não consiga nenhuma melhoria substantiva, precisamos conter os danos agora!”. Realmente, faz sentido querer conter danos na situação atual, mas, se isso ocorrer, será novamente algo provisório. O que precisamos urgentemente é começar a reverter os danos causados pelo capitalismo. Para ontem. O que só será possível com uma estratégia política concreta para superá-lo.

Autonomia ou barbárie

Como critica Mark Fisher, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Mas, citando Ursula Le Guin, assim como o direito divino dos reis foi revogado, também o capitalismo irá ruir. A questão hoje é como construir alternativas ao invés de insistir em paliativos. As pessoas mais afetadas sucessivamente pelas crises são as que mais imediatamente percebem que o sistema está falido. E quando elas veem a esquerda defendendo a legitimidade das instituições enquanto a extrema direita as questiona, essa gente desenganada (com razão) opta pelo discurso de ruptura. Por mais violento e contraditório que ele possa ser.

Essa é a receita do fascismo, canalizar toda a insatisfação social em inimigos imaginários. Para combatê-lo, é preciso que a gente deixe em segundo plano nossa preocupação com eleições e comece a se organizar em redes e territórios de autonomia. Como podemos nos opor a uma dada ordem permanecendo completamente dependentes dela? Sem autonomia territorial, alimentar, energética, hídrica, científica etc.. não é possível resistir. Hoje esses espaços são poucos, mas muito significativos, como o movimento Zapatista em Chiapas, no México, ou a resistência Curda, no Oriente Médio. Há também muitas redes e movimentos populares, ecovilas, povos tradicionais… ainda incipientes na sua resistência contra o sistema suicidário. Outros, finalmente, estão ainda por serem criados.

Enquanto a esquerda continuar defendendo as instituições capitalistas, a direita aglutinará para si o sentimento de insatisfação social e possibilidade de ruptura. O que precisamos urgentemente é transicionar para outros tipos de sociedade. Não substituir um modelo único por outro, mas pela diversidade de formas de habitar o planeta, em que a economia busque atender as necessidades humanas e não o lucro. Em que a relação com a terra seja recíproca e não uma via exploratória de mão única. Só assim a gente mesmo vai se salvar do fascismo. 

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