Dos gorjeios aos fatos: Twitter e política

Como o Twitter ganhou tanto peso político, a ponto de hospedar intrigas diplomáticas e ser considerado imprescindível por jornalistas?

Pagando 44 bilhões de dólares, Elon Musk, o burguês famoso pela Tesla e pela SpaceX, adquiriu o Twitter em um processo que durou de abril a outubro de 2022. Além do capital do próprio Musk, grandes bancos e investidores, no mínimo, curiosos, ajudaram a compor o montante. Com os aportes de instituições como o Bank of America e o fundo soberano do Qatar e de figuras como o saudita Al Waleed bin Talal Al Saud (da realeza), o Twitter agora é efetivamente uma empresa de capital fechado e pertence, em última instância, a Elon Musk. Ocorre que isso escancara alguns fatos e gera outras controvérsias.

Neste texto, faço uma exemplificação e uma discussão sobre o peso do Twitter na cena política. Prossigo, então, com uma caracterização do Twitter enquanto uma corporação, ressaltando alguns dos interesses a que ela atende, e faço uma breve análise dos problemas do serviço prestado. Por fim, problematizo escândalos recentes e arbitrariedades de Elon Musk, contextualizando esses fatores no ciberespaço.

O Diário Oficial e a diplomacia ou os 280 caracteres?

Certamente, você, leitor, já estranhou o fato de algo ser postado no Twitter (talvez se perguntando o porquê de o não ser em outro lugar) ou algo relacionado a essa infame rede social. Calma, não pense apenas no contexto pessoal. Refiro-me ao peso adquirido pela plataforma na condução e nas mediações das disputas políticas da atualidade. Trago, pois, dois exemplos disso.

O primeiro é conhecido: Eduardo Bolsonaro fez, em março de 2020, postagem culpabilizando, sem fundamentos, como de costume, a China pela pandemia, além de tê-la caracterizado como uma ditadura. A Embaixada chinesa respondeu com direito a deboche, dizendo que Eduardo havia contraído um “vírus mental”. Nesse jogo “twitteiro” de troca de farpas, colocou-se em risco (não pela primeira vez, por atrevimento irresponsável de um Bolsonaro) a relação diplomática com o maior parceiro comercial do Brasil.1Antes de ser eleito, Jair Bolsonaro já sinalizava que colocaria o Brasil na posição de pária, como, de fato, colocou. Em março de 2018, Jair visitou Taipei e se referiu a Taiwan como país independente. (O ocorrido consta na matéria “The Bolsonaros’ troubled relationship with China”, no portal Diálogo Chino, publicada em 26 de março de 2020, por Maurício Santoro.) Pequim reagiu, reafirmando sua soberania sobre a ilha, considerada uma espécie de “província rebelde”. Afronta semelhante chegou a escalar tensões militares entre China e Estados Unidos em agosto de 2022, quando Nanci Pelosi visitou Taiwan como Presidente da Câmara dos EUA, desrespeitando a mesma política de Uma Só China que Jair desrespeitou em 2018.

O segundo exemplo é ainda curioso: a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em julho de 2021, entrou com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal, solicitando que Bolsonaro fosse proibido de bloquear jornalistas no Twitter. O pedido tinha como fundamento a noção de que a conta do presidente – destaque-se: conta pessoal, em uma empresa privada de comunicação – era essencial ao trabalho da imprensa.

Fica posta, assim, a intrigante dúvida: como o Twitter ganhou tanto peso político, a ponto de hospedar intrigas diplomáticas e ser considerado imprescindível por jornalistas? É certo que, em vez de se valerem do perfil do presidente, talvez estes obtivessem mais resultados monitorando prioritariamente o Diário Oficial ou o Portal da Transparência. Também é evidente que a diplomacia evitaria problemas se não tivesse que responder por delírios de marmanjos como o Bananinha em uma rede social que, a princípio, é feita para entretenimento.

O que salta aos olhos nesses e em outros casos, porém, é a ausência de critério para que o Twitter seja a plataforma eleita para ter quase um caráter oficial. Daí a necessidade de contextualizarmos.

O que é o Twitter?

Se alguém pede uma definição do Twitter, o primeiro impulso que temos, por senso comum, é afirmar que se trata de uma “rede social”. Porém, a aparência de neutralidade desse termo pode ser rapidamente dissipada se pensarmos no Twitter como Twitter Incorporated. O caráter corporativo desse serviço de rede social é óbvio. Se aplicarmos a mesma lógica à Meta (Instagram, Facebook e Whatsapp), à Alphabet (Google) e à Amazon, para ficarmos só nos exemplos mais gritantes, notaremos que o que está em jogo não é a forma de interação social, mas a propriedade do serviço e dos dados coletados nele.

A forma de interação, portanto, é propositalmente ajustável ao interesse real. A saber, compõem os objetivos desse interesse manter propriedade sobre uma quantidade imensa de dados, influenciar nas disputas políticas de forma mercenária (favorecendo quem for conveniente) e vender informações e espaços de anúncios para quem quiser comprar – incluindo os serviços de inteligência estadunidenses, que, inclusive, investem no setor. Não por acaso, a tal forma da interação, no Twitter, risivelmente traça uma comparação entre as pessoas que usam o serviço (e são usadas por ele) e aves que gorjeiam.

Fora o fator mercadológico da empresa, o Twitter, enquanto software ou conjunto de softwares, é de código fechado.2Refiro-me, aqui, ao código-fonte (source code), que é “uma versão do software da forma em que ele foi originalmente escrito (digitado em um computador) por um humano em texto puro (caracteres alfanuméricos humanamente legíveis)” – definição do Projeto de Informação do Linux. Isso significa que ninguém externo à corporação sabe, de fato, como ela processa, armazena e usa os dados dos usuários, tampouco como ela funciona a nível de programas.3Mesmo que parte do código venha a ser aberta, como já chegou a cogitar Elon Musk, não há como confiar na identidade entre o que for revelado e o que vai efetivamente operar.

Daí vermos tantos “comunicadores” batendo cabeças sobre como agradar melhor o “algoritmo“, entidade ironicamente assim denominada. Afinal, algoritmos, define o Dicionário Priberam, são conjuntos de “regras e operações bem definidas e não ambíguas, que, aplicadas a um conjunto de dados e num número finito de etapas, conduzem à solução de um problema”. Ocorre que, se ninguém pode vistoriar essas regras e operações, a “solução” é a que agradar o proprietário.

Se hoje esse proprietário é famoso (Musk), vale lembrar que nem sempre foi assim, ao menos fora dos EUA. Para crescer e se consolidar, o Twitter contou com o apoio do capital financeiro. Só para exemplificar, em setembro de 2009, a empresa emitiu nota informando sobre quem bancava suas operações. Entre as partes citadas, estavam:

  • Insight Venture Partners, ou, em termos práticos, uma firma de investidores voltada para “aumentar receitas e lucros de empresas de software”, fundada por Jeff Horing e Jerry Murdock.
  • T. Rowe Price, uma multinacional gestora de investimentos baseada nos EUA.
  • Institutional Venture Partners, uma empresa de capital de risco estadunidense fundada nos anos 1980 e ligada por investimentos a empresas como a Microsoft.
  • Spark Capital, outra empresa de capital de risco, focada em mídia e softwares, que também investiu, por exemplo, no Tumblr e no Foursquare.
  • Benchmark Capital, também de capital de risco, responsável pelos investimentos por trás do eBay, do Uber e do Dropbox, por exemplo.
  • Morgan Stanley, gigante do setor de investimentos que remonta aos anos 1930 e acumula um formidável histórico de processos e multas pós-2008.

Como se constata, o Twitter, assim como outras empresas hoje grandes, não ficou enorme por mérito do seu software de microblogue nem por uma adesão espontânea de notáveis personalidades que teriam reconhecido a plataforma como meio legítimo e desejável de comunicação. Por trás da escalada, há o amparo poderoso de investidores de peso – algo diferente do que ocorre, por exemplo, para alternativas livres e abertas, como o GNU Social ou o Mastodon.

Aliás, comparativamente, o Twitter tem inconveniências notórias. Muitos anúncios, criação de bolhas, robôs operando massivamente, ausência de criptografia de ponta a ponta, dinâmica de postagens que satura o leitor, um bombardeio de informações frequentemente indesejadas (poderíamos continuar essa lista longamente). O site “Terms of Service: Didn’t read” classifica o Twitter com nota E, a pior possível. Entre os abusos identificados pela organização, estão o armazenamento de dados de usuários que sequer interagiram com o serviço, o fato de a empresa poder ler as conversas privadas dos usuários e o seu histórico de navegação (do navegador), o armazenamento e a distribuição de informações deletadas ou substituídas pelo usuário e a possibilidade de exclusão sumária de conteúdo.

O que será o Twitter sob Elon Musk?

Falando em arbitrariedades, é aí que entram os escândalos recentes de Elon Musk. O burguês alegava ser defensor da liberdade de expressão e, após a compra da empresa por 44 bilhões de dólares, atuou como o golpista que gosta de ser.4Em 25 de julho de 2020, Musk respondeu a um internauta que o questionava sobre as relações do bilionário com o golpe de Estado feito na Bolívia contra Evo Morales com apoio do governo dos EUA. De forma explícita, Musk disse “We will coup whoever we want! Deal with it!” (Nós vamos golpear quem quisermos. Lide com isso!). O interesse do burguês na Bolívia era o lítio, componente essencial para os carros elétricos da Tesla. Como esses 44 bilhões não vieram só dele próprio (ele levantou 13 em empréstimos), a primeira medida foi um conjunto de demissões em massa, afetando setores importantes da empresa. Foram desligados funcionários, inclusive, do setor de segurança. Além disso, Musk dissolveu toda a mesa diretora, estabelecendo-se como diretor solo. Entre as diversas mudanças anunciadas, rumores e temores, chama a atenção o que ocorrerá com contas e postagens de pessoas críticas a Musk ou adversários políticos em geral.

O último escândalo foi a suspensão das contas de jornalistas de órgãos da grande imprensa estadunidense e independentes. A lista de empresas dos jornalistas banidos inclui o New York Times, a CNN, o Washington Post e o The Intercept. Eles cobriam justamente a figura Elon, que alegou que os jornalistas estavam praticando doxing5Nota: O doxing (algumas vezes escrito como “doxxing”) é a ação de revelar informações de identificação sobre alguém na Internet, como seu nome real, endereço residencial, local de trabalho, telefone, dados financeiros e outras informações pessoais. Essas informações então circulam para o público, sem a permissão da vítima. (definição tirada do site da Kaspersky). Na verdade, tais jornalistas estavam usando informações disponíveis publicamente, especialmente sobre o jato privado do burguês (risos). Posteriormente, Musk se manifestou na plataforma, dizendo que os banimentos seriam suspensos em função do resultado de uma enquete que ele havia criado (Ou seja, nem ele próprio tem convicção do ato. Uma espécie de Herodes do mundo digital? Talvez, mas o apelo à força de enquetes demonstra que Musk sabe ou tenta capitalizar a opinião pública a seu favor.). Entretanto, há uma disputa política como cenário dessas medidas.

Há, ainda, o risco de que a plataforma passe a ser um abrigo benquisto pela extrema-direita, talvez mais pela sua faceta fascista, talvez mais pela neoliberal, mas certamente pelas vertentes conspiracionistas e lunáticas. O periódico The Hill publicou, neste 17 de dezembro, uma matéria em que reporta que os conservadores têm comemorado as medidas de Musk desde que adquiriu a empresa. Isso inclui desde membros eleitos do Partido Republicano até figuras como Mike Lindell, autodeclarado evangelista e filantropo que, na verdade, é teórico da conspiração, entusiasta do trumpismo e, sob a gestão de Musk, foi reincorporado à rede, fato que comemorou com uma postagem em que dizia, da forma mais repugnante possível:

“Estou de volta! Obrigado Elon Musk e, a propósito, DERRETAM AS MÁQUINAS ELETRÔNICAS DE VOTAÇÃO E TRANSFORMEM-NAS EM GRADES DE PRISÕES.”

Uma mistura de bajulação, golpismo e punitivismo na mesma postagem, feita por alguém que, não fosse o ego e o dinheiro de Musk, estaria falando para os travesseiros (ele é dono da MyPillow, uma empresa que fabrica travesseiros).

Essa imagem bizarra é uma propaganda de Mike Lindell (em seu site) para a série de conferências “Momento da Verdade”, em que Lindell defende Trump e questiona o resultado das eleições nos EUA.

No reinado do burguês que está viciado no produto que comprou, haverá mais espaço para a extrema-direita que alegava ser vítima de shadow-banning do Twitter – o próprio Musk afirmou que isso ocorria. Na verdade, vale ressalvar, há figuras de esquerda que se queixam (embora bem menos) desse tipo de silenciamento por plataformas como o Twitter e o Instagram. Há nisso um quê de ingenuidade, uma expectativa de que supostamente a rede deveria ser democrática “por padrão”.

Confirma isso o fato de que a instrumentalização da forma de interação por corporações como o Twitter chega a criar uma névoa de ilusões participativas nos internautas. Note-se que nem com a compra de 44 bilhões parece ter ficado claro que o fator determinante é a propriedade. Duvida? Em 18 de dezembro, Elon Musk criou uma espécie de pseudo-cidadania virtual, ao fazer outra enquete, perguntando se deveria deixar de ser o chefe do Twitter e prometendo que obedeceria o resultado da pesquisa.

Mas calma: a doce sensação de ver a maioria votar “sim” não pode obscurecer o fato de que, independentemente de quem exerce as funções executivas na corporação e do rosto associado a ela, as decisões obviamente serão tomadas pelo proprietário (ele). O que Musk faz é, na verdade, uma jogada velha. Por um lado, ela pode dar a ele alguém para culpar quando alguma medida impopular for tomada. Em contrapartida, ao mesmo tempo, com a enquete, o burguês reafirma sua autoridade. Parece um autocrata lançando um plebiscito para salientar que, embora haja embaraço público com o seu mando pessoal, trata-se de um mando autorizado – ou um monarca do século XIX outorgando uma Constituição como se fosse doação ou benevolência.

Embora seja acintoso, tudo isso não é surpreendente. Afinal, o Twitter é uma plataforma de código fechado, proprietária e sem regras claras, cada vez mais semelhante a uma monarquia. Softwares proprietários não respeitam a liberdade e o senso de comunidade dos usuários e, evidentemente, têm uma tendência a fazer isso e muito mais – como vender sua base de dados para outras empresas cujos clientes são desconhecidos ou nada confiáveis.

Despolitização e alternativas

Um único tweet possui informações sobre o dispositivo usado na postagem, a geolocalização real e a geolocalização informada, o número de seguidores da conta do twitteiro e mais de outros 40 pontos de metadados.6Metadados são informações sobre outros dados, voltadas para o manejo massivo destes. Tais informações são computadas por uma ferramenta chamada MetaCarta (que é outra empresa), criada com o apoio da DARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa), um órgão militar dos EUA, e depois financiada pela In-Q-Tel, uma empresa de capital de risco que é publicamente conhecida por estar a serviço da CIA. Isso mesmo, a Agência Central de Inteligência estadunidense, departamento de vigilância e informação do imperialismo.

O que tudo isso diz para as esquerdas que procuram quixotescamente ganhar espaço em redes assim? Primeiro, que as plataformas proprietárias são um jogo de cartas marcadas, de sorte que os esforços de disputa por hegemonia ali não têm resultados regulares. Em seguida, vale ressaltar a incoerência de se propor um modelo de sociedade liberta da propriedade privada, do imperialismo e das classes enquanto se legitima sempre plataformas cuja principal característica é sacrificar todo e qualquer princípio ou modo de funcionamento em favor da força da propriedade e dos interesses do Tio Sam. Isso, claro, considerando que existem alternativas ignoradas ou desprezadas por uma esquerda que, nas redes, vive quase sempre a reboque.

Encaminho o final deste texto, então, com outro exemplo curioso: o Koo. Depois das presepadas de Musk e das incertezas quanto ao futuro do Twitter, por galhofa (especialmente explorando a cacofonia do nome na língua portuguesa) e algum grau de ignorância, muitos brasileiros passaram a criar contas no Koo, enviar seus dados para o Koo e a compartilhar o Koo. Isso foi feito mesmo sem que a maioria soubesse quem o controla ou quais os interesses e perigos dele enquanto empresa.

Embora Felipe Neto não seja um militante de esquerda, o fato de sua conta no Koo ter sido invadida é educativo. O invasor ainda foi didático, apontando que a segurança era fraca. Em vez de ficar alerta, o comunicador desprezou o ocorrido e adotou uma visão acrítica sobre a plataforma.

Brincadeiras à parte, como explicar que uma empresa indiana que oferta um serviço nada original, sem inovações substanciais, proprietário, de código fechado e também desregulado consiga tamanha simpatia mesmo entre militantes de esquerda? O fenômeno demonstra uma despolitização que atinge a esquerda na trincheira digital. Despolitização no seu sentido mais profundo, isto é, as pessoas estão carentes de consciência política sobre o ciberespaço, de modo que se inserem nele de forma alienada, objetificada e inerte, sem percebê-lo corretamente como campo de disputa viciado e colonizado.

Dos gorjeios aos fatos, vale sugerir que o internauta de esquerda opte por redes livres e descentralizadas, a exemplo do Mastodon, rede de microblogues federada. Em breve, publicaremos mais sobre o tema.

“Por ‘software livre‘ devemos entender aquele software que respeita a liberdade e senso de comunidade dos usuários. Grosso modo, isso significa que os usuários possuem as liberdades de executar, copiar, distribuir, estudar, mudar e melhorar o software. Com essas liberdades, os usuários (tanto individualmente quanto coletivamente) controlam o programa e o que ele faz por eles. Quando os usuários não controlam o programa, o programa controla os usuários. O desenvolvedor controla o programa e, por meio dele, controla os usuários. Esse programa não livre é ‘privativo’ e, portanto, um instrumento de poder injusto.” Leia mais sobre software livre na página do Projeto GNU.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *