Caso sobre a Ilha do Marajó acende alertas

Viral gospel acende alertas não só para o cuidado com as crianças marajoaras, mas também para o uso de influencers pela extrema-direita com fins eleitoreiros e financeiros

Na semana passada, uma apresentação da cantora e compositora Aymeê Rocha, durante um reality show de música gospel, viralizou nas redes sociais e causou comoção entre as pessoas. O programa chamado Dom Reality é transmitido pelo canal no Youtube da Unicesumar (universidade gigante no ramo de EAD) e conta com um júri composto por nomes celebrados da música gospel nacional, como Aline Barros e Fernanda Brum. Ou seja, dinheiro para a produção não deve faltar. O título da canção é sugestivo: “Evangelho de Fariseus”. Embora originalmente “fariseus” se refira a membros de um grupo específico de judeus na Antiguidade (que, aliás, viviam mais próximos ao povo do que os saduceus), atualmente é sinônimo de “hipócritas”, aqueles que fazem o contrário do que pregam, principalmente devido a uma interpretação do capítulo 23 de Mateus do Novo Testamento e de outras passagens bíblicas. Enfim, a letra da canção tem passagens interessantes como “o Reino virou negócio/ o dízimo importa mais do que os corações”, contudo, não foram esses trechos que pastores e influenciadores republicaram em seus perfis, por razões óbvias. Pelo contrário, ironicamente pediram dinheiro. Fariseus?

A menção da letra à Ilha do Marajó é sutil: “Ah, enquanto isso, no Marajó/ o João desapareceu/ esperando os ceifeiros da grande seara”. Entretanto, ao fim da apresentação de Aymeê, o corpo de jurados do programa parecia saber como arrancar mais dela. Sendo mais claro, parecia tudo montado desde o princípio. Muito show para pouca reality. Primeiro foi passada a palavra para Marcos Freire, pastor, cantor gospel e jurado. Por quê? Marcos Freire é missionário na África e possui uma ONG para ajudar crianças vítimas de abuso sexual na capital de Angola. Marcos se emocionou bastante, chorou enquanto uma trilha sonora “emocionante” tocava ao fundo e contou uma história de violência devastadora, mas que o colocava como herói de centenas de crianças africanas. Como os jurados sabiam que a música se referia a crianças, se a letra não as cita explicitamente e havia reações de surpresa durante a execução? Eis a questão. Depois outro jurado diz: “você está se referindo às ilhas do Marajó? Você fala ‘enquanto isso lá nos Marajós… crianças…’”. Não, a letra não fala em crianças. De onde será que tiraram isso? Daí a cantora responde (e em diante é só ladeira abaixo): “Marajó é uma ilha a alguns minutos de Belém, na minha terra. Lá tem muito tráfico de órgãos, lá é normal. Lá tem pedofilia em nível hard. E as crianças com cinco anos, quando elas veem um barco vindo de fora com turistas (Marajó é muito turístico e as famílias lá são muito carentes), as criancinhas saem em uma canoa, seis, sete anos, e elas se prostituem dentro do barco por cinco reais”. E a música triste tocando ao fundo aumenta. Os jurados reagem em apoio e se mostram satisfeitos com a denúncia. Um deles levanta e vai abraçar a cantora. Antes do abraço, ela ainda diz: “às vezes nós cristãos terceirizamos muito para o governo o que é de responsabilidade nossa”. Pronto, a peça publicitária ficou completa. Pode bater a claquete.

Não sei se entendi direito a mensagem. Não devemos cobrar das autoridades constituídas, equipadas, treinadas e pagas para este fim, a responsabilidade pela investigação e punição de crimes hediondos como os denunciados que supostamente ocorrem no Marajó. Imagina! Então vejamos o que devemos fazer. Seria mais eficaz abastecer os cofres das igrejas e de ONGs fundadas por pastores confiando que essas nobres instituições vão resolver um problema extremamente complexo. Desculpem-me pela ironia. Isso é uma completa inversão das coisas. Mas foi exatamente esse o caminho.

A partir de então, dezenas de influenciadores digitais começaram a publicar efusivamente em seus perfis uma campanha aparentemente coordenada por agências de publicidade (ao que foram acompanhados por dezenas de outras celebridades e políticos que entraram no barco meio sem saberem). E se postar a música não era suficiente, postavam um texto esclarecendo os detalhes por trás da canção (ou seria da peça publicitária que emulara uma apresentação espontânea?). E como se o texto, ainda que curto, não fosse suficientemente impactante, postavam fotografias e vídeos. O pacote de imagens eram os mesmos, possivelmente produzidos para essa finalidade. Em um dos vídeos, várias crianças dentro de um porta-malas de um carro, em outra imagem, um homem beijando uma criança. Em boa parte das postagens logo abaixo apareciam os dizeres: contribua com as crianças do Marajó e um link para fazer uma transferência bancária (pix).

Entre os influenciadores que fizeram postagens, está a ex-BBB Rafa Kalimann. O perfil dela no Instagram possui 21 milhões de seguidores e sua participação chama atenção porque, além de evangélica, ela também participa de uma ONG com missões no continente africano (afinal, os brancos precisam salvar a África, não é mesmo?). Destaco um trecho do texto postado por Kalimann: “Vale lembrar que a Ilha do Marajó abriga o município com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. A região abriga um grande esquema de tráfico e prostituição de menores, carrega consigo a tristeza da miséria que atinge suas comunidades e consequentemente a exploração sexual infantil, tráfico humano, pedofilia e demais crimes, principalmente com crianças e adolescentes. Entre as causas dessa realidade, destaca-se a omissão e a passividade do governo local”. O texto de Kalimann incorre em uma associação direta perigosa e preconceituosa entre pobreza econômica e criminalidade, faz afirmações conspiratórias típicas de fake news e demonstra desconhecimento da região através de generalizações. A Ilha do Marajó possui mais de 500 mil habitantes, doze municípios e é, em área territorial, maior do que a Bélgica (40 mil metros²). Se incluir o arquipélago do Marajó, aí são 16 municípios em uma área territorial que ultrapassa 100 mil metros quadrados (Portugal, por exemplo, possui 90 mil metros²).

Uma ponta de Salvaterra, uma minúscula parte dos 40.100 km² da Ilha do Marajó (arquivo pessoal)

A respeito das imagens, as mais sensacionalistas não são oriundas do Marajó. O vídeo em que um homem aparece beijando uma criança foi gravado em Itaquiraí, Mato Grosso, em 2021. Já o vídeo das crianças no porta-malas do carro, por exemplo, foi gravado no Uzbequistão. Há “alguns” quilômetros de distância do Pará. Tal vídeo era associado a uma fala sobre abuso infantil feita pela senadora Damares Alves (Republicanos-DF) na época em que concorria ao cargo atual. Realizada justamente para promover pânico moral e angariar votos. Posteriormente, em setembro de 2023, o Ministério Público Federal entrou com uma ação civil contra Damares, requerendo indenização de 2,5 milhões por danos sociais e morais em favor da população do Marajó, por criar falsas informações sensacionalistas envolvendo abuso sexual e tortura às crianças marajoaras. Até hoje Damares não apresentou nenhuma prova do que falava. Nem vai.

E o dinheiro das doações para onde ou para quem está indo? O caminho leva ao Instituto Akachi, uma ONG evangélica, fundada em 2018 e cuja sede é em São Paulo. Como assim, não estão na Ilha do Marajó? Mais ou menos. Segundo o site do Instituto, atuam em associação com outra organização, a Fraternidade Católica Ágape da Cruz, sediada na cidade de Portel. Essa última, sim, embora não esteja em uma cidade especificamente turística como Soure e Salvaterra, faz parte do arquipélago e recebe crianças vítimas de abusos das famílias, porém encaminhadas formalmente pelo Conselho Tutelar e Justiça. De toda forma, caberia uma consulta à Fraternidade para saber como se dá essa parceria (caso confirmada). Pelas fotos encontradas na internet, nota-se que a Fraternidade possui uma estrutura relativamente humilde se comparada às imagens veiculadas pelo site do Instituto Akachi (que se assemelha a ações da UNICEF). O Instituto Akachi é presidido por Téo Hayashi e tem registro cadastrado em setembro de 2020 no município de Pariquera-Açu/SP. O único diretor cadastrado é Henrique Krigner Laino. Além de concorrer a vereador por São Paulo, Laino recebeu ação judicial por espalhar fake news que atribuía a Lula um decreto que limitava a religião cristã, entre outras mentiras.

Voltando a Téo Hayashi, é importante dizer que, além da ONG, ele lidera também uma igreja evangélica, a Zion Church. Fundada, em 1977, por Sarah Hayashi (mãe de Téo) como Igreja Monte Sião, o nome foi alterado com intuito de se expandir internacionalmente (conta com unidades em São Paulo, Recife, Maceió, Lisboa e Quito). Outro membro da igreja e da família (no caso de empresa familiar, há diferença?), Lucas Hayashi, foi à Ilha do Marajó a bordo de avião da Força Aérea Brasileira, em 2019, junto com a então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Governo Bolsonaro. Ainda que Rafa Kalimann e o próprio Téo Hayashi (em resposta às críticas) tenham dito que as ações da ONG são apartidárias, os indícios estão apontando o contrário.

Em meio à repercussão, a ONG Observatório do Marajó lançou uma nota importante sobre o cuidado com propagandas que associam a ilha à normalização de violências contra crianças, pois isso fere a dignidade da população marajoara. Aponta também a importância de fortalecer os sistema de proteção e garantia de direitos, como escolas e conselhos tutelares, ao mesmo tempo em que critica a ex-ministra Damares Alves por não ter destinado os recursos milionários prometidos. O ministro da Advocacia Geral da União, Jorge Messias, rechaçou as fake news e afirmou que haverá investigação sobre possíveis redes de desinformação que visam espalhar notícias falsas sobre a Ilha do Marajó. Nas redes sociais, o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, assentiu com Messias, afirmando que oportunistas se valem de um grave problema nacional para alavancar interesses políticos ou financeiros. Silvio Almeida também fez questão de destacar o programa federal Cidadania Marajó, criado, no ano passado, para enfrentar problemas relacionados a abusos e exploração sexual de crianças e adolescentes, bem como garantir acesso e preservação de direitos humanos dos marajoaras.

Se você leu esse texto com o objetivo de extravasar sua compaixão com a situação de exploração sexual e tráfico humano que acometem as crianças da Ilha do Marajó, já percebeu que veio ao lugar errado. Não que eu seja uma pessoa insensível e cruel e que, por isso, não se comova com as crianças marajoaras. Também não quero, com isso, afirmar que o problema e os potenciais crimes divulgados não existam. Com certeza, assim como milhões de brasileiros, me importo com as crianças e acredito que ocorram fatos perversos contra elas no arquipélago paraense, assim como em diversas regiões do Brasil, inclusive em São Paulo.

No entanto, não basta suposições, boatos e crenças na maldade humana para que disseminemos narrativas sem pé nem cabeça e que, no fim, servem para encher o bolso de pastores envolvidos até os ossos com políticos da pior categoria. Quanto mais sensível for o assunto, mais cautela é preciso ter. A extrema-direita compreendeu muito bem a economia das atenções nas redes sociais e por isso se utiliza dos artifícios mais inescrupulosos para movimentar os afetos e angariar apoio em massa. Afinal, se você não apoia a causa, poderá ser tachado como defensor de explorador sexual de criancinhas. É importante desconfiar de discursos que queiram barrar o pensamento em favor de uma ação mágica ou descoordenada. A dinâmica das redes sociais tem tornado isso cada vez mais difícil. As correntes e campanhas são cada vez mais planejadas, orquestradas, tramadas. Em tempos de agências gigantes de influenciadores, “nada é orgânico, é tudo programado”, como cantou a artista.

Lembro que nos idos de 2013, minha orientadora de TCC me enviou uma reportagem cujo título era “A indústria de memes”. A matéria falava sobre como, desde aquele período, ao menos nos Estados Unidos, os memes eram encomendados por empresas e políticos. Havia profissionais contratados que se dedicavam unicamente a produzir memes para viralizarem nas redes sociais e, quem sabe, criar um nicho de mercado, tornar uma pauta mais popular ou eleger alguém. O alerta agora é para o papel desempenhado por influencers em redes sociais, no simples compartilhar de seu dia a dia (como se não fosse tudo montado), possuem o potencial de moldar comportamentos e formas de pensar. Afinal, a Juliette é tão gente boa que seria incapaz de disseminar notícias falsas e jogos de azar. Mas e se for a troco de uns bons dólares?

Para conferir:

ALÊ SANTOS: https://twitter.com/Savagefiction/status/1760980374065176730

CONGRESSO EM FOCO. MPF cobra R$ 5 milhões de Damares e da União por falsa denúncia sobre crimes sexuais: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/justica/mpf-cobra-r-5-milhoes-de-damares-e-da-uniao-por-falsa-denuncia-sobre-crimes-sexuais

ESTADÃO. Vídeo em que homem beija criança não foi gravado na Ilha do Marajó: https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/video-homem-beijando-crianca-ilha-marajo/

ESTADÃO. Vídeo de carro cheio de crianças foi gravado no Uzbequistão, e não na Ilha do Marajó: https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/video-carro-criancas-trafico-sexual-ilha-marajo-damares-alves-desinformacao/

FÓRUM. Silvio Almeida detalha ações do Governo Lula no arquipélago do Marajó. https://revistaforum.com.br/politica/2024/2/22/silvio-almeida-detalha-aes-do-governo-lula-no-arquipelago-do-marajo-154500.html

INSTITUTO AKACHI: https://akachi.org.br/

NOTA OBSERVATÓRIO DO MARAJÓ: https://twitter.com/obsdomarajo/status/1760709977113493801/photo/1

POSTAGEM de Rafa Kalimann: https://www.instagram.com/p/C3oHJy3rFmx/

PORTEL REVISTA. https://portelrevista.blogspot.com/2015/05/fraternidade-agape-da-cruz-e-o-drama-da.html

PROCESSO contra Henrique K. Laino: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tse/1791024035

UOL. AGU quer identificar ‘redes de desinformação’ envolvidas no caso Marajó: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/24/agu-quer-identificar-redes-de-desinformacao-envolvidas-no-caso-marajo.htm

VÍDEO com a apresentação completa de Aymeé Rocha: https://youtu.be/9knadbXLbD4

WIKIPEDIA. Téo Hayashi: https://pt.wikipedia.org/wiki/Te%C3%B3filo_Hayashi

ZION CHURCH: https://zionchurch.org.br/lideranca

Um comentário

  1. Excelente matéria, muito bem construída.
    Política atual é feita de afetos, a esquerda tá começando a entender isso.

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