Bom senhor, boa senhora

O cerceamento de raça e classe ainda são gritantes, pois foi  e é inadmissível  para a elite brasileira  que empregadas domésticas desfrutem da vida,  lazer, bens de consumo,  arte e cultura tal qual como eles.

Se há uma categoria dentro da nossa sociedade capaz de explicar a perpetuação e  das hierarquias e os diversos mitos deixados pela escravidão, é a categoria das trabalhadoras domésticas.

Sabe-se  que há uma ânsia da classe média, herdada da pequena burguesia, para conservar a necessidade de ter empregados domésticos. O que em  outros países é algo totalmente fora do padrão,  para essas classes no Brasil é quase como um marcador de status , tanto quanto ter um carro, ou viajar para o exterior. Sempre me incomodou esse hábito soberbo, num ambiente onde se delimita raça, classe e gênero.

Na minha perspectiva, trata-se de algo que vai muito além da simples necessidade de se pagar alguém para execução de um trabalho que não se quer ocupar, ou não se pode fazer. Primeiro, uma vez que outra mulher faz os afazeres domésticos (isso inclui tarefa de babás e cuidadoras), se torna impossível o debate da divisão social do trabalho doméstico entre os gêneros. Mais conflitante ainda é a anulação da categoria “mulher”, que é suprimida da relação patroa e empregada. A demarcação “mulher” se torna inexistente, uma vez que a categoria de classe as diferencia “(…) a negação da empregada como mulher, afirmando-se como tal apenas a patroa”.

 Uma mulher que visa sua independência a partir do pressuposto de que se pode pagar para outra mulher  fazer o labor reprodutivo, e com isso se coloca como uma boa patroa, ainda está fortificando mitos como os da “boa senhora”, que vê na trabalhadora doméstica uma criada a quem se pode fazer caridade.

A desigualdade entre a raça e a classe permeia essas relações desempenhadas no âmbito doméstico, Há um infinito de desigualdades nesse espaço que, para uns, é lar e, para outros, trabalho.

Há uma nébula sobre o bom convívio da área doméstica, uma ilusão de pacacidade, doçura, e respeito mútuo. É curiosa uma atividade pré-capitalista, inserida ainda no mundo capitalista, uma atividade e a uma categoria de trabalhadoras/res, que pouco ou nada eram considerados, uma vez que sua atividade desenvolvida em âmbito doméstico e privado não resulta em valia e nem mesmo, mais valia. E talvez por isso o escopo dessas relações ainda sejam permeadas pelas mesmas circunstâncias pelas quais eram acometidos os servos e escravos  domésticos.

Seria um exagero meu dizer tais constatações tão duras? Uma vez que era corriqueiro em nossa região ainda em meados da década de 1970, pessoas de bem, adotarem “negrinhas” e “negrinhos”, para dar-lhes um lar e ensinar-lhes através desses espaços tidos como ordeiros salvar-lhes a desordem das ruas. Um comportamento de extrema caridade e aspecto de salvação do negro (incluso os pardos), da sua pobreza selvagem. E assim o branco pode praticar sua caridade religiosa.

Uma vez na condição de patroa e empregada, espera-se total fidelidade e obediência daquele que não está ali a vender sua mão de obra, mas por caridade obteve uma ocupação na qual se recebe proteção e doação de um salário. Indo um pouco além nessa ideia insistente, entre patrões de todas as escalas  há a mentalidade de que o salário  que se paga é caridade e não uma troca. Isso é ultrajante   até mesmo para o mundo moderno capitalista

Quando o código penal da maioridade mudou de 14 para 16 anos, o serviço doméstico foi qualificado à época como um dos mais perigosos para menores de idade. Isso se dá é claro porque o trabalho é realizado no âmbito  privado, que é  de difícil acesso para monitoramento do poder público. Nele, o assédio – moral, psicológico, e sexual – é uma constante. Sobre isso não é preciso se alongar,  pois vocês sabem desses abusos e como eles ocorrem;  nossas mães, tias e avós, trabalhando em “casas de família” desde os 10,12 anos de idade, com cargas de trabalho exaustivos, sofrendo humilhações, agressões e casos de abusos de todos os gêneros  já nos falaram muito a esse respeito.

Na atualidade, há grandes conquistas para equiparar essa categoria aos demais trabalhadores protegidos pelas normas da CLT em 2015 com a Lei Complementar 150. A normalização do registro, assistência e segurança que visa as leis trabalhistas foi para essa categoria mais acentuada no início das décadas de ‘010 e até o presente ano vem se adequando.

A equiparação dessa categoria de trabalhadoras/res se fez  necessária para mudanças nas formas como se deram historicamente, uma vez que por parte dos patrões existia uma dificuldade de separar o privado do público , como se a trabalhadora doméstica  fosse um membro agregado da família e não uma trabalhadora que tem vida própria. Logo, podemos ainda na atualidade ver como casos chocantes, mas ainda comuns como o de Madalena, mulher que foi “adotada” ainda criança para ser salva da sua “desordem”para a “ordem” familiar de uma família branca, em troca da caridade a sua total subordinação.

Há uma insistente ideia que paira na sociedade de que a trabalhadora doméstica é como outrora o escravo doméstico, que tinha suprimidas sua individualidade e voz. Se antes isso ocorria por uma relação clara e objetiva de dono e escravo, hoje isso se dá na subjetividade, forçando laços sentimentais entre o bom senhor, boa senhora e a empregada, que deve viver fielmente para seus patrões e não carece de uma vida individual, uma vez que os patrões são sua família. Com esse entrelaçamento, só há  uma liberdade:  a fantasia do escravocrata como  um cristão caridoso. Para ele, qualquer reclamação ou cobrança que sejam do mundo do trabalho e pelas leis do trabalho nesse ambiente é vista como traição daqueles que lhe devem, supostamente, fidelidade.

Portanto, é visível a permanência de valores escravistas no nosso cotidiano, quando analisamos como se dá o trabalho e as relações dessa categoria de trabalhadoras/res. O cerceamento de raça e classe ainda são gritantes, pois foi  e é inadmissível  para a elite brasileira  que empregadas domésticas desfrutem da vida,  lazer, bens de consumo,  arte e cultura tal qual como eles. Pois uma vez que tenham acesso a essas tais coisas e experiências,  ultrapassam a linha invisível do que essas classes entendem como os seus direitos, ou melhor, seus privilégios.

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