No dia 25 de janeiro, estreou a vigésima primeira edição do Big Brother Brasil. Subintitulada como o Big dos Bigs, a edição chamou a atenção pela quantidade e qualidade dos e das participantes que protagonizariam o reality show: pobres e ricos, homens e mulheres, brancos e negros, heterossexuais, gays, lésbicas e bissexuais. Essas escolhas da parte de Boninho – diretor do programa – revelaram um quadro muito mais fiel da população brasileira do que em outras edições, sempre muito padronizadas quanto aos marcadores sociais de classe, gênero, sexualidade, e, principalmente, raça.
Devido a essa diversidade, as pautas trazidas pelos grupos subalternos foram não só colocadas, mas efetivamente discutidas durante a realização do programa até o presente momento. Discutiu-se, e muito, sobre o capitalismo, o racismo, o machismo, e a lgbtfobia, dentre outros temas. Até aí tudo bem! No entanto, as pautas foram conduzidas por meios que causaram estranheza por parte de muitos telespectadores, principalmente aqueles mais politizados. A forma sectária e, muitas vezes, autoritária com que as problematizações foram colocadas, gerou um incômodo tremendo. Afinal de contas, pautas urgentes de movimento sociais estavam sendo esvaziadas e agenciadas para esconder interesses individuais.
Esse incômodo se traduziu em uma série de perguntas que levaram, por sua vez, a um questionamento global sobre o que vem a ser a militância. Falar em prol de uma causa é sinônimo de militância? A abordagem militante é algo que se expõe ou se impõe? E, no limite, é possível militar dentro de um reality show?
Estas são algumas das perguntas que emergem aqui e acolá, sobretudo nas redes sociais, porém, nem sempre são acompanhadas por uma reflexão mais elaborada. Contribuir, ainda que minimamente, com esse debate é o que me proponho a fazer neste texto.
Via de regra, entende-se que falar de uma causa é o mesmo que militar. A princípio, nada poderia ser mais lógico! De fato,as pessoas exploradas e/ou oprimidas devem protagonizar a fala a respeito da experiência que elas próprias têm com a exploração e/ou opressão que sofrem. Por meio de suas falas, podem denunciar as estruturas que (re) produzem incessantemente seu silenciamento, discriminação e, até mesmo, extermínio. Ou seja, é inquestionável que o acesso a essa experiência é condição indispensável para o entendimento das dinâmicas de sujeição e resistência entre os grupos subalternos e os grupos dominantes.
No entanto, por mais importante que seja, isso não é necessariamente militância. Para ser considerado militância, é necessário que a causa esteja inserida e articulada com um trabalho que é permanente. Esse trabalho envolve diferentes dimensões, tais como um programa de ação, a organização permanente das bases, as lutas a curto e longo prazo, e, sobretudo, uma estratégia voltada para a transformação das estruturas sociais. Em suma, mais do que falar sobre a causa, é preciso se organizar com outras pessoas para agir em prol dessa causa. Caso isso não aconteça, corre-se de cair em “um estilo de vida excêntrico que passa a ser a própria atuação política, ”, como já ressaltou coletivo anarquista Luta Libertária em outros contextos.
O método de atuação também é uma marca que distingue a militância. Mais do que impor de modo unilateral a pauta, ignorando o contexto real em que as pessoas atuam e pensam, é preciso expor a pauta, trabalhando as contradições para que as pessoas possam chegar a uma mudança autêntica. Com isso, não estou sugerindo que as pessoas que (re) produzem formas de exploração e/ou opressão devam ser isentadas pelos comportamentos. Mas, sim, que é preciso criar um contexto de aprendizagem, no qual essas pessoas disponham de elementos necessários para compreender o quão seus comportamentos podem ser nocivos, e, a partir daí, se responsabilizar por eles.
Sob essa ótica parece oportuno lembrar, até a exaustão se for necessário, a paciência enquanto virtude transformadora. Assim, “como o cirurgião que sofre sorrindo os insultos do paciente”, escreveu Neno Vasco, o/a militante “ deve sacrificar um pouco do seu orgulho ao tato e a paciência que a luta exige”. Não é possível esperar que as pessoas se transformem do dia para a noite, se desfazendo de uma vida toda de preconceitos. No entanto, é possível apostar que o trabalho feito agora trará frutos que, amanhã, poderão ser colhidos por todos e todas.
Por fim, é preciso discutir também até que ponto é possível fazer militância em um reality show, um produto mercadológico que está mais preocupado em vender personagens do que necessariamente transformar a vida das pessoas. Nesse sentido, a pauta da representatividade acaba se convertendo em um instrumento de esvaziamento das reivindicações dos movimentos sociais. Aliás, é interessante observar como a Rede Globo tem se comportado a esse respeito. De um lado, mostra-se sensível às desigualdades de classe, raça, gênero e sexualidade, apoiando uma agenda progressista no campo político. De outro, revela-se engajada com reformas que estão na base da destruição dos já parcos direitos sociais, apoiando uma agenda claramente neoliberal no campo econômico.
Ora, a conta simplesmente não fecha, caro/a leitor/a. De nada adianta permitir que mulheres, negros e lgbts alcancem postos representativos na sociedade, se isso é acompanhado de um projeto econômico no qual as pessoas mais afetadas pelos cortes nas políticas de empregabilidade, previdência social, educação, saúde e moradia são justamente mulheres, negros e lgbts, em especial aqueles que pertencem à classe trabalhadora. Se no fantástico mundo do Big Brother Brasil, o racismo, machismo e lgbtfobia são apresentadas como coisas passíveis de superação dentro do capitalismo. Na realidade, sabemos que elas se estruturam e se reproduzem como condição do próprio capitalismo, sistema este que a Rede Globo tanto ama e defende.
Para finalizar, gostaria de evocar uma reflexão da cineasta negra Nuna Nunes. Na contramão de uma tendência crescente entre os grupos subalternos, para os quais militância virou sinônimo de ocupação de lugares já dados na organização social, ela é certeira ao afirmar que: “não temos que ocupar todos os lugares, porque alguns lugares nem deveriam existir”.