As festas do solstício de inverno

A seguir publicamos o texto “As festas do solstício de inverno”, de autoria de Neno Vasco. O referido texto foi publicado em 31 de dezembro de 1919, no periódico lisboeta A Batalha, pertencente a Confederação Geral do Trabalho de Portugal. Fortemente impactado com o exemplo do processo revolucionário na Rússia que irrompera dois anos antes, o anarquista luso-brasileiro acreditava que era chegada a hora em que as  festas do sol se aliariam às festas do trabalho. Essa aliança, comunicada pelo autor de modo altamente lírico, une os revolucionários de ontem aos revolucionários de hoje na busca de uma nova era de igualdade e liberdade para todos os seres. A pesquisa e edição do texto são de Thiago Lemos Silva.

Por Neno Vasco

Quando os dias começam a crescer, o homem, criador dos Deuses, adora e festeja o Sol, pai da vida e Deus supremo.

O astrônomo alexandrino Sosígenes, encarregado por Júlio César de corrigir o velho calendário de Numa, dois meses atrasado, queria que o ano começasse no dia do solstício de inverno. O ditador, porém, para não contrariar, demasiadamente, os hábitos romanos, ordenou que principiasse no dia da lua nova imediata – que nesse ano caia oito dias depois do solstício.

Deste modo, o solstício ficou em 25 de Dezembro – e esta foi a data da festa natalícia do Deus Sol, isto é do Hórus egípcio, do Mitra persa, do Febo greco-romano.

E depois, foi a festa natal do menino Jesus, o novo Deus Solar dos cristãos, posto nos braços da Virgem Maria, como o menino Hórus, no natal egípicio, figura ao colo da Virgem Ísis. Os cristãos tendo triunfado no mundo conhecido e civilizado, todo situado no hemisfério setentrional, apropriaram-se das festas do solstício de nascimento do Sol e deram nomes novos aos mitos antigos.

Hoje, o solstício está deslocado três ou quatro dias para trás. E os reformadores do calendário pedem que o ano parta do equinócio da primavera, 21 de março – o qual viria a ser um dia independente e isolado para um festa fixa, a Páscoa, a festa primaveril da natureza. Os anos bissextos teriam outro dia independente, no equinócio do outono, entre o mês VI e o VII. Cada dia do mês cairia, pois, sempre no mesmo dia da semana.

Todos os reformadores tiveram que respeitar as poderosas tradições do culto solar: Numa, Júlio César, o cristianismo primitivo, o papa Gregório XIII, a ciência moderna.

Para os antigos, o ano deveria começar com o renascimento do Sol, pai supremo dos homens e dos Deuses. No solstício de inverno, o Deus luminoso começa a encarar as trevas, o dia principia e vence a noite, depois duma luta trágica, em que ele parece sucumbir. Depois, há ainda as dificuldades e perigos da infância  até o equinócio da primavera, que marca e soleniza a juventude florida e sorridente do Deus, a sua ressureição completa e triunfal.

No solstício de verão, é a vida com todo o seu esplendor, é o pleno triunfo da luz, até no equinócio do outono, quando a idade começa a declinar e a ameaça das trevas e da morte surge de novo apavorante, – para que de novo o Deus vital renasça e se liberte. A treva, o frio, a morte – tudo se dissipa enfim como um pesadelo horrível, ante a radiosa claridade triunfante do astro divino, que desentorpece a terra gélida com os seus raios cada vez mais perpendiculares e faz brotar o germe e faz irromper a vida.

A democracia burguesa enfeitou as festas solares e dionisíacas de vestes novas, consagrando uma à “família” – que a indústria moderna destruiu, explorando a mulher e a criança, – dedicando outra, com sombrio sarcasmo, à “fraternidade universal” – que as rapinas e rivalidades imperialistas enterraram em sangue e lodo.

A humanidade nova, prestes a tomar a posse dos seus destinos, a sacudir o jugo dos parasitas e dos opressores não precisa de contrariar as belas festas do Sol. As festas do Sol se aliarão às festas do trabalho, como ele fecundante, como ele renovador e embelezador da vida, como ele amante da terra generosa, nossa mãe comum.

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