Argentina, 1985

Resenha do filme de Santiago Mitre convida o leitor a refletir sobre o que aconteceu no Brasil e na Argentina quando ditaduras acabaram.

Por Munís Pedro

Nunca más”. É a expressão utilizada como título do relatório produzido pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, ou CONADEP, da Argentina. O relatório fez parte de algumas das medidas políticas da justiça de transição executadas durante o mandato do primeiro presidente argentino eleito, Raúl Alfonsín (1983-89). Isso após os sete anos em que o país portenho foi governado por Juntas Militares ditatoriais e afogado na violência e no terrorismo de Estado.

É sobre parte desse processo histórico, mais especificamente, da justiça de transição, que o filme recém-lançado Argentina, 1985 tem seu roteiro construído. A narrativa conta a história do julgamento dos membros de três das quatro Juntas Militares que ditaram o poder entre os anos de 1976 e 1983. 

A partir daqui o texto contém spoilers de trechos, mas não do desfecho.

Manifestação na Avenida 9 de Julho um dia antes das eleições presidenciais que puseram fim à ditadura militar autodenominada “Processo de Reorganização Nacional”. Em dezembro de 1983, o presidente eleito, Alfonsín, criou a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) para apurar os crimes cometidos pelo regime.

Parecia inimaginável tal feito: em um julgamento civil, colocar generais e coronéis das Forças Armadas no banco dos réus. Ainda mais em um país de capitalismo periférico. Ainda mais dois anos desde o fim da ditadura. Mas aconteceu. Tanto aconteceu que virou filme.  

Uma característica importante da produção cinematográfica foi conservar os nomes verdadeiros dos personagens históricos. Interpretado por Ricardo Darín (o “coringa” do cinema argentino), o promotor Júlio César Strassera é o protagonista da trama. Até então vivendo uma vida pacata de burocrata estatal, ele é convocado à responsabilidade de acusação dos réus. A partir deste momento, precisa lidar com algumas situações complicadas e delicadas: um prazo muito curto para reunir provas suficientemente consistentes; a recusa de advogados veteranos em ajudá-lo no processo; a pressão dos militares, que ainda gozavam de poder econômico e prestígio social; e claro, a expectativa de justiça pela sociedade argentina. Nessas ocasiões, como sabemos, é grande a chance de tudo acabar em “pizza”.

A ajuda para tentar resolver parte destas questões viria de onde menos se esperava. De um advogado inexperiente, herdeiro de uma família de militares, Luis Moreno Ocampo (interpretado por Peter Lanzani), que é designado como promotor-adjunto. Ocampo passa a mobilizar uma rede de jovens estudantes e estagiários a fim de coletar os testemunhos das vítimas e montar uma peça sólida de acusação.

Embora o filme seja obviamente baseado na história recente da Argentina, vou deixar para você, leitor(a), conferir o restante do desenrolar da trama. 

Além de suscitar uma reflexão sobre a consciência política e histórica importante, considero que, assim com outros filmes argentinos de destaque, esta produção tem valor artístico considerável. O diretor Santiago Mitre, mais conhecido por seus trabalhos como roteirista, conseguiu conduzir a obra sem incorrer em caricaturas, maniqueísmos ou dramalhões (o que é comum em filmes desta temática). Apesar de ser um assunto extremamente delicado e, em alguma medida, traumático para o povo argentino, há humor e ironia no roteiro.

Ademais, o filme lança luz sobre a história do Brasil. Para quem se interessa por história, é inevitável não estabelecer um paralelo com a história do nosso país. Sobre o que aconteceu por aqui quando a Ditadura Militar acabou. Afinal, no mesmo ano em que os argentinos julgavam gente como o general Jorge Rafael Videla, um dos líderes de um regime que torturou, fez sumir, criou campos de concentração, roubou bebês e assassinou milhares de pessoas (a estimativa é de que 30 mil foram mortas pela ditadura argentina), no Brasil, os militares faziam uma transição “lenta, gradual e segura”, como gostariam, entregando o cargo de presidente a um civil que era membro da ARENA, o partido do Regime.

Diferentemente do que houve em nossos vizinhos latino-americanos, como Argentina e Chile, aqui não teve julgamento algum. Mesmo o mais cruel dos torturadores, que colocava ratos nas genitálias das mulheres, não teve que responder por seus crimes.1N. E.: O nome do criminoso é Carlos Alberto Brilhante Ustra, figura homenageada várias vezes por Jair Bolsonaro. A mais famosa das homenagens foi durante o voto do deputado a favor do golpe de 2016. Mesmo quem assassinou jornalista e simulou o suicídio da vítima não teve que sentar no banco dos réus.2N.E.: Referência à tortura e ao assassinato de Vladmir Herzog. Mesmo quem torturou crianças passou incólume. Pelo contrário, foram agraciados com gordas aposentadorias pagas pelo povo brasileiro.

A Lei da Anistia, sancionada pelo presidente-ditador João Batista Figueiredo, em 1979, sedimentada na ideia de perdão amplo, geral e irrestrito, mais favoreceu os agentes da ditadura que praticaram crimes de tortura, desaparecimento e assassinato do que serviu à sociedade como um todo. Para além de uma justiça de transição capenga, que não conseguiu estancar as feridas, não tivemos no Brasil uma efetiva política de memória. Uma das tentativas de lidar com esse passado traumático sem abafá-lo, leia-se a Comissão Nacional da Verdade, gerou uma forte reação negativa de militares e apoiadores.

Não me parece por acaso que, passadas mais de três décadas desde o fim do regime autocrático, ainda nos dias atuais haja seguimentos significativos da sociedade brasileira que neguem ou relativizem a Ditadura Militar, bem como exista quem defenda sua volta completa e ou de seus mecanismos antidemocráticos, como o Ato Institucional número 5.3Em dezembro de 1968, a ditadura decretou o Ato Institucional nº 5, o AI-5, concentrando nas mãos do governo poderes quase absolutos por tempo indeterminado. A partir de então, a ditadura pôde dissolver a Câmara de Deputados e o Senado Federal, cassar mandatos parlamentares em todos os níveis, demitir, aposentar e cassar os direitos políticos de qualquer cidadão, suspender o habeas corpus, decretar o estado de sítio e confiscar bens. Além disso, o Poder Judiciário ficava expressamente proibido de apreciar a legalidade de decisões baseadas no Ato”. (Daniel Aarão e Denise Rollemberg). Parte disso tem a ver com um imaginário social que, no limite, alça ditadores como salvadores da pátria contra um suposto inimigo comunista. Imaginário este reforçado pelas ausências de uma justiça de transição e de uma política de memória efetivamente democrática. Por aqui, precisamos caminhar bastante nesse sentido.

Que a história retratada no filme Argentina, 1985 nos faça refletir e nos inspirar politicamente como latino-americanos que somos – un pueblo sin piernas, pero que camina4Referência à canção Latinoamérica, do grupo porto-riquenho Calle 13.– a fim de que continuemos a lutar para que, assim como eles, um dia possamos dizer “NUNCA MAIS”. DITADURA NUNCA MAIS.


Ficha técnica

Título: Argentina, 1985

Ano de produção: 2022

Direção: Santiago Mitre 

Estreia: 29 de setembro de 2022 (Argentina) 

Duração: 140 minutos 

Gênero: Suspense 

País de Origem: Argentina

Alguns membros do elenco: Ricardo Darín, Peter Lanzani, Claudio Dá Passano, Brian Sichel, Norman Briski

Distribuição: Amazon Prime Video 


Munís Pedro, o autor da presente resenha, mantém no Youtube o canal Diacrônico, que traz videoaulas, resenhas, entrevistas e bate-papos sobre temas, autores e obras relacionadas às Ciências Humanas, Filosofia e Artes.

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