Anarquismo e ação direta: persuasão e violência na modernidade

A seguir publicamos um prefácio escrito por Thiago Lemos Silva para o livro Anarquismo e ação direta: persuasão e violência na modernidade, de autoria de Adonile Ancelmo Guimarães, que acaba de ser lançado. Quem desejar adquirir o livro, pode obtê-lo no site da Editora Dialética.

Por Thiago Lemos Silva 

No dia 23 de julho de 2021, os carros que tentavam trafegar pela Rua Caetés, em Belo Horizonte, foram impedidos por uma pilha de pneus que se consumia em chamas desde o início da manhã. Por detrás daquela espessa fumaça, era possível entrever um pequeno grupo de pessoas agitando bandeiras vermelhas e pretas, gritando palavras de ordem contra o fascismo e erguendo uma grande faixa com os dizeres: Frente Antifa. Tratava-se de uma ação direta, recurso utilizado pelos manifestantes para propagandear o ato que ocorreria no dia seguinte contra o (ainda) presidente Bolsonaro, na Praça da Liberdade, a partir das 13:30. 

A ação direta, entretanto, não é invenção de antifascistas belo-horizontinos, e, muito menos, tem suas manifestações circunscritas ao século XXI. Enquanto estratégia política, podemos encontrá-la ao largo de diversos registros espaciais e temporais da modernidade. A vimos no século XIX, em 1871, quando homens e mulheres da classe proletária francesa eclodiram em revolta, expulsaram o governo, e instituíram a Comuna de Paris por cerca de dois meses. Ela esteve presente no gesto individual de Alexander Berkman, quando, em 1892, desferiu vários tiros contra Henry Clay Frick, gerente fabril reconhecido pela sua violência contra a classe trabalhadora estadunidense.

Já adentrando o século XX, é possível percebê-la nas manifestações de boicote estampadas no periódico paulistano La Lotta Proletaria, em 1909, conclamando a classe trabalhadora para não consumir os produtos da Fábrica Matarazzo. Do mesmo modo, notamos sua presença no gesto de Lucía Sánchez Saornil, Mercedes Comaposada e Amparo Poch y Gascón na criação da Revista Mujeres Libres, nos meses que antecedem a guerra civil e a revolução social espanhola, em 1936. 

Violenta ou pacífica; revolucionária ou reformista; individual ou coletiva; econômica ou cultural, a ação direta é uma estratégia de luta que se faz presente no cenário social colocando, sempre, em primeiro plano a autonomia dos sujeitos. Sob tal ótica, o fazer político se baseia na ideia de que a emancipação só faz sentido se for uma autoemancipação. Ou seja, os grupos subalternos são capazes de destruir os grilhões que os oprimem e/ou exploram, apenas na medida em que se implicam, participam e, sobretudo, agem diretamente para que isso se converta em realidade concreta. 

É justamente deste instigante tema que nos fala Adonile Ancelmo Guimarães em seu livro. Resultado de dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFU, no ano de 2009, esta obra se propõe a interrogar a genealogia do conceito de ação direta, bem como sua relação incontornável com o anarquismo. Proposta que o autor alcança com primor e êxito, tanto pela quantidade de fontes mobilizadas, quanto pela qualidade das análises apresentadas ao longo do seu texto. 

Guimarães observa que mesmo a ação direta não sendo uma produção original e, muito menos, exclusiva de anarquistas, é impossível ignorar o fato de que a ação direta encontra no anarquismo o seu melhor representante – daí a associação quase que automática no imaginário político. Tal tese se sustenta à luz de uma leitura minuciosa de Proudhon, Bakunin, Malatesta, Pelloutier e Pouget, que, de diferentes maneiras, enunciaram a ideia de ação direta, mesmo que em alguns casos a palavra ação direta sequer existisse ainda. É com base nesse ponto de partida que o autor chega à conclusão de que a ação direta é um elemento constitutivo do campo político na visão anarquista. 

Essa visão se coloca nos antípodas das teorias da soberania, prolongadas em maior ou menor medida pelo liberalismo e o marxismo, na medida em que contesta com veemência a identificação e redução da política com e ao Estado. Para os anarquistas, o fazer político se dava por fora e contra o Estado, se valendo de dois dispositivos diferentes, porém entrelaçados: a persuasão, voltada para convencer a classe trabalhadora a lutar pelo socialismo, e a violência, voltada contra a burguesia para destruir o capitalismo. Nesse sentido, o autor entende a ação direta enquanto política transformada em ética, ou melhor, enquanto ética política, que possibilita às pessoas subalternas (re)criarem regras sociais de convivência, ao mesmo tempo em que (re)inventam suas vidas. 

Para fundamentar sua tese, Guimarães dialoga com autorias oriundas de diferentes horizontes teóricos e metodológicos. De maneira crítica e criativa, ele combina as contribuições de Foucault, Castoriadis, Deleuze, Guattari, Clastres, Colombo, Arendt, dentre outras, para mostrar os limites sobre os quais operam tradicionalmente o campo do político. Graças a esses aportes, o autor aponta para a modernidade capitalista como o momento histórico em que se dá a separação entre instâncias de decisão política e o restante da sociedade, permitindo que o Estado burguês se converta em um paradigma autocentrado e autoexplicativo. 

Pouco mais de dez anos depois da sua apresentação original, Anarquismo e ação direta como estratégia ético-política (persuasão e violência na modernidade) chega ao seu público leitor em um momento político conturbado, porém, não menos interessante para evidenciar sua atualidade. Um dos aspectos mais sobressalentes deste livro é justamente desnudar as múltiplas estratégias que visam, em maior ou menor medida, pacificar a política sob o signo do comando estatal. Distanciando-se das teorias da soberania, Guimarães lança uma crítica certeira às visões que veem a política como uma atividade humana que se dá entre iguais, por meio do diálogo civilizado, da representação parlamentar e da concessão de direitos por parte do Estado. Pelo contrário, a política é uma atividade conflituosa entre desiguais, marcada pela imposição da dominação, dos múltiplos dispositivos de violência e pela manipulação ideológica. 

Se levarmos a sério a atual conjuntura política que o Brasil atravessa, é forçoso reconhecer que o exercício do poder e da dominação capitalista já não parece mais necessitar do doce invólucro, que, até pouco tempo, envolvia os conflitos sociais sob a máscara da pretensa igualdade formal do Estado de direito. Desde a ascensão da direita, tem ficado cada vez mais nu e cru o caráter violento da política, que polariza sem constrangimento algum a existência de uma dissimetria no corpo social. De um lado, um nós (burgueses, homens, brancos, heterossexuais, cisgêneros…) a ser defendido, de outro, um eles (trabalhadores, mulheres, negros, indígenas, LGBTs) a ser atacado, quando não eliminado.

Enquanto isso, a esquerda tem feito justamente o caminho inverso, apostando na reativação de um discurso pacificador da política, que ignora, voluntariamente ou não, o lugar das violências estruturais que foram e continuam sendo constitutivas de nosso capitalismo periférico, tais como o colonialismo, o racismo, o machismo, a Lgbtfobia etc. Não por acaso, evocam com tanta frequência a necessidade, ou melhor, a urgência de unir o Brasil novamente sob um novo pacto político, que traga de volta o trabalho, o estudo, a comida e, sobretudo, a paz para a nação. 

Sob o efeito das instigantes provocações de Guimarães tecidas em seu livro, gostaria de finalizar este prefácio chamando a atenção do público leitor para algumas questões, que, por ingenuidade ou arrogância, largos estratos da esquerda têm se furtado de formular: ao invés de ser neutralizado, esse clima de polarização não deveria ser radicalizado a ponto de ser esgarçado por completo? Não estaria na hora de recorrer à ação direta como forma de estratégia de luta, não obviamente para transpor, mas, para aprofundar ainda mais o abismo que separa dominantes e dominados? Em suma, não teriam chegado a vez e a hora de ouvir o que os e as anarquistas têm a nos contar sobre sua visão ético-política de mundo?

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