Abstenções do ENEM: como isto impacta a realidade social de milhões de jovens

Recorde de abstenções significa um número de jovens que possivelmente perderam a oportunidade de entrar na universidade e mudar suas realidades

Recentemente, saiu o gabarito oficial das questões do ENEM – o exame nacional do ensino médio, realizado nos dias 17 e 24 de janeiro. E um pequeno detalhe não passou despercebido. Na prova de inglês, uma questão trazia um trecho do romance ‘Americanah’, da escritora feminista nigeriana Chimamanda Nngozi Adichie. O texto é sobre uma mulher negra, que, ao ir ao cabeleireiro, recusa-se a alisar seu cabelo por gostar dele “como Deus fez”.

Até aqui tudo bem, se não fosse pela resposta oficial divulgada pelo INEP. A pergunta era “quais argumentos sustentam o posicionamento da personagem ao reforçar o desejo de manter o seu cabelo natural?”, a maioria marcou que o argumento representava “resistência”, porém, a resposta correta no gabarito oficial dizia se tratar de “imaturidade”. Não tardou para o ENEM ser taxado de racista – e com razão.

Mera coincidência? Não. Apesar da retratação do INEP, não é de hoje que o governo expressa sua ignorância em pequenos escorregões. Se não fosse pela vigilância da sociedade e da imprensa, eles seriam encarados com normalidade. Aliás, o “erro”, não é muito diferente do que pensam os protagonistas deste governo, como já deixaram bem claro em suas falas.

Mas este não é o ponto central desta discussão. Um outro detalhe que não passou batido foram os recordes de abstenções, tanto na versão impressa quanto na versão digital do ENEM: cerca de 55,3% e 71,3%, respectivamente. Mesmo sendo do conhecimento de todos que o ENEM é o principal veículo de ingresso nas universidades públicas, isto não foi suficiente para evitar a ausência massiva.

A edição, que ocorreu sob protestos de profissionais e estudantes que se manifestaram contra a realização da prova, coroou um ano trágico para a vida escolar de muitos brasileiros. O motivo: alunos de escolas públicas não tiveram acesso a ferramentas que garantissem um ensino de qualidade tal como aconteceu em escolas da rede particular. Com as aulas suspensas, muitos jovens tiveram que estudar por conta própria, sem a supervisão de um professor. O governo não pôde oferecer mais que videoaulas e apostilas gratuitas.

Em tempos normais, a prova do ENEM já é considerada bastante exigente, visto que, na média geral de notas, os estudantes conseguem atingir pouco mais da metade dos 1000 pontos exigidos em cada disciplina. Na edição passada (2019), a média geral de notas ficou em 523,1 na prova de Matemática; 508 na prova de Ciências Humanas; 477,8 em Ciências da Natureza e 520 na prova de Linguagens – os dados são do próprio INEP, órgão vinculado ao Ministério da Educação, responsável por organizar a prova.

É devido à dificuldade da prova que muitos recorrem a oportunidades complementares de ensino ao que já é ofertado pelas escolas, os famigerados cursinhos pré-vestibulares. Não preciso dizer que essa é uma oportunidade para poucos. Entretanto, devido à pandemia e ao fechamento de estabelecimentos, nem isso foi possível. Aqui em Patos de Minas, o cursinho gratuito oferecido pelo campus da UFU – Universidade Federal de Uberlândia, também não funcionou.

Arrisco dizer que o recorde de abstenções não seja devido ao medo do vírus, mas sim em decorrência da dificuldade de aprender à distância e se preparar para o exame final. Qual seria o sentido de fazer uma prova extremamente exigente sem ter aprendido o mínimo? É claro que esta realidade se aplica apenas a estudantes de escola pública e de baixa renda – a maioria dos inscritos no ENEM. O atual ministro da educação, assecla do Bolsonaro, menos boçal que o anterior ocupante do cargo, Abraham Weintraub, demonstrou insensibilidade na questão.

O fato é que o estrago já está feito. Esse recorde de abstenções significa um número de jovens que possivelmente perderam a oportunidade de entrar na universidade e mudar suas realidades. Sim, em um país que é preciso matar um leão por dia para sobreviver, cada chance perdida conta muito. Muitas famílias pobres depositam em seus filhos a única esperança de ascenderem socialmente.

Além disso, o cenário é pior quando olhamos a conjuntura: desemprego crescente que afeta cerca de 14% da população economicamente ativa. Ou seja, se entrar na faculdade já era uma tarefa difícil, arrumar um emprego é mais impossível ainda.  Essa fila de jovens que perderam a oportunidade de cursar um ensino superior, provavelmente vão engrossar as fileiras do trabalho precarizado ou formarão parte do grupo dos ‘nem-nem’, jovens que não estudam e não trabalham por falta de opção.

Ainda é cedo para dizer como tudo isto impactará na vida de jovens do Brasil inteiro. A pandemia e o isolamento social, de maneira geral, deixaram sequelas de todo tipo: luto, desemprego, fome, depressão, entre muitas outras. Mas existem sequelas que só poderão ser medidas a longo prazo e o efeito da pandemia na formação de jovens do Brasil inteiro é uma delas. Entretanto, o mais importante é iniciar este debate e, até lá, espero já termos se livrado do genocida e de sua família, que momentaneamente ocupam o poder. 

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