A violência nas escolas e o desafio para uma educação popular e libertadora

Análise crítica das questões estruturais relacionadas à violência nos ambientes escolares

Por Kauan Willian

O ataque de um aluno na escola E.E. Thomazia Montoro, na Vila Sônia, na capital de São Paulo, que levou ao falecimento de uma professora, no dia 27 de março, suscitou vários debates e questões sobre a violência nas escolas em todo o Brasil. Esse evento foi seguido por outros ataques ou tentativas que inflamaram mais ainda tais discussões e discursos políticos ou midiáticos. As principais mídias tratam a questão da violência nas escolas de forma rasa e punitivista. Vários noticiários televisivos que vivem do espetáculo da violência e do crime, por exemplo, resumiram-se ao debate da diminuição da maioridade penal. Por sua vez, o governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas, propôs, em suas redes sociais, a contratação de “policiais da reserva para que eles fiquem de forma permanente nas escolas e ajudem a tornar o ambiente mais seguro.”

Não precisamos dizer que tais medidas policialescas não tratam a questão em sua raiz. Se medidas de maior policiamento fossem eficazes, as ocupações policiais nas favelas e comunidades do Rio de Janeiro, que já completam mais de 10 anos, teriam cessado a violência nesses espaços. Ao contrário, trouxeram mais violência com o abuso policial nesses casos. Além disso, se essas medidas fossem eficazes, São Paulo, um dos estados com mais policiais do Brasil, teria evitado a escalada de violência urbana nos últimos anos.

Tais discursos, portanto, não pretendem resolver a questão e, na verdade, tentam esconder os verdadeiros motivos e, consequentemente, as verdadeiras soluções para cessar a violência nas escolas. Além disso, defendemos aqui que não se trata apenas de violência nas unidades escolares, já que elas não estão isoladas da sociedade. Outrossim, também não se trata de resolver apenas a violência, mas de questões estruturais (políticas, econômicas e sociais) que envolvem diversos problemas e questões, como a fome, a falta de empregos e rendas, a falta de acesso à cultura etc.

Focar na “violência”, com medidas policialescas, além de esconder outras questões, blinda a discussão sobre a necessidade de políticas públicas, especialmente para a Educação. Do mesmo modo, esconde como podemos transformar a escola pública, que é parte importante para a transformação da sociedade presente. Nesse texto, abordarei algumas questões que envolvem a situação das escolas e de como podemos transformar o ambiente escolar num ambiente popular e realmente libertador. Farei isso não só a partir da minha experiência profissional como professor em escola pública, mas também nas discussões que educadores e pesquisadores da educação estão travando nos últimos anos.

Pensar a questão estrutural das Escolas: a educação e o neoliberalismo

Educadores e pesquisadores da educação brasileira tendem a ressaltar a escalada de um projeto político de desmonte da Educação. As escolas públicas no país não são “ruins” ou “precárias” por essência, mas existe uma proposital ação política para isso. 

Por qual razão haveria interesse em precarizar um serviço público essencial para a população? Essa ação política tem interesses econômicos. Para entender isso, precisamos saber da existência dos chamados “empresários da educação”, ou seja, organizações e institutos que gravitam em torno da  educação querendo transformar essa esfera em lucro. Para eles, além de estarem envolvidos nas escolas e universidades privadas, para ganharem mais lucros, é preciso, evidentemente, deixar essa escola pública a pior possível. Só é possível convencer a população que é preciso comprar esse serviço se ele não é oferecido mais com qualidade pelo Estado. Mais do que isso, essas instituições também querem destruir a Escola Pública e tomá-la, lucrando com o dinheiro público. Nesse sentido, para tais empresários, estar em sintonia com políticos que representam seus interesses para ajudar a criar medidas que executem essa precarização é necessário. Provando que tal escola está ruim, eles oferecem “ajuda” para melhorá-la. Não nos enganemos sobre esse projeto nefasto.

Ocorre, na verdade, uma precarização forçada: a falta de materiais, a falta de comida, a falta de professores (com salários baixos e péssimas condições de trabalho ninguém quer assumir essa profissão), as salas de aulas lotadas e outras questões criam um ambiente impossível para a construção de uma educação baseada na cidadania do aluno, ou mesmo para a apreensão do currículo e coisas mais básicas. Do mesmo modo, é criado um ambiente desinteressante, hostil, violento e tóxico, que não faz sentido para o estudante.

Portanto, as condições estruturais por trás de parte da violência e da incapacidade de curá-la estão relacionadas ao neoliberalismo, ou seja, a ideologia e a ação política que pretende privatizar os bens públicos.

A Reforma do Ensino Médio

A Reforma do Ensino Médio, do governo de Michel Temer, prometia “modernizar” a escola, mudando o foco do currículo e da grade horária do Ensino Médio. O enfoque se deu na “escolha” dos alunos diante das disciplinas eletivas e matérias mais “técnicas”, a partir dos “itinerários formativos”. Para isso, houve a retirada de grande parte da carga horária de disciplinas básicas, como as Ciências da Natureza, Linguagens e Matemática, que chegariam apenas a 60% do horário dos alunos, incluindo as Ciências Sociais e Humanas, que discutem tais questões. 

Essa reforma está atrelada aos ataques aos direitos dos trabalhadores, como as reformas da previdência e “trabalhista”. A precarização do trabalho e consequentemente da vida dos trabalhadores está inscrita na ordem de um sistema que quer, cada vez mais, a partir do interesse de aumentar o lucro, explorar a mão de obra – o capitalismo. Essa lógica também está atrelada à Reforma do Ensino Médio, almejando formar pessoas que servirão apenas como um exército industrial de reserva, composto por trabalhadores destinados aos trabalhos precários. 

A precarização das escolas está relacionada a esses interesses. E a mudança curricular da Reforma do Ensino Médio é somada à questão estrutural das escolas, piorando a realidade dos alunos. Não há disciplinas eletivas nas escolas, pois não há professores; não há estrutura para ensinar essas “tecnologias”, pois há até falta de água em algumas unidades escolares. Portanto, saiu de cena a grade antiga para ser substituída por um “vácuo”, que na verdade significa a hegemonia desse projeto político e social perverso que é contra a população. Essa “deforma”, como podemos chamar, pode tirar ainda mais o sentido da escola para os estudantes e, portanto, tem ligação com a conjuntura que estamos analisando.

O bolsonarismo, a cultura política de extrema-direita e a pandemia

O bolsonarismo não pode ser ligado apenas à figura de Bolsonaro e derrotá-lo nas urnas não significou a derrota de seu projeto político. Podemos entender a cultura política do bolsonarismo como ligada intimamente ao extremismo de uma direita neoliberal, abandonando discursos típicos de certos setores de direita brasileira, e que conseguiram usar o conservadorismo e o reacionarismo permeado na população brasileira a partir do antipetismo e das pautas anticorrupção. A nostalgia de uma Ditadura, do militarismo e da “ordem” é acompanhada por um discurso “anti-ideologia”, no qual os direitos das minorias são um ataque ao “cidadão de bem”, que pode fazer de tudo para essa volta imaginada. Para isso, a missão é o armamento massivo desses “cidadãos”, o uso da força, o silenciamento das minorias e pautas de esquerda e a pregação da vingança contra todos que ameaçavam essa ordem, inclusive pessoas pobres ou periféricas que, nessa visão, são apenas pessoas que “não querem trabalhar”.

No fundo, tudo isso esconde, evidentemente, uma tentativa de contrarrevolução para defender os interesses do capital ou de uma ordem política ou religiosa conservadora, que pode acontecer, como no caso fascista italiano clássico, antes mesmo da própria revolução propriamente dita, mas de sua ameaça, seja por tentativas insurrecionais ou pela simples politização de parte maior da sociedade.

O ultraliberalismo de Paulo Guedes fez parte da população ver que deveria voltar para o social-liberalismo petista, o que explica o resultado das últimas eleições. Mas o resultado apertado, as ocupações de ruas por setores de extrema direita, a invasão em Brasília e outros eventos mostravam que essa força política e o tensionamento não acabaram. Mais do que isso, a linguagem da violência, da vingança dos setores que se sentem ameaçados pelas minorias, que veem escolas como “doutrinadoras” e que desejam uma Ditadura, entrou e se disseminou no tecido social. Isso inclui a internet, por meio da qual diversas plataformas encantam pessoas de várias idades e os fóruns de jogos estão recheados de discursos de direita que unem os discursos ultraliberais com um reacionarismo violento e supremacista branco, típico dos E.U.A.

A pandemia, a partir do isolamento social necessário e defendido pela esquerda, de forma paradoxal, potencializou a atomização do indivíduo, anunciada por Zygmunt Bauman1Ver BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. São Paulo: Zahar, 2001., a disputa pelo “sucesso a partir das próprias mãos”, o aumento do uso das tecnologias de informação e de comunicação – e, portanto, emperrou processos de construções coletivas e movimentos de massas nas ruas, fórmula necessária para o avanço de uma esquerda radical, anticapitalista e antifascista, que podem derrotar a extrema-direita. O recuo dos organismos sindicais e movimentos sociais ligados ao social-liberalismo, segurando uma política mais radical nas ruas, devido às eleições, também contribuiu para o não desenvolvimento de uma cultura política verdadeiramente transformadora. É a partir daí que temos uma conjuntura ideal para a extrema direita florescer, das ruas para o ataque direto, de forma terrorista, contra as instituições públicas.

A Escola tomada pela sociedade e pelos interesses transformadores de classe

As verdadeiras forças transformadoras da Escola Pública incluem as correntes e grupos radicais que disputam os sindicatos dos profissionais da educação visando a derrubada do corporativismo, a comunidade escolar politizada, movimentos sociais que pautam a educação de forma transformadora e outros que pensam que a escola não é só um ambiente para aprender conteúdos mas essencial na transformação da sociedade. Para a transformação desejada, a classe trabalhadora e os oprimidos, ameaçados por essa onda reacionária pelas políticas ultraliberais ligadas ao capitalismo tardio, devem tomar os espaços educacionais, transformá-los, servindo aos seus interesses de emancipação, autonomia e debate científico e teórico, mas desatrelado dos interesses de vendê-la.

A ideologia neoliberal transformou tudo em produto e trata a escola como um serviço de consumo, no qual o aluno, muitas vezes, é descartado na escola para ser cuidado. A Escola não deve ser um depósito de crianças. A comunidade escolar deve acompanhar o andamento do educando e ocupar as instâncias democráticas, como os Conselhos de Escola.

É evidente que isso é impossível num mundo no qual as horas de trabalho aumentam e as famílias são impedidas de acompanhar a realidade das escolas. É por isso  mesmo  que a luta dos educadores e educandos deve “ultrapassar os muros da escola”, como anunciou Paulo Freire, se atrelando aos debates de classe contrários ao capitalismo e essa degradação2FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2016.. Do mesmo modo, problemas que afligem essas comunidades e são instrumentalizados por setores reacionários, como a misoginia, o racismo, as lgbtqiap+fobias, o capacitismo e outras questões, devem ser fortemente discutidas, tanto dentro como fora da Escola. 

Além disso, existem movimentos fortes educacionais em vários estados, que edificam projetos, pautas, atos e greves, que devem ser apoiados pela comunidade escolar e pelo conjunto da sociedade. Os educadores, por sua vez, devem criar pontes para essa construção, transformando suas instâncias democráticas, não apenas nas escolas, mas também em órgãos sindicais e movimentos sociais, agregando o conjunto da população. Nossa luta não pode ser apenas por nossos salários, mas deve ser feita rompendo o corporativismo e mostrando que a população, ao defender esses e outros interesses nossos, também estão defendendo a Escola Pública e que os educadores podem contribuir com as pautas da comunidade e da população em geral.

É uma falsa questão escolher o lado entre a privatização e a estatização dos serviços públicos. As verdadeiras forças educacionais transformadoras e a esquerda radical sabem que, dentro do Estado, que representa os interesses da burguesia, a estatização não é um fim, embora seja uma pauta mínima diante da ameaça da privatização. Mais do que isso, o fim verdadeiro é a escola tomada pelos movimentos sociais e pela comunidade escolar, por órgãos independentes da classe, pelos educadores e educandos que almejam a transformação da sociedade, autogerindo e dividindo seus meios de produção e consequentemente seus meios de educação e comunicação. 

Só juntos, buscando nossos verdadeiros interesses transformadores, e não de volta a um simples passado que nunca existiu, é que podemos defender e transformar a Escola Pública, incluindo nossas crianças e nossos adolescentes com base na esperança e visando um futuro melhor. Só faremos isso com as próprias mãos e, ao mesmo tempo, de forma coletiva, e não pedindo para aqueles que ajudaram e criaram a destruição da Educação Pública, como o Estado, que é policialesco e ligado ao capital.

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