Este texto é o primeiro de uma série de três, que foi publicado por Lucía Sánchez Saornil no diário confederal CNT, de Madrid, em 23 de agosto de 1934, sob o pseudônimo de La Compañera X. Nele, a anarquista inicia a discussão sobre o papel da mulher no processo revolucionário, detalhando qual deve ser a posição dos homens que realmente desejam colaborar nele. A tradução do espanhol para o português é de Thiago Lemos e foi originalmente publicada no site da Redemoinho traduções.
Por Lucía Sánchez Saornil
Vamos assinalar uma deficiência de tática – não queremos chamar de erro porque não acreditamos que seja premeditado – no movimento anarcossindicalista de nosso país: a pouca atenção que se deu à mulher até o presente momento.
Talvez, de um modo teórico se tenha ocupado dela, mas o certo é que, até agora, não se iniciou do ponto de vista prático um movimento de atração para nossos meios dessa parte – a mais doída e sofrida – da humanidade, que durante séculos e séculos não teve uma intervenção definida na criação da vida ou, dito de outro modo, na orientação das atividades humanas.
Dizemos que não foi uma intervenção definida, porque não esquecemos, por infelicidade, de certas influências obscuras que sempre nos chegaram através da exaltada sexualidade masculina – as Cleópatras e as Pompadours anônimas são incontáveis.
Nosso movimento, como dizíamos, descuidou desse aspecto da propaganda revolucionária, sem pensar, talvez, que no pecado levavam a penitência. Os camaradas anarquistas não pararam para refletir que as conquistas efetivadas na rua eram neutralizadas depois no próprio lar; que, enquanto vitimados por um absurdo preconceito burguês, seguirem olhando desdenhosamente a importância social da mulher, seu trabalho se assemelharia muito à Teia de Penélope: seria um eterno tecer e destecer.
Não souberam tomar o exemplo mais sagaz e mais “cuco” de todos os propagandistas: a Igreja. Por meio da conquista da mulher, a Igreja se fez dona do mundo. Os homens sugaram a religião no leite materno, e a humanidade viveu muitos séculos sob a férula dos sacerdotes.
Este fato levou alguns a jogar sobre as mulheres culpas que não lhes eram imputáveis; muito se falou de suas influências perniciosas, mas não se teve o cuidado de estudar o conteúdo do assunto; não se aperceberam suficientemente do fato de que a mulher atuava, simplesmente, como espelho, devolvendo e multiplicando as imagens nela refletida, que a projeção vinha dos homens e aos homens era devolvida.
Não é nosso propósito historiar aqui as bases sobre as quais se fundou uma suposta inferioridade feminina; mas somos obrigados a aceitar o fato de que sua vassalagem secular a esses ditames se deve ao egoísmo masculino, que, por cálculo ou por preguiça, manteve a mulher durante séculos em um estado intelectual lamentável, a quem cabem todas as culpas.
Mas voltemos ao nosso tema. É triste comprovar que enquanto muitos camaradas posam de revolucionários na rua, na oficina, no sindicato, possuem um lar estruturado em conformidade às mais puras normas feudais, onde atuam como “ditadorizinhos”, esquecendo por completo de orientar a companheira em um sentido ideológico e humano. Deixando-a abandonada às influências ancestrais, atuando por sua vez sobre os filhos, eles frustram grande parte do trabalho realizado na rua.
Acreditamos que é chegado o momento de iniciar uma tarefa tenaz de educação feminina em sentido revolucionário e estimamos que é nos lares onde esta tarefa deve começar, porque consideramos relevante que a família, em sua forma atual, apenas modificada por algumas leis pseudo-democráticas, é o esteio mais firme do Estado e da religião, e, portanto, o dique mais poderoso oposto aos avanços do progresso social.
Vamos apenas repetir conceitos já vertidos há tempos em outro lugar, mas acreditamos que nunca se insistirá o suficiente sobre este aspecto da propaganda revolucionária.
A nosso juízo, o trabalho mais urgente a ser realizado pelos companheiros é um trabalho de índole pessoal, que tenda antes de tudo a modificar o caráter das relações entre os sexos dentro da família. É imprescindível liberar as mulheres – companheiras, filhas – de uma vigilância imediata e coercitiva que as relega a um lugar de inferioridade dentro do lar, e as coloca em um plano de eterna menoridade, levando-as a abandonar nas mãos dos demais a resolução de todos os problemas, em muitos dos quais sua atuação poderia ser de grande valor.
É preciso deixá-las uma margem de liberdade que as obrigue a buscar por si próprias a resolução de mil questões, de modo que se vá criando em sua consciência o sentimento da responsabilidade.
Sem o sentimento de responsabilidade não existe personalidade, não existe indivíduo; e se não existe indivíduo as coletividades são apenas conglomerados sem consciência e sem caráter: massas. Nós anarquistas devemos apagar esta palavra de nosso vocabulário. Massa é uma coisa amorfa, indeterminada, e nós queremos coisas concretas, bem concretas e bem definidas: queremos indivíduos.
Nosso trabalho, nosso grande trabalho, melhor ainda, o trabalho dos companheiros, sem abandonar por isso atividades a desenvolver no caminho da revolução, sem fazer uma pausa, mas sim ir avançando constantemente, é a de fazer de cada mulher uma individualidade.
Supomos que todos considerarão que falamos em termos genéricos. Não desconhecemos que nas atividades revolucionárias valores femininos, que muito estimamos, se destacaram; mas não esqueçamos que este fato traz maior força aos raciocínios que estamos expondo, maior importância ao trabalho que propomos aos companheiros.
Mãos à obra: que cada militante reverta uma parte das atividades que desenvolve na rua ao próprio lar, começando por apagar as hierarquias irritantes entre o que se convencionou chamar atividades masculinas ou femininas; que a combatividade seja dada à mulher iniciando-a com paciência e com carinho nos problemas humanos, muitos dos quais ela já tem resolvidos, por instinto, no fundo da sua consciência: a guerra, a justiça.
Podemos falar dos meios a empregar apenas em termos genéricos, estes meios deverão buscar cada companheiro em si e nas circunstâncias que o rodeiam; mas, pelos procedimentos que sejam, que trabalhem para incorporar o valioso elemento que é a mulher à causa da revolução e o mundo acelerará sua marcha para uma concepção definitiva de sociedade.
De nossa parte, propomos seguir tratando destes temas em números sucessivos e convidamos a quantas companheiras que estejam, ainda que sejam apenas ligeiramente preparadas neste terreno, a expor seus juízos sobre o trabalho que a mulher pode realizar tanto no caminho da revolução, como depois dela.