A Federação Nacional de Mujeres Libres

A seguir publicamos uma entrevista dada por Mujeres Libres ao jornal barcelonês Ilustración Ibérica, que veio à luz no número correspondente ao mês de março de 1938. Realizada pouco depois do Congresso da Regional Catalã, em 13 de fevereiro daquele ano, esta entrevista é reveladora dos princípios teóricos, organizativos e estratégicos que regeram a luta dessa importante federação em prol da emancipação feminina e da emancipação humana.

Ainda que Mujeres Libres tenha sido pensada para um tempo e um espaço que, aparentemente, estão muito distantes do Brasil de 2022, gostaríamos de reivindicá-la como fonte de inspiração para a esquerda contemporânea. Suas múltiplas realizações nos campos econômico, político, social e cultural durante os três anos de guerra e Revolução Espanhola merecem, sem dúvidas, ser conhecidas, debatidas e atualizadas pelas pessoas engajadas na luta por um mundo livre e igualitário.

O acesso a este importante documento só foi possível graças à ajuda de Marta Branca Escartin, pesquisadora feminista espanhola, que gentilmente nos facilitou uma cópia digitalizada dele. A ela, nosso muito obrigado.

A tradução do espanhol para o português é de Thiago Lemos Silva.

Por Ilustración Ibérica

O recente Congresso Regional de Mujeres Libres colocou sobre a mesa a atualidade da Federação Nacional deste nome, da qual ouvimos frequentemente em mais de uma discussão. Como tudo que representa um valor autêntico, Mujeres Libres tem seus detratores sistemáticos e seus defensores incondicionais; poucos, entretanto, foram aqueles que conseguiram fixar seu critério no justo limite da objetividade. Isso tem seus inconvenientes, porque se criou uma série de equívocos a respeito da referida organização, levando muitos camaradas, que querem situar-se de boa fé frente ao problema feminino[1], à desorientação.

Seguimos de perto e com carinho o desenvolvimento dessa organização; conhecemos as companheiras que a orientam e não podemos compreender que sua atuação possa dar lugar à outra interpretação que não seja a de uma organização nitidamente revolucionária.

Queríamos, entretanto, fazer falar algumas daquelas companheiras e levar suas palavras diretamente à opinião [dos leitores].

Dirigimo-nos, em primeiro lugar, à Secretária do Comitê Nacional, [Lucía Sánchez Saornil][2].

Trata-se de uma verdadeira militante confederal e anarquista, fundadora, com outras[3], da Revista Mujeres Libres[4] e do movimento que leva este nome. Ninguém melhor que ela pode fixar com precisão o caráter dessa organização feminina.

Organização revolucionária

Lucía Sánchez Saornil recitando suas poesias antifascistas durante a exposição “2 anos de luta”, em Barcelona, no dia 07 de agosto de 1938. A foto é de autoria de Pérez de Rozas e faz parte do Arxiu Fotogràfic de Barcelona.

 – Minha língua e minha mão doem – nos diz – de sempre falar e repetir sobre a mesma coisa. Odeio a propaganda de palavras. Toda eloquência, para mim, está nos fatos.  Por que as pessoas querem que lhe expliquem as coisas? Por que não se dão ao trabalho de seguir atuações? Não me refiro à gente neutra, essa não conta para mim. Mas os revolucionários, os antifascistas, estão obrigados a nutrir-se, não de declarações, mas de fatos.

… Sim, já sei que se murmura e até se fala em voz alta que somos uma organização feminista[5]; mas, há alguém que ainda acredita nisso? Feminismo! Se por feminismo entende-se o afã de superação, o esforço para colocar-nos em um nível de cultura e de direitos sociais iguais ao homem, somos feministas. Se por feminismo entende-se o não cultivar um complexo de inferioridade criado por uma educação atrabiliária, mas, pelo contrário, fazer esforços para livrar-nos dele, somos feministas, não há dúvida! Mas, se com isso pretendemos alcançar nossa integridade como seres humanos, sem renunciar às nossas características femininas, para extrair delas o maior rendimento para a causa de todos, ah, então!… já não sabemos o que é essa coisa de feminismo, e nossa posição poderia chamar-se de “humanismo integral”. Sim, sem sorrisos maliciosos, humanismo integral, um humanismo não pela metade, como foi até agora somente pela atuação masculina, mas sim um humanismo equilibrado, sem menosprezo para nenhum ser racional.

Por isso, Mujeres Libres teve que sair do estreito conteúdo de um “clube”, onde se ensinam receitas de cozinha, ou, quando muito, dão-se algumas noções de estratégia amorosa; por isso, ultrapassou, também, o caráter de uma organização política ambígua, manejada por esse ou aquele partido, e afirmou resolutamente seus princípios.

Mujeres Libres não está a serviço de “ninguém”; sabe por si mesma o que quer e com quais forças conta e afirma, resolutamente, que sua organização tem um conteúdo anarquista, pelo que essa doutrina se aproxima do humanismo integral que ela persegue.

Além disso, diz que seu conteúdo anarquista não se mantém no céu vago das abstrações filosóficas, mas sim que desce à rua para impregnar-se de espírito popular, e por isso se considera uma organização revolucionária. Fixa seu critério frente a cada um dos problemas cotidianos e procura, como corresponde a toda organização política, na medida de suas forças, influir no ambiente, exercer a crítica, criar situações. Em uma palavra, como componentes de um conglomerado social – nos negarão essa condição? Não ria, camarada repórter – exercitar um direito de seres organizados, coadjuvando com os demais para criar o espaço no qual nos movemos, ou seja, na sociedade em que desejamos viver. Por acaso, esse é o feminismo do qual nos acusam?

Posições concretas

 – Demonstração de uma posição concreta diante de um determinado problema? Por que não? Diante da unidade, por exemplo.

Reiteradamente, a organização de “Mujeres Antifascistas”[6] nos convidou para efetuar a unidade de organizações [femininas] e nós nos negamos. Motivos? Porque nossa unidade [enquanto mulheres] não tem nenhum fim prático para a direção do movimento espanhol. Porque compete aos organismos diretores dos diversos setores antifascistas decidirem-la; somente uma unidade afirmada nos cimentos básicos dos dois grandes organismos sindicais têm eficácia[7].  A unidade de nossas organizações femininas não teria, como resultado imediato, outra coisa que a coação mútua nas iniciativas de ambas, já que cada uma obedece a uma tendência distinta cujas diretrizes não se unificaram. Em muitos aspectos, produziriam choques que antes nos prejudicariam do que nos ajudariam, sobretudo se levarmos em consideração a profunda diferença de tática entre uma e outra. Isso se manifestou, não faz muitos dias, ante a celebração da semana da mulher. Enquanto elas concordaram em manifestar-se em uma série de atos sem transcendência revolucionária, nos quais haveria inaugurações de creches, distribuição de garrafas de leite etc…, nós entendíamos que a melhor homenagem à mulher russa[8], em torno da qual se organizava a referida semana, era a de seguir seu exemplo, dedicando-nos ao sacrifício com silêncio e dignidade. Essa parte não apareceu em nosso manifesto por causas alheias a nós, mas que podem conhecer caso tenham a curiosidade de procurar o número 8 de Soli[9].

 – A acolhida entre as mulheres, você pergunta? Só te digo que não temos mais que ir buscá-las; são elas que vêm até nós. Agrupações nascem – usando uma comparação pitoresca – como os fungos. Inteligências fechadas até ontem se vislumbraram repentinamente, com revelações de mundos insuspeitos, e o desejo de compreender se torna nelas uma verdadeira ansiedade.

Atualmente temos quatro regiões constituídas com os seus respectivos Comitês: Levante, Aragão, Catalunha e Centro. Estão em vias de constituir-se, Andaluzia e Extremadura, sem que isso queira dizer que não contamos nessas regiões com grande número de agrupações locais.

– Cerca de 20 mil afiliadas; um total que, desde a constituição da nossa Federação em agosto último [de 1937], duplicou nossos efetivos.

Os grandes obstáculos

Mercedes Comaposada durante a exposição “Dois Anos de Luta”. A foto é de autoria de Pérez de Rozas e faz parte do Arxiu Fotogràfic de Barcelona.

Até aqui, [falamos com] a Secretária Geral, agora vejamos o que diz a Secretária de Propaganda [Mercedes Comaposada][10]

– Com vocês, não são necessárias grandes explicações para convencê-los que a base de toda a organização é a propaganda. Se vissem com que série de dificuldades se desenvolveu a nossa… A dificuldade básica foi a econômica. Toda a nossa propaganda[11] foi editada à custa de aportes voluntários. Não é possível pensar que ela possa sustentar-se com as cotizações de nossas afiliadas, que são cotizações modestíssimas, e que não poderiam ser de outro modo, se considerarmos que a maioria das mulheres não têm renda econômica ou essas são reduzidíssimas. A subvenção de nossa propaganda há de obter-se à força de conversações e gestões diretas entre os camaradas e organizações afins. Alguns responderam generosamente, mas, se vissem os sorrisos de incompreensão que tivemos que engolir, quando não digerir, muitas vezes…

– Sem modéstias, aceitamos o elogio quanto ao bom gosto de nossa propaganda; e acredite, ela foi objeto de dissimuladas repreensões; disseram que nossa propaganda era pomposa e, portanto, cara. É claro que nossas ideias sobre [o tema em] particular chocam com as de muitos companheiros; para nós [de Mujeres Libres], a propaganda não consiste no falar e escrever muito, mas no falar e escrever bem e substancialmente; preferimos a propaganda parca e bem editada à descuidada e profusa. Não pretendemos apenas educar socialmente as mulheres, mas afinar-lhes o gosto, acostumá-las à seleção. É chegada a hora que os trabalhadores conheçam o bom da burguesia, que proclamemos nossos direitos aos gozos do espírito.

– Não, nem camaradas nem organizações afins são tão entusiastas como deveriam. Poderíamos dizer que nossa organização chamou mais a atenção aos de fora do que aos de casa.

– Eu acredito que esse princípio de indiferença obedeça ao fato de que ainda não se inteiraram bem da importância de nosso movimento. Agora que nós estamos bem convencidas do papel que representamos na Revolução Espanhola, o manteremos acima de tudo.

Cultura, cultura, cultura – disse Mujeres Libres

Fachada do Casal de la Dona Treballadora, instituição criada por Mujeres Libres em Barcelona, em fins de 1937. A foto é de autoria de Pérez de Rozas e faz parte do Arxiu Fotogràfic de Barcelona.

– Satisfeitos da inteireza dessas jovens, temperamento de verdadeiras revolucionárias, abordamos a Delegada de Cultura [12].

 – Mujeres Libres sabe muito bem que a superação individual e coletiva só pode ser atingida por meio da cultura. Por isso, esta Seção Nacional se constituiu em Conselho a fim de dedicar a essa atividade toda a atenção e o esforço preferenciais que necessita.

 –  Todos os nossos empenhos para introduzir às mulheres aos problemas sociais seriam em vão, se por meio de uma preparação cultural não trabalhássemos antes seus cérebros, abrindo o caminho a todas as suas possibilidades de compreensão.

– Em Barcelona, o governo nacional dissolveu nosso Instituto de Cultura, ao precisar do edifício para instalar a estrutura burocrática de não sei qual departamento oficial. Esse contratempo, longe de acusar um colapso em nossas atividades, nos fez aguçar o engenho e fortalecer-nos ainda mais em nossos propósitos. Hoje, temos em Barcelona “El Casal de la Dona Treballadora”[13], onde vão centenas de moças para adquirir conhecimentos. Existem aulas de instrução primária e cursos ampliadores: datilografia, idiomas, enfermagem, puericultura, economia etc… também estamos organizando cursos de militantes para o movimento operário.

Em Madrid, temos outro Instituto onde damos, além das disciplinas já mencionadas, um curso de oratória. E ainda em Madrid, como em Barcelona e Valencia, contamos com inúmeras escolas nos bairros. Mas, não acredite que concentramos nossos interesses apenas nos grandes centros; Mujeres Libres tem escolas em Elda, Alcoy, Herencia, Guadalajara, Herche, e muitos povoados de menor importância que seria muito longo enumerar.

– Não, nada disso tem a haver com a infinidade de escolas profissionais de nossas Seções de Trabalho. A delegada daquela Seção, se você desejar, pode te falar amplamente delas.

***

Mas, refletimos um momento e acreditamos que com tudo que foi apresentado, nossos leitores terão o suficiente para conhecer a Federação Nacional de Mujeres Libres e paramos por aqui.


Notas

[1] Sobre esse ponto, ver: SAORNIL, Lucía Sánchez. A questão feminina em nossos meios. Biblioteca Terra Livre/Editorial Eleuterio. São Paulo/Santiago. 2015.

[2] Ainda que o nome de Lucía Sánchez Saornil não apareça na entrevista, é amplamente sabido que ela assumiu o posto de Secretária do Comitê Nacional de Mujeres Libres, em 22 de agosto de 1937, quando se encerrou a sua primeira Conferência Nacional.

[3] Trata-se de Mercedes Comaposada e Amparo Poch y Gascón.

[4] Os doze números da revista foram digitalizados e disponibilizados na internet pela Confederación General de Trabajo (CGT), central anarcossindicalista espanhola, que possui um grande trabalho de resgate e atualização da memória de Mujeres Libres. Ver: Revista Mujeres. Disponível em: https://cgt.org.es/revista-mujeres-libres/ . Acesso em: 05/02/2022.

[5] Ao longo de seus quase três anos de existência, Mujeres Libres lutou pela emancipação feminina, porém, nunca se definiu como feminista. A recusa dessa definição estava ligada à ideia, comum na época, que o feminismo era uma ideologia ligada às mulheres burguesas, que buscavam sua emancipação conquistando direitos políticos dentro dos limites da sociedade capitalista. Com a ampliação e diversificação posteriores do feminismo, as iniciadoras de Mujeres Libres são reivindicadas hoje como precursoras do anarco-feminismo. Ver: ACKELSBERG, Martha. Mulheres Livres: a guerra civil espanhola e a emancipação feminina. Editora Elefante: São Paulo, 2019.

[6] Mujeres Antifascistas foi uma organização feminina que surgiu na Espanha, em 1933, sob a tutela do Partido Comunista Espanhol. Em virtude disso, foi frequentemente criticada por Mujeres Libres, em particular por Lucía Sánchez Saornil.

[7] A entrevistada se refere à Unión General del Trabajo (UGT), de orientação socialista, e à Confederación Nacional del Trabajo (CNT), de orientação anarquista. Para saber mais sobre o movimento antifascista espanhol, ver: SAORNIL, Lucía Sánchez. Horas de Revolução. São Paulo: Tenda de Livros. Coleção Charlas y Luchas. [no prelo]. 2022.

[8] A Semana ou Dia da Mulher Russa era uma data comemorativa muito recorrente no movimento operário a nível internacional. Nela, se rememorava o papel pioneiro das mulheres trabalhadoras nos eventos que desencadearam a Revolução Russa, em março (no calendário juliano) de 1917. Em outra ocasião, nós publicamos um artigo sobre isso. Ver: RODRIGUES, Luana. Por mulheres, entre mulheres, para mulheres! Patos à Esquerda. Patos de Minas. 08/03/2021. Disponível em: https://patosaesquerda.com.br/por-mulheres-entre-mulheres-para-mulheres . Acesso em: 05/02/2022.

[9] A entrevistada se refere ao periódico barcelonês Solidaridad Obrera. O manifesto aludido foi publicado, com censuras, no seu número 1.829. Ver: La Federación Nacional de Mujeres Libres ante la Semana de La Mujer. Solidarid Obrera. Barcelona. 09/03/1938. Disponível em: http://www.cedall.org/Documentacio/Premsa%20Llibertaria/Soli/19380000/19380309.pdf  . Acesso em : 05/02/2022.

[10] Ainda que o nome de Mercedes Comaposada não apareça na entrevista, é amplamente sabido que ela assumiu o posto de Secretária de Propaganda de Mujeres Libres, em 22 de agosto de 1937, quando se encerrou a sua primeira Conferência Nacional.

[11] Além dos doze números da revista, o Secretariado de Propaganda de Mujeres Libres também publicou dois pasquins, um boletim, um álbum ilustrado, centenas de cartazes e dez folhetos.

[12] Não conseguimos identificar de quem se trata.

[13] Traduzindo do catalão para o português seria: “Casa da Mulher Trabalhadora”

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