No artigo que abre seu 18 de Brumário de Luís Bonaparte, escrito em janeiro de 1852, Marx, logo após sintetizar sua concepção de história (obra humana incerta e condicionada), fez uma crítica aos movimentos revolucionários de seu tempo. Em sua avaliação, eles procuravam nas revoluções do passado um figurino a vestir, uma linguagem a parodiar. No embate do presente, em vez de redescobrir o espírito da revolução, colocavam em cena o seu fantasma.
No Brasil de 2024, que nada tem de revolucionário, “progressistas” acomodados ou acríticos ao lulismo chamam à lembrança, como palavras de ordem, as conquistas (ou concessões) do auge dos governos petistas, especialmente aquelas situadas entre 2006 e 2012. Neste texto, caro leitor, reiteramos o aviso de Marx: não é do passado que os agentes da luta social podem colher sua poesia.
A conciliação de classes petista, que vigorou até 2013 (sendo generoso com a cronologia) e que ruiu completamente em 2016, teve como desfecho o desastre inigualável do bolsonarismo no poder. Eis a tragédia. Agora, a nova conciliação, ingênua tentativa de amansar a burguesia por meio de mimos contínuos e disciplinar a cadela do fascismo apelando para o Poder Judiciário, é vazia. Eis a farsa.
Defendo aqui o seguinte: se a perspectiva de futuro é estreita, o antagonismo de interesses é gritante e a mobilização é ainda mais necessária do que antes de 2023.
Uma explicação para o problema é dizer que o governo Lula se encontra encurralado desde antes de ser governo, o que é verdade. Ao aceitar essa condição, contudo, o governo abre mão de governar. Diante de tal renúncia a um exercício pleno, agressivo e veloz do Poder, o forte Congresso reacionário e o parlamentarismo prático do “presidente Arthur Lira” têm funcionado como desculpas do governo para justificar a desmobilização. Uma linha argumentativa curiosamente coincidente à de um governo neoliberal, como o de Margaret Thatcher na Inglaterra dos anos 80: “Não há alternativas”. Efeito forçoso dessa inércia é a ausência de um projeto de poder ideológico à esquerda, ainda que reformista. Mas seríamos menos infelizes se fosse apenas isso.
Ocorre que, para além de inércia, há um conjunto injustificável de medidas direitistas ou temerosas sendo implementadas. Vou citar 10 que saltam aos olhos:
1. A elaboração do “Novo Arcabouço Fiscal”, que mantém os parâmetros de austeridade, tendo em vista “acalmar” o mercado financeiro, cada vez mais empoderado graças às suas chantagens. Isso escala níveis absurdos, a ponto de estabelecer que a despesa pública não passe de um crescimento de 2,5% ao ano, como mostrou Antonio Martins em matéria no Outras Palavras. O nome adequado seria, na verdade, “calabouço fiscal”, como alguns críticos já zombaram. Não é exagero. Afinal, o próprio Haddad mostra o quão à direita está a proposta (da qual ele próprio é o principal construtor), ao dizer que ela irá “despolarizar” o Brasil. Resta perguntar: em favor de quem?
2. Uma reforma tributária que perde a chance histórica de ser radicalmente progressiva e que evita uma formulação popular, porém dá ouvidos a economistas liberais e setores da burguesia, de modo a atender estritamente a simplificação de impostos e não avançar de maneira significativa na taxação dos ricos. A reforma tributária sobre a renda, conforme anunciada pelo governo, está prevista para ser implementada em fases ao longo de 2024, embora os detalhes específicos ainda não tenham sido divulgados. Contudo, surge a questão: por que não foi a prioridade?
3. Uma estranha maquiagem linguística de cortes orçamentários, agora tratados como “revisões” programáticas a serem apresentadas pela ministra direitista Simone Tebet (Planejamento e Orçamento) e cobradas pelo ministro Haddad, O Benquisto (pela burguesia).
4. A negação de reajuste salarial compensatório aos servidores públicos, a pretexto de obedecer ao calabouço fiscal. Vale notar que essa postura, além de querer comprimir as reivindicações dos trabalhadores dentro do mínimo (não ter perdas, como disse Esther Dwek, ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos do Brasil), fomenta a divisão da classe trabalhadora ao fazer parecer que se trata de uma escolha entre, de um lado, os mínimos constitucionais da saúde e da educação e o aumento “real” do salário mínimo e, de outro, o reajuste aos servidores. Nada mais estúpido para um Partido dos Trabalhadores em um cenário em que o funcionalismo público é difamado em meio à sanha dos que defendem a privatização de tudo.
5. Uma grotesca medida que viabiliza a privatização de presídios, caminhando a passos largos para a criação de um complexo industrial prisional no Brasil por meio de uma política de incentivo em escala nacional.1Houve um primeiro decreto que deu origem às críticas da esquerda e foi assinado por Alckmin. É o 11.498, de 25 de abril de 2023. Para que não se pense que é coisa de vice, vale notar que outro decreto, o 11.964, de 26 de março de 2024, foi assinado pelo próprio Lula e mantém a medida quanto ao sistema prisional, ainda que revogue o decreto anterior. Cumpre observar que Haddad assinou ambos. Tal incentivo ocorre mediante classificação do sistema prisional como um dos setores prioritários para ser objeto de projetos de investimento na área de infraestrutura. Os projetos, prevê o governo, serão bancados com recursos do Estado2Debêntures (títulos de crédito) de distribuição pública que beneficiam as empresas que se encarreguem das unidades prisionais. Como ressaltou Bruno Shimizu, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim),
O que atrai efetivamente os empresários para esse negócio são os contratos primários do poder público que garantem um repasse por cabeça. Normalmente esses contratos preveem que essas unidades têm de ter um mínimo de presos, normalmente algo em torno de 90% da sua capacidade. Ou seja, precisam funcionar quase no seu limite de lotação.
Então, além dos incentivos fiscais, do aporte de recursos por parte do BNDES para a construção dessas suas unidades, o estado ainda se compromete a remunerar e garantir o lucro desse empresário. Em Erechim, por exemplo, o contrato tem vigência de 30 anos.
6. A falta de vontade política ao optar por não revogar o Novo Ensino Médio, preferindo “aperfeiçoar” o retrocesso e protelar o problema por meio de uma suspensão, em vez de combater a mercantilização da educação. Até em avaliações moderadas, o diagnóstico é que o governo deveria ter sido mais firme, sobretudo no que diz respeito à Formação Geral Básica.
7. Uma regulamentação frouxa da atividade das empresas de aplicativos de transporte de passageiros e de entregas de comida, que, no limite, institucionaliza a autonomia das empresas e a precarização do trabalho.
8. A falta de coerência no compromisso ambiental, ao permitir que membros do governo, como Alexandre Silveira (PSD-MG), ministro de Minas e Energia, incentivem a extração de petróleo na foz do Rio Amazonas, sem devida avaliação e em desacato ao parecer negativo do IBAMA.
9. A ausência de iniciativas para a realização de qualquer alteração na concentração fundiária no país, exceto a chamada “prateleira de terras“, que teria como efeito, aliás, deslegitimar as ocupações dos movimentos de luta pela terra sob o argumento de que o governo já estaria ofertando terras devolutas e improdutivas. O viés desmobilizador da medida fica nítido no seu “timing”: havia sido planejada para 8 de abril de 2024, a fim de sustar o impacto do Abril Vermelho do MST, período no qual o movimento costuma intensificar as ações diretas de ocupação.
10. A insistência em um acordo Mercosul – União Europeia que pode agravar intensamente a situação de dependência econômica a partir da confirmação de uma divisão internacional do trabalho em que a produção e a exportação de mercadorias de baixo valor agregado seja a base da atividade econômica de países do bloco sul-americano.
O amigo “progressista” poderia argumentar, em defesa de muitas dessas medidas, que a atual conjuntura política nacional exige pragmatismo. Nessa perspectiva, se se atrevesse a governar, o governo estaria em risco! Lembremos: a direita governou no mandato de Bolsonaro! Em nome da governabilidade, a tática deve ser a entrega do poder e a resignação? O fato é que as propostas governistas têm buscado antecipar a rejeição pela oposição. Nessa intenção, em vez de elevar as demandas, sabendo que elas teriam desgaste no processo de negociação da democracia burguesa, o governo escolhe moderá-las de antemão. Desse modo, deixa-se ampla margem à oposição para que ela esterilize quaisquer reformas.
Exemplifica isso perfeitamente a fácil “vitória” de Haddad na aprovação do seu Calabouço Fiscal. O fato de PSDB, PP, União Brasil, Cidadania, MDB, Podemos e outros partidos notoriamente direitistas terem apoiado o Calabouço Fiscal não deveria ser lido como vitória do governo, mas como W.O. a favor da oposição. Ou seja, vitória fácil para a direita, sem precisar de combate. O outro time sequer entrou em campo.
O prêmio de consolação de alguns camaradas têm sido a política externa. Nesse campo, aparentemente, o governo Lula seria o protagonista de uma agenda multipolar, articulando os membros do Sul Global e, ao mesmo tempo, se destacando na questão palestina. Haveria, nessa interpretação, incoerência entre as políticas interna e externa. O Lula de fora seria um leão ousado e comprometido com pautas históricas da esquerda; o Lula de dentro, porém, seria um gatinho, inofensivo e seduzido por nada mais do que um pires de leite. Não me consta, porém, que o Brasil tenha rompido relações com Israel, o que seria adequado e coerente. Soma-se a isso o fato de que as articulações multipolares têm sido baseadas mais no pragmatismo do comércio internacional do que em uma postura anti-imperialista ideologicamente coesa. É mais cauteloso notar que o governo Lula tem explorado o cenário internacional como uma dimensão na qual pode se afirmar discursivamente sem correr grandes riscos, uma vez que tem evitado ferir grandes interesses.
Diante de um cenário tão fechado, em que o governo parece pisar em ovos, há um fator externo à institucionalidade burguesa que poderia alterar os rumos do mandato positivamente. A greve dos servidores federais da educação (vale frisar: essa greve mobiliza também os servidores federais que trabalham no campus do IFTM de Patos de Minas), que busca “reestruturação de carreira, recomposição salarial e orçamentária e revogação de normas aprovadas nos governos Temer e Bolsonaro”, pode ser uma fagulha que acione um motor em direção a uma conjuntura de pressão do governo à esquerda – o que seria conveniente. Em vez de jogar água fria nessa combustão, o governo deveria utilizar a energia do momento como maneira de articular mobilizações mais amplas capazes de fornecer o capital político necessário para desfazer a destruição do período de Bolsonaro.
Os movimentos sindicais e populares, por outro lado, precisam ignorar com veemência os sinais de conciliação e pedidos de calma do governo, bem como as vozes de figuras reacionárias como a de Camilo Santana, que recentemente criticou a greve dos servidores. Em vez de aguardar um chamado da cúpula do governo, é preciso empurrar essa cúpula, fazendo com que ela sinta a necessidade de manter suas bases populares mais do que sente a necessidade de agradar ao “mercado” (uma dúzia e meia de bilionários).
Poderíamos acusar o governo Lula de contradição, mas ele se forjou justamente em um pacto contraditório e frágil. O mesmo Lula que diz ser “necessário a gente reinventar na construção de uma nova relação entre capital e trabalho” (como se o problema não fosse exatamente o capital, isto é, a exploração do trabalho), é o Lula que lembra (e nisso, sim, ele deve ser ouvido) que:
“É exatamente porque o Lula é presidente que vocês têm que fazer pressão”.