“Falar é estar em condições de empregar um certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.”
Frantz Fanon
Por Viviane Ribeiro
Antes de ingressar na faculdade de Letras, eu pensava que a língua era um mero instrumento que facilitava a comunicação entre as pessoas, ou seja, apenas mais uma forma de linguagem. Mas, à medida que fui me conectando com a sociolinguística, passei a entender que, para além de ser um instrumento de comunicação, a língua também é a representação da identidade de um povo. E que assim como a roupa que vestimos, a língua é um reflexo social dessa identidade.
É comum pensar que quanto mais formal é a roupa que usamos, mais séria é a imagem que transmitimos às pessoas. E com a língua funciona basicamente da mesma forma, quanto mais culta é a linguagem que usamos para nos comunicar, mais prestígio social temos. Somado a isso, surgem diversas afirmações de que as pessoas mais escolarizadas falam “melhor” e que por isso devem ser consideradas exemplos de um padrão a seguir. Entretanto, a língua não é uniforme, pelo contrário, a língua é viva e está em constante transformação.
Sabemos que existe a norma padrão, aquela dos livros de gramática e que é quase impossível de reproduzir na oralidade; a norma culta, que se aproxima bastante — mas não completamente — da norma padrão; e o que a sociolinguística chama de norma normal, sendo aquela empregada com mais frequência nos diálogos do cotidiano. A norma normal surge no contexto sociocultural em que o falante está inserido e como consequência disso, há diversas normas normais circulando pelo país, uma vez que existem experiências socioculturais distintas em todo território nacional. Um exemplo disso são as gírias e as expressões idiomáticas que cada região tem.
A língua, além de reafirmar a identidade de cada falante — e até mesmo demarcar classes sociais e territórios diferentes —, é um ato de luta e resistência. É claro que como falantes do português brasileiro temos o mesmo idioma, e, portanto, falamos a mesma língua. Contudo, é errôneo afirmar que a língua é uma só.
Mas, quando falamos do prestígio social que a língua imprime, não devemos nos limitar somente ao emprego da norma culta na fala, também é válido pensar no juízo de valor que atribuímos às línguas estrangeiras.
Há um tempo, uma publicação no Twitter envolvendo o cantor porto-riquenho Bad Bunny apareceu na minha timeline chamando a minha atenção, o post apontava que o artista fazia sucesso por toda a América Latina, exceto no Brasil. A partir desse dia, passei a ver com mais frequência comentários desse tipo vindos de pessoas diferentes. Porém, o que mais me deixou pensativa sobre esse assunto é o fato de Bad Bunny ter sido eleito por três anos consecutivos — 2020 a 2022 — o artista mais escutado do mundo, mas grande parte dos brasileiros nem sequer conhecer suas músicas. Os comentários em sua maioria giram em torno da indignação de grande parte da comunidade que discorda do apontamento realizado pela Billboard e pelo Spotify.
O questionamento que ficou na minha mente por um tempo foi: “porque países que são tão próximos, estão tão distantes ao mesmo tempo? E o que dificulta essa troca cultural? Principalmente no que diz respeito ao consumo de músicas latino-americanas em território brasileiro.” Uma possível resposta talvez esteja na barreira linguística, herdada de colonizações diferentes, que divide o Brasil do restante dos países latino-americanos, contudo sabemos que a barreira linguística é algo fácil de romper hoje em dia graças à tecnologia e a internet. Além disso, esse argumento é facilmente contestado, já que é bem natural que artistas estadunidenses façam sucesso por aqui, por exemplo.
Passei a pensar que esse muro linguístico exista devido ao prestígio e ao juízo de valor que atribuímos à língua, é dizer, preferimos consumir conteúdos que transmitem um certo prestígio social. Como, por exemplo, aqueles produzidos na língua inglesa. E muitas vezes atribuímos esse juízo de valor inconscientemente, pois ainda convivemos com os impactos causados pelo imperialismo estadunidense. A imposição de uma cultura dita superior facilita muito a chegada desses conteúdos às nossas mãos e somos induzidos a manter essa preferência pelas produções estadunidenses.
As canções de Bad Bunny são a prova de que a língua é um ato de luta e resistência. Frente a imposição da cultura estadunidense e consequentemente do uso da língua inglesa em Porto Rico, Bad Bunny conseguiu alcançar a posição de artista mundial, preservando seu idioma e as particularidades que o acento porto-riquenho carrega. O cantor fez, e continua fazendo, um movimento de resgate cultural em Porto Rico, levando para o mundo o que é de fato ser porto-riquenho, desprezando a imagem colonizadora e enaltecendo a identidade de seu povo.
Em uma entrevista para o jornal El País, Bad Bunny diz que é preciso quebrar essa ideia de que os gringos são deuses e necessários para a cultura latina chegar em outros ambientes. Segue um trecho, que deixo voluntariamente em espanhol:]
“Hay que romper eso de que los gringos son dioses… No, papi. Quizá era necesario y abrieron puertas a este boom latino, pero ese momento para mí acabó. Me enorgullece mucho llegar al nivel en el que estamos hablando en español, y no solo en español, sino en el español que hablamos en Puerto Rico. Sin cambiar el acento.”
Bad Bunny para El País.
Talvez estejam aí as razões pelas quais as músicas de Bad Bunny sejam pouco consumidas no Brasil, ou não ultrapassem as bolhas já acostumadas a ouvi-lo. Pois ainda não conseguimos nos desvincular da ideia de que os gringos sejam a solução para a expansão da nossa cultura.