Por Thiago Lemos Silva
Como uma organização de, por e para mulheres, Mujeres Libres estabeleceu uma série de ações para transformar a situação das trabalhadoras durante quase três anos de guerra e revolução na Espanha (1936-1939). Nesse sentido, criaram programas de alfabetização, cursos técnico-profissionais, creches anexas a fábricas, restaurantes populares, campos de treinamento militar, cursos de maternidade consciente e, não menos importante, os liberatórios da prostituição.
Ao lado dessas importantes ações, suas militantes desenvolveram um intenso e extenso plano editorial que consistiu em uma revista, boletins, cartazes e folhetos, que colocaram em evidência a sua luta por um mundo mais igualitário, livre e – por que não? – belo. Mercedes Comaposada, que assumiu a frente do Secretariado de Propaganda, traduziu as aspirações da organização no início de 1938, numa entrevista dada ao periódico Ilustración Iberica. Na ocasião, ela sublinhou os motivos, tanto políticos quanto estéticos, que fizeram de Mujeres Libres um ente tão singular no concerto geral do movimento anarquista e anarcossindicalita espanhol:
– Sem modéstias, aceitamos o elogio quanto ao bom gosto de nossa propaganda; e acredite, ela foi objeto de dissimuladas repreensões; disseram que nossa propaganda era pomposa e, portanto, cara. É claro que nossas ideias sobre [o tema em] particular chocam com as de muitos companheiros; para nós [de Mujeres Libres], a propaganda não consiste no falar e escrever muito, mas no falar e escrever bem e substancialmente; preferimos a propaganda parca e bem editada à descuidada e profusa. Não pretendemos apenas educar socialmente as mulheres, mas afinar-lhes o gosto, acostumá-las à seleção. É chegada a hora que os trabalhadores conheçam o bom da burguesia, que proclamemos nossos direitos aos gozos do espírito.
Dentre a variada e heterogênea obra de Mujeres Libres, os folhetos têm ganhado uma atenção renovada nos últimos tempos, como atesta amplamente o esforço por parte de Anarquismo en PDF. Entre os anos de 2021 e 2022, o referido coletivo editorial republicou alguns dos principais títulos que vieram à luz graças ao infatigável trabalho realizado por essa importante organização anarco-feminista, cuja força e originalidade não deixam de chamar nossa atenção até os dias de hoje.
O primeiro título lançado foi Sanatorio de Optimismo, de Amparo Poch y Gascón, assinado com o seu pseudônimo Doctora Salud Alegre. Este folheto reúne os contos da autora que foram publicados pela primeira vez na Revista Mujeres Libres numa seção homônima, que saiu com certa regularidade ao longo de seus treze números. Com a ironia que lhe era tão peculiar, Poch y Gascón se vale das situações cotidianas para trazer à tona as contradições existentes na sociedade espanhola. Projetando sobre os personagens do sanatório, seus sentimentos e ideias, a contista desenvolve uma ácida e bem humorada crítica sobre temas variados: o ciúme nas relações sentimentais, o pavor dos moralistas diante do avanço do movimento feminista, a crescente intromissão do Estado na vida privada das pessoas e a insistência de anarquistas em se casarem nos sindicatos. O resultado geral disso é uma prosa deliciosa que mais recria do que descreve a realidade na qual autora estava profundamente imersa.
Em seguida foi a vez de Niño, ainda de Amparo Poch y Gascón. Este folheto, também originalmente publicado na Revista Mujeres Libres, era um manual de puericultura destinado às figuras cuidadoras, por meio do qual a autora aplica sua visão anarquista de como deveria ser a educação infantil. Abrindo mão da aridez científica com a qual o tema era comumente tratado em sua época, Poch y Gascón imprime um estilo literário singular a Niño. Tais qualidades permitem à autora transformar este folheto não apenas em um manual de puericultura, mas, também em um conto por meio do qual se narra, com extrema sensibilidade, as dores e alegrias que envolvem o cuidado com as crianças em seus primeiros anos de existência.
Na continuidade, saiu o folheto orgânico Cómo organizar una agrupación Mujeres Libres, redigido pela Secretária de Propaganda em 1937. Escrito em tom coloquial, o folheto se dirige às mulheres trabalhadoras – do campo e da cidade – com o propósito de estimulá-las a se unirem à organização. Nele, o secretariado de propaganda faz uma breve discussão sobre a dupla opressão de classe e gênero a que as mulheres trabalhadoras estão subordinadas, bem como o programa revolucionário de Mujeres Libres para superá-la. Com base nessa visão geral, dão orientações de como tais mulheres podem criar uma agrupação em sua cidade, participar dos programas formativos, conseguir trabalho remunerado, participar das demais organizações do movimento libertário e aportar sua contribuição para a construção da sociedade socialista.
Mujeres de las Revoluciones, de Etta Federn, ganhou publicidade logo em seguida. Neste penetrante folheto, a autora traça o perfil biográfico de doze mulheres revolucionárias, algumas das quais a anarquista chegou a conhecer pessoalmente. Na prosopografia de Federn, as mulheres revolucionárias fazem parte de uma constelação que vai desde educadoras até artistas, passando por escritoras e militantes que marcaram significativamente um ou mais aspectos dos seus respectivos campos de atuação. Enfocadas a partir dessa perspectiva, a autora nos apresenta as instigantes vidas e obras de Inga Nabadian, Manon Roland, Charlote Corday, Ellen Key e Rosa Luxemburgo. Outras vidas e obras, igualmente instigantes, que a autora nos apresenta são as de Vera Figner, Angélica Balabanova, Alexandra Kollontai, Lili Braun, Isadora Duncan, Emmeline Pankhurst e Emma Goldman.
O folheto de Carmen Conde, La composición literaria infantil, apareceu pouco tempo depois. Nessa publicação, a autora estabeleceu um vasto programa pedagógico para as crianças, tema sobre o qual escrevia frequentemente na Revista Mujeres Libres. O centro do programa pedagógico de Conde é a literatura infantil, por meio da qual a educadora almeja estimular a imaginação e criatividade das crianças. Para tanto, apresenta diversas ferramentas: o desenho, a escrita, o cinema, dentre outras, que são amplamente discutidas ao longo de seu folheto.
Esquemas, de Mercedes Comaposada, foi o título lançado na sequência. O folheto reúne a produção da autora originalmente publicada de modo anônimo na Revista Mujeres Libres, entre 1936 e 1938. Borrando as fronteiras literárias, os quinze textos que fazem parte de Esquemas transitam por diversos gêneros, que vão desde o manifesto até a crônica, passando pelas memórias e o conto. Nele, Comaposada denuncia a obra funesta da destruição fascista, evoca a memória traumática da prisão de Montjuich e se sensibiliza com a situação das crianças refugiadas. Mas, de igual maneira, registra em tons quase ficcionais a capacidade de resistência do povo trabalhador madrileno que soube barrar o avanço do fascismo, exorta as mulheres a se entregarem com afinco às atividades revolucionárias e reflete sobre a profunda cumplicidade dos gestos de solidariedade que vinham do povo trabalhador mexicano.
Na continuidade, veio a lume Romancero de Mujeres Libres, de Lucía Sánchez Saornil. Nessa publicação constam os oitos poemas que a autora escreveu para diferentes títulos da imprensa libertária durante os quase três anos de Guerra e Revolução na Espanha. Dedicados àqueles e àquelas que tombaram enquanto lutavam pela liberdade, a poetisa destaca neles tanto personagens ilustres, como Buenaventura Durruti e Maria Silva Cruz, quanto personagens quase anônimos, como Encarnación Gimenez. Eles revelam, a partir de diferentes ângulos, a epopeia do povo trabalhador espanhol. No seu romanceiro, a poetisa destaca igualmente alguns acontecimentos que foram chave no curso daquela contenda: a reação do povo em armas diante do golpe fascista em 19 de julho de 1936, o ataque massivo à capital madrilena durante abril de 1937, a queda de Astúrias em mãos franquistas em outubro de 1937 etc…
O último título lançado foi Horas de Revolución, também de Lucía Sánchez Saornil, que recolhe as crônicas da autora originalmente publicadas nos periódicos CNT e Juventud Libre, de Madrid, e Nosotros, de Valência, entre fins de 1936 e princípios de 1937. Muitas vezes ocultada pelo anonimato ou pseudonímia, Lucía recria imaginativamente a vida cotidiana que pulsava nas frentes e nas retaguardas de Valência, Barcelona e, principalmente, Madrid, onde foi testemunha ocular dos primeiros dias de luta contra o fascismo. Ao longo das trinta e três crônicas que compõem Horas de Revolución, a autora registra os avanços obtidos graças às conquistas revolucionárias, em larga medida tributárias do ideal libertário, que podiam ser sentidos na autogestão da economia por parte das coletividades rurais e urbanas, na atuação das milícias populares e na constituição da unidade antifascista de baixo para cima. Mas, registra também as estagnações e até os retrocessos realizados por setores antifascistas abertamente contrarrevolucionários. Nessa direção, ela desvela os resquícios de privilégio deixados pelo antigo regime burguês sob a forma do regime de diferenciação salarial, a racionalização do trabalho e a hierarquização das forças militares.
Sabemos que Mujeres Libres publicou ainda mais dois folhetos: La Mujer y la Eugenesia, de Francisco Haro e La Mujer en la paz y en la guerra, de Federica Montseny. Chegou a anunciar também outros títulos que acreditamos que, de fato, não vieram à luz, tais como Mujeres de nuestra Revolución, de Mercedes Comaposada, La Ciencia y la Enfermidad, de Amparo Poch y Gascón e La mujer callará en la Iglesia, de Etta Federn. Saudamos o esforço feito por Anarquismo en PDF até aqui e ficamos na torcida para que consigam completar a republicação de todos os folhetos que fizeram parte dessa iniciativa editorial tão importante no campo da esquerda revolucionária internacional.