O (não) combate à pandemia em Patos de Minas – Parte 1

Eu pretendia escrever sobre como o neoliberalismo torna a sociedade incapaz de reagir a uma pandemia de maneira eficiente. No entanto, antes disso, não posso deixar de notar um comportamento capilarizado de imbecilidade, que cobra reiteradamente investimentos públicos em uma estranha metodologia que quer usar um antibiótico, um vermífugo e um remédio contra malária para combater um vírus. Já adianto que não será possível deixar de manifestar minha indignação com o disparate do prefeito Luís Eduardo Falcão, que anunciou, como era previsto, seus “planos” para o retorno às aulas em regime híbrido na rede municipal de ensino. Qualquer que seja a efetivação das pretensões do chefe do Executivo, elas devem ser levadas em conta, haja vista que já se provaram delirantes e que ele vem explicitando cada vez mais seu viés negacionista e irresponsável. O presente texto parte de uma manifestação descabida por parte de um vereador. Entretanto, questões mais gerais da pandemia, das quais o episódio problematizado no texto de hoje é apenas um sintoma funesto, serão tratadas em breve.

O fanatismo bolsonarista vai ao hospital

Não faz muito tempo, em Patos de Minas, houve uma orgulhosa apologia ao tal “tratamento precoce” contra a Covid-19. Em uma publicação na sua conta do Facebook, no dia 16 de janeiro, o vereador José Luiz Borges Júnior relatou ter visitado o Hospital de Campanha e disse só ser possível evitar o agravo à população pela doença se for com o tal “tratamento” precoce.

Ainda segundo o vereador bolsonarista, todas as cidades que usaram o “tratamento” obtiveram “ótimos índices no enfrentamento ao vírus”. Borges Júnior também diz que o prefeito, Luís Eduardo Falcão, se comprometeu a implantar na saúde pública municipal o “TRATAMENTO” [sim, ele escreveu em caixa alta, pois é como se gritasse para convencer de que a tal irresponsabilidade é um tratamento sério].

Ora, estamos cansados de ver Bolsonaro e seus apoiadores endeusando o tal “tratamento” precoce e “oferecendo” hidroxicloroquina até para as emas do Planalto. (E veja bem, estimado(a) leitor(a): este país já zombou da insanidade de Jânio Quadros quando ele resolveu fazer um cercado no Alvorada para jumentos que teriam chapéus de palha, mas essa é outra história. Jânio, perto de Falcão e Bolsonaro, parece bem razoável!). Não faltam evidências contrárias à eficácia do tal “tratamento”.

Breve passeio nas bases de dados já mostra isso. Há, por exemplo, um estudo dizendo claramente que a “adição do Hidroxicloroquina ao cuidado padrão não trouxe benefícios significativos, não diminuiu a necessidade de ventilação e não reduziu as taxas de mortalidade em pacientes COVID-19″. Outro, que contou com 504 participantes infectados, concluiu que “a utilização de hidroxicloroquina, em monoterapia ou com azitromicina, não melhorou o estado clínico aos 15 dias em comparação com os cuidados padrão.” Um dos estudos mais comentados recentemente, feito no Reino Unido, foi obra de um grupo de dezenas de cientistas. Sua conclusão, depois de acompanhar mais de 4500 pacientes, foi que “entre os pacientes hospitalizados com Covid-19, aqueles que receberam hidroxicloroquina não tiveram uma menor incidência de mortes ao 28º dia do que aqueles que receberam o tratamento usual”. Também há um aviso de um professor de Química da Unicamp de que a dose necessária para que a tal Ivermectina possa ter qualquer chance de fazer efeito contra o Sars-Cov-2 é 17 vezes superior à dose máxima permitida – ou seja, usar Ivermectina contra a Covid-19 (supondo que o(a) nobre bolsonarista deseje chance de eficácia) implicaria usar uma dose letal. Outro ponto é que não faltam evidências de que o uso indiscriminado de Azitromicina não tem como risco apenas os graves efeitos colaterais. Pode também favorecer o aparecimento de superbactérias e provocar a falta do medicamento para quem realmente precisa. Mas tudo isso já não é novidade alguma. O leitor que deseje um apanhado mais completo e específico pode ler “Tratamento precoce | ‘Kit covid é kit ilusão’: os dados que apontam riscos e falta de eficácia do suposto tratamento”, texto de André Biernath publicado pela BBC.

Apesar disso e de sentir saudade do tempo em que os vereadores sabiam que não era função deles definir que tipo de medicamento é prescrito por médicos, não posso deixar passar batido que o vereador Borges Júnior incorreu em falsidade ao falar sobre as cidades que usaram o tal “tratamento”. (Isso se ele não tiver simplesmente mentido.) A realidade demonstra exatamente o contrário do que disse o vereador. A coluna de Diego Schelp, no UOL, levantou dados sobre 10 municípios (com mais de 100 mil habitantes cada) que usaram o “tratamento precoce” oficialmente. A constatação foi que “nove deles registram uma taxa de mortalidade por Covid-19 mais alta do que a média estadual”. Em outras palavras, o que os dados das cidades mostram é que o “tratamento” precoce não salva vidas.

Tabela

(Fonte dos dados da tabela: Ministério da Saúde; Imagem: UOL)

Cumpre lembrar a população patense da trágica coincidência de que, conforme publicou o jornal Estado de Minas, o Ministério da Saúde, atualmente parasitado pelo inepto General Pazuello, distribuiu 120 mil comprimidos de cloroquina em Manaus, onde faltou oxigênio e os estragos da pandemia são gritantes. Além disso, o Tribunal de Contas da União vê ilegalidade no uso de dinheiro público para fornecimento de cloroquina e hidroxicloroquina para pacientes com Covid-19.

Um político reclama da “politização”

Quem é otimista pode pensar que se trata de uma manifestação isolada de insensatez e que, em nível de poder Executivo, Patos de Minas estaria relativamente “ok”. Luís Eduardo Falcão, porém, não nos permite ter essa percepção. Recentemente, quando os leitos de UTI chegaram a 100% de ocupação, o prefeito, em vez de organizar o isolamento, lançou uma fiscalização seletiva, propôs volta às aulas em regime presencial híbrido e publicou, em sua conta no Instagram, uma sequência de stories em que trazia uma argumentação estapafúrdia.

Segundo Falcão, ele não é cientista e não tem que fazer propaganda para remédio algum, assim como, pelo contrário, deve “cuidar da cidade e fazer de tudo para preservar a vida da população”. Esse trecho é realmente surpreendente e faz parecer que houve uma breve epifania de sensatez na mente do blogueiro Luís Eduardo. Mas a argumentação se implode em seguida, quando ele diz que a “politização desse assunto está insuportável” e que pretende “oferecer essa opção [do ‘tratamento’ precoce] à população”.

Obviamente, a argumentação é contraditória: publicar sobre o tema e tentar maliciosamente criar a sensação de que os estudos não são conclusivos, de que há dúvida e de que o tal “tratamento” ainda é uma “opção” já é um ato político. Fazer isso só aumenta o falatório a respeito do tema. Digital influencer, o prefeito opera, na verdade, uma forma de despolitização.

O detalhe é que, em vez de “tirar a ideologia” do assunto (que é o que o senso comum entende ser “despolitização”), o feito gera noções erráticas, difusas, que esvaziam o significado das pesquisas que constataram a ineficácia do “tratamento” precoce. Ou seja, Falcão não está clamando pela depuração da ideologia em torno do tema. Pelo contrário: está inserindo a sua ideologia na questão enquanto utiliza em seu favor a aversão popular à política. Essa ideologia entrelaça a noção neoliberal de que cada indivíduo é “empresário de si” com a fantasia (gestada desde a campanha) de que o governo Falcão seria um governo “técnico”.

Ao contrário do que possa parecer, Falcão não está exatamente cometendo “suicídio político”, mas tentando, com pouca destreza, equilibrar-se entre os interesses e forças que o levaram ao poder e a sua imagem pública. Em breve, iremos discorrer um pouco mais sobre isso, mas, por agora, cabe terminar com uma afirmação óbvia: o fato de um vírus ou um remédio não terem, em si próprios, ideologia, não significa que as ações relacionadas a eles estejam fora da arena política.

6 comentários

  1. Parabéns aos editores do jornal, texto claríssimo e extremamente necessário nestes tempos tão difíceís, em que negacionistas, terraplanistas e antivacinas tem amplo apoio do governo federal para difundir suas sandices, mentiras e tolices. O trabalhador patense precisa de um jornal assim, que tenha comprometimento com o povo e com a verdade.

  2. Parabéns a toda a equipe do jornal, que tem trazido luz aos tempos obscuros, delirantes e erráticos perpetrados por um governo federal irresponsável!

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