Em primeiro lugar, o ato de partir para a violência física é lamentável — obviamente não pelo fato de Marçal ter sido atingido (não faremos demonstrações falsas de solidariedade), mas pela forma como o fato e o que ele expressa lesam a classe trabalhadora. Não se deve nutrir nenhuma simpatia pelos candidatos envolvidos no episódio — muito pelo contrário. Cabe, porém, fazer algumas reflexões.
A primeira é que se trata de uma intriga protagonizada pela direita liberal tradicional e a direita liberal “moderninha”, que segue a toada de dizer que é a “nova política”. Dito isso, para analisar, é importante tirar os sujeitos dos papéis em que estão agora.
Datena, apresentador ao estilo “sangue na tela”, mais do que um “perigoso agressor” ou um “desequilibrado”, é a expressão decadente de uma direita tradicional engolida pela própria criação: uma direita extremista na privatização dos direitos do povo e arruaceira no seu comportamento.
Marçal, coach, por sua vez, é uma fração da direita que entendeu, acertadamente, que as redes sociais valorizam mais a agressividade e o discurso motivacional vago do que qualquer elaboração de discurso racional. Não é vítima inocente: agride sistematicamente a pessoa do adversário — seja ele qual for — valendo-se de mentiras, ofensas e encenações. Ele converte o modo de fazer política em um teatro do absurdo. O objetivo é claro: transformar a esfera pública, o espaço de debate, em um circo pegando fogo. E o caos vira escada, oportunidade.
Vale sustentar, ainda, que é esse oportunismo que produz as condições de depravação do debate que permitem que o caso da cadeirada seja possível e até esperado. A violência, então, não pode ser, de forma alguma, reduzida à sua dimensão física. Temos que ter clareza sobre o que é violência e o que é democracia. Assim, verificaremos que o problema maior não é uma cadeirada. Recorreremos, para isso, às elaborações de Marilena Chauí.
Democracia e violência
A democracia, nos lembra Chauí, é a forma de sociedade na qual há criação e conservação de direitos, soberania popular (o poder é do povo — não de um tirano nem do mercado) e conflito, sendo este último legítimo e necessário.
A violência, por outro lado, é toda forma de ação, pensamento e sentimento que reduz o Outro a uma coisa — quando ele é visto como algo a ser manipulado. Não é só agressão, criminalidade, delinquência. Violência, lembra a filósofa, é uma forma de relação social.
Ainda de acordo com Chauí, pode-se afirmar que ocorrem, então, pelo menos, três fatores de violência que mostram como a corrosão e a decadência da democracia são muito mais profundas do que uma mera cadeirada.
- O modo de operação da Internet (que nós não controlamos e está submetido aos interesses de meia dúzia de bilionários): a centralização oligopolizada da internet produziu, de forma deliberada, grupos fechados, retroalimentados e hostis, que tratam os Outros como ignorantes, monstruosos e seres que devem ser eliminados ou manipulados. O conflito não é legítimo e necessário: é visto como uma questão a ser finalizada, ou eliminando ou submetendo o Outro.
- O programa econômico dominante da direita, que protagoniza intriga recente, e até de parte da esquerda (agora no governo Lula): o neoliberalismo e a ideia de que é necessário um gestor, que administre o Estado como se fosse uma empresa. Alguém que negue ser político e apareça como empresário, empreendedor. Nessa visão, tudo deve ser individual e privado — inclusive o poder público, que vira poder privado. Fazem uma defesa da privatização de direitos, transformando-os em serviços a serem comprados.
- O terceiro fator é o modo como, nos processos eleitorais da democracia liberal burguesa, discute-se tudo, menos o essencial. O fato de o debate ter se transformado em uma plataforma de venda de entretenimento para a grande imprensa e para candidatos oportunistas é sintoma disso. O povo não escolhe projetos e linhas políticas, escolhe pessoas a quem se submeterá. Nessa circunstância, não há cidadãos, mas súditos. A soberania do povo estaria presente se estivéssemos discutindo salário, moradia, transporte, condições de trabalho, ambiente, educação enquanto direitos.
Há uma cordialidade1Pensada no sentido identificado por Sérgio Buarque de Holanda.violenta nesse processo de decadência da democracia. Ocorre uma manipulação dos afetos baseados no medo e isso toma conta de muitas cidades. Fala-se mais ao medo dos eleitores do que à razão dos cidadãos.
A violência política é estrutural, está arraigada na formação histórica do país. Covardia não é dar uma cadeirada, mas fingir que a ordem social no Brasil é pacífica, polida, civilizada e que estaria sendo rompida por um ou por outro. O Brasil é fundado em violência — escravidão, colonialismo, cidadania restrita, dominação de classes e opressão de gênero2Aliás, falando em gênero, nota-se que o episódio envolveu a expressão de uma identidade masculina estereotipada, frágil, que precisa se afirmar constantemente por noções de valentia, força, honra — sintoma claro de uma cidadania restrita que trata o espaço político como próprio de “homens”.
O que chamamos de violência política eleitoral, portanto, é uma faceta disso. A violência conjuntural está, de fato, maior: o Grupo de Investigação Eleitoral da UNIRIO identificou 128 casos de violência política eleitoral entre abril e junho deste ano. São Paulo lidera a lista e o Sudeste como um todo também. Esse aumento é significativo em relação ao trimestre anterior, mas está dentro de uma oscilação semelhante ao que houve em outros anos eleitorais.
Isso indicia um cenário que sistematicamente normaliza a violência política — o que é grave e deveria nos fazer refletir sobre a relação entre violência e democracia. A diferença, a novidade, é que, no momento, essa violência se transforma ora em espetáculo midiático, ora em trampolim eleitoral.
O cenário local
Escrito em 1670, o Tratado Político, do filósofo holandês Baruch Spinoza, diz, no seu quinto capítulo, que “uma sociedade em que a paz não tenha outra base que a inércia dos cidadãos, os quais se deixam conduzir como rebanho e não se exercitam senão na escravidão, não é uma sociedade, é um ermo, uma solidão”. Pode se dizer, portanto, que não há guerra, mas não se pode dizer que haja paz.
O cenário de 2020 foi bem mais conturbado e, nesse sentido, Patos aparenta ter um processo menos tenso. Isso é uma impressão e, na verdade, nesta reta final pode ser que vejamos ela se dissipar. O fato é que a cidade está em uma hegemonia neoliberal até o momento pouco contestada.
Não sabemos, na verdade, o que ocorre por trás da propaganda. Historicamente, parece no mínimo suspeito que Patos teria se aquietado de fato e espontaneamente. Trata-se de uma cidade em que, desde os anos 1920, as rivalidades chegavam às “vias de fato”, com assassinatos, tentativas de empastelamento de jornais e agressões diversas; trata-se de uma cidade que tem um histórico de intrigas e pedradas entre partidários da UDN e do PSD. Será mesmo que os remanescentes desses grupos teriam se retirado em vez de fazer parte do novo jogo?
Embora não reproduza o problema da violência física entre candidatos ao cargo de prefeito, Patos reproduz o aspecto de poucas discussões de projeto político de longo prazo. Pode se dizer que a noção de projeto é hoje substituída pela tática eleitoreira. Comunicação e transparência foram substituídos pelo marketing. Programa de governo virou lista de desejos e metas de empresa — com missão, visão e valores fictícios e cínicos.
Opera, neste cenário, uma tática de desprezar o papel dos partidos (em um sistema que é representativo e partidário), investir em figuras carismáticas e reduzir a política a uma espécie de judô moral, um comparativo de virtudes.
Demagogia e neoliberalismo: em vez de as eleições demonstrarem que o poder, na democracia, é lugar sem dono, vende-se a ideia de que os novos donos do poder são naturalmente os chefes, porque seriam os gestores.
No verdadeiro movimento das cadeiras, quem fica sem assento é a classe trabalhadora.