A seguir publicamos uma versão atualizada da resenha de Thiago Lemos Silva do livro Os sovietes traídos pelos bolcheviques, de Rudolf Rocker, publicado pela editora Hedra, em 2007. A resenha foi originalmente publicada em Eidos info-zine, Patos de Minas, nº22, Jan, 2010.
Por Thiago Lemos Silva
Os conselhos são órgãos revolucionários, que surgem entre as classes trabalhadoras em períodos nos quais a ruptura com a sociedade capitalista e a construção da sociedade socialista se apresentam como possibilidade real para as pessoas trabalhadoras. Os conselhos têm por objetivo superar a estrutura econômica e política da sociedade burguesa, que se baseia na propriedade privada e na democracia parlamentar.
Os conselhos visam, desse modo, erigir um tipo de administração em que, uma vez socializados os meios de produção, os trabalhadores se organizam de baixo para cima a partir de pequenas unidades, tais como as fábricas, as escolas, as comunidades etc para gerir diretamente os assuntos concernentes a sua existência coletiva. Depois de interligadas, tais unidades substituem o Estado liberal de Direito na tarefa de articular as diferentes partes que compõem a totalidade social.
Assim sendo, podemos perceber que os conselhos operários podem assumir conteúdos distintos, que são, por sua vez, dependentes do contexto histórico em que estes emergem e se consolidam. Foi desse modo que se procedeu com a Comuna de Paris, em 1871, os sovietes, na Revolução Russa em 1905, e, após, em 1917, os rattes na Revolução Alemã em 1919, as coletividades na Guerra Civil Espanhola em 1936, os caracoles zapatistas no México em 1993, ou então as asambleas na Argentina em 2001.
Usualmente, o conselhismo é tomado como uma expressão filosófica típica do marxismo, mais especificamente do marxismo heterodoxo. Isso fica bastante evidente quando nos deparamos com o trabalho de autores do quilate de Rosa Luxemburgo, Anton Pannekoek, Paul Mattik e Hermam Gorter. Não obstante, a reivindicação dessa herança não é feita apenas pelos marxistas. Como iremos ver mais adiante, outras correntes do pensamento socialista também exigem o seu lugar junto aos demais executantes testamentários do legado deixado por aquilo que seria, segundo a feliz expressão de Hannah Arendt, o “tesouro perdido da tradição revolucionária”.
Dentre essas outras correntes do pensamento socialista estão, naturalmente, os anarquistas, cujas reflexões acerca dos conselhos são anteriores e, em certos aspectos, mais profundas do aquelas realizadas pelos seguidores de Marx. Nesse sentido, não foi por acaso que o anarquista alemão Rudolf Rocker se esforçou, à maneira de um caçador, para descobrir e decifrar a obscura, porém viva, presença desse tesouro perdido no interior de uma tradição revolucionária que anunciava o fim da desgraça representada pela exploração econômica e pela dominação política. Tal esforço, em grande parte, foi organizado e sistematizado no livro “Os Sovietes traídos pelos Bolcheviques”, obra em que o autor levanta e discute questões significativas para um correto entendimento acerca da teoria e prática conselhista.
Nessa direção, a presente resenha tem o objetivo de, por um lado, refletir sobre a origem teórica dos conselhos, demonstrando a sua estreita proximidade com a tendência anarquista que se desenvolve no seio da Primeira Internacional e, por outro, analisar o desenvolvimento prático dos conselhos durante a Revolução Russa de 1917, sublinhando a sua eventual incompatibilidade com a ditadura do proletariado implantada pelo partido bolchevique após a tomada do poder por Lênin e seus seguidores.
Ao traçar a genealogia da idéia de conselhos, Rocker remonta até a longínqua década de 60 do século XIX, período em que aparece, como já sabemos, a Associação Internacional dos Trabalhadores. Para o nosso autor, foi com o surgimento e transformação da Internacional que o movimento operário europeu começou a se preparar para “despojar os últimos restos do radicalismo burguês e voar com as suas próprias asas” (p.78).
Na medida em que a Internacional tomava consciência de si, a ideia dos conselhos operários ia ganhando contornos cada vez mais nítidos entre seus aderentes. De congresso em congresso, essa ideia aparecia aqui e acolá. Mas, sem sombra de dúvidas, ela só foi precisada e desenvolvida com a clareza que lhe era necessária no Congresso da Basiléia, no ano de 1869. De acordo com Rocker, foi no congresso em questão que o anarquista belga Eugins Hins teria discutido pela primeira vez as tarefas presentes e futuras das organizações sindicais no que concerne à realização do socialismo. Em sua moção, Hins sustentava que, da organização surgida para a defesa do trabalho contra o capital, nascerá “a administração política das comunas”, onde “os conselhos das organizações de ofícios e indústrias substituirão o governo atual e a representação do trabalho substituirá de uma vez por todas os velhos sistemas políticos do passado”. (p.80)
Segundo Rocker, tal premissa teria surgido da compreensão de que existe uma íntima relação entre os fatores econômicos e políticos que compõem a vida social. Como se acreditava que, com a vinda do socialismo, a era da exploração do ser humano pelo ser humano teria findado, a dominação do ser humano pelo ser humano também deveria sê-lo. Logo, a materialização da sociedade socialista demandaria não apenas uma nova forma de expressão econômica, mas também, e, sobretudo, uma nova forma de expressão política, pois ela só seria realizável no âmbito desta última. “Essa nova forma”, pensava ele, “poderia ser encontrada no sistema de conselhos”(p.80).
Como estavam conscientes de que a sua tarefa era se apoderar dos meios de produção econômica, acreditavam não ter necessidade de organizar um partido político e tomar o poder do Estado, mesmo que este último tivesse o nome de proletário. Para Rocker, o princípio sainti-simoniano de que o governo dos homens deveria dar lugar à administração das coisas era a pedra de toque identitária da filosofia internacionalista.
Todavia, apenas as seções espanhola, italiana e francesa, que se encontravam sob a influência das ideias de Bakunin, aderiram e, portanto, defenderam a proposta conselhista. Em virtude disso, tiveram irrevogavelmente de se bater contra Marx, Engels e os demais representantes do Conselho Geral, que ficava situado em Londres. Ao contrário dos anarquistas, os marxistas acreditavam que era a ditadura do proletariado, sob a direção do partido de vanguarda, a quem caberia a incumbência de reconstituir a sociedade num sentido socialista.
Segundo o anarquista alemão, Marx teria herdado essa teoria dos jacobinos e outros intelectuais vinculados à burguesia radical. A título de exemplo, cita o livro “O Manifesto Comunista” escrito por Marx, em parceria com Engels, no qual a ideia de ditadura do proletariado aparece como sinônimo da tomada do poder do Estado por um partido político, que existiria até que os conflitos entre as classes desaparecessem completamente.
Como o despotismo do método corresponde ao despotismo da ação, não demorou muito para Marx conseguisse expulsar os anarquistas da Internacional. Foi justamente o que aconteceu no Congresso de Haia, em 1872, no qual Marx conseguiu, através da manipulação dos votos, obter a maioria necessária para expulsar Bakunin, Guillaume e outros anarquistas, neutralizando desse modo a influência deles sobre o movimento operário europeu. Após o fim da Internacional, que, depois de transferida para Nova York, perdeu qualquer relevância política, o conselhismo foi praticamente esquecido.
Somente em algumas décadas posteriores, com o surgimento do sindicalismo revolucionário francês (profundamente impregnado pelo anarquismo), tal situação haveria de se alterar. Como indica Rocker, a atividade dos anarquistas Fernand Pelloutier, Emile Pouget e George Yvetot junto ao movimento operário no período de 1900 a 1907, assumiu uma importância central para a retomada e reatualização da teoria e prática conselhista.
Resguardadas as devidas diferenças históricas, o nosso autor conclui que foi essa mesma ideia que serviu de inspiração para os operários e camponeses russos nos primórdios da Revolução de 1917, até que ela fosse totalmente subordinada e substituída pela ditadura do proletariado.
Refletindo sobre as causas que levaram a experiência socialista na Rússia ao seu malogro, Rocker sustenta que, para além do pouco desenvolvimento industrial, do isolamento frente às outras nações capitalistas e do avanço da reação burguesa, existe outro fator que, a despeito da sua profunda importância, fora mencionado apenas superficialmente nas análises até então promovidas: a união entre os conselhos e a ditadura.
De acordo com o anarquista, esse casamento, já destinado ao divórcio, não podia “engendrar outra coisa senão a desesperadora monstruosidade que é a comissariocracia bolchevique”. Para Rocker não podia ser de outro modo, pois o sistema dos conselhos não suporta qualquer ditadura. “Nele se encarnam a vontade da base, a energia criadora dum povo, enquanto na ditadura reinam a coação de cima e a cega submissão aos esquemas de espírito de um diktat” (p.77).
Consistente com o que havia colocado Kropotkin em sua “Carta aos Trabalhadores do Ocidente”, Rocker acredita que na Rússia os socialistas estavam “aprendendo como não se deve implantar o comunismo”. Nesse sentido, contra-argumentava que a teoria de Lênin a respeito da necessidade de um regime ditatorial no período de transição até o desaparecimento da sociedade de classes era um grande equívoco. Pois, embora a ditadura pudesse destruir uma sociedade, jamais poderia ser útil para criar outra. Isso só os conselhos, com seu aspecto construtivo, poderiam fazer.
Antevendo as críticas que poderia receber, Rocker afirma que a hipótese segundo a qual a ditadura do proletariado constitui um caso à parte, por se tratar da ditadura de uma classe, não merece nem sequer refutação, pois não passa de um sofisma para enganar tolos. “É inconcebível”, afirmava ele, “falar em ditadura de uma classe, visto que se trata sempre, no final das contas, de um certo partido, que se pretende falar em nome da classe”(p.90).
Para além da substituição dos conselhos livres por órgãos estatais, a ditadura bolchevique deu início a um processo de perseguição a todos os revolucionários não comunistas, que ironicamente eram, em sua quase totalidade, defensores do sistema de conselhos. Se antes esses eram a glória da revolução, agora não passavam de traidores a serviço do capitalismo internacional.
“Dessa suficiência autoritária de um pequeno grupo que busca encobrir sua sede de poder” (p.46) resultou a destruição da comuna autogestionária na Ucrânia em 1918; a repressão aos marinheiros de Kronsdat em 1921 e o encarceramento e assassinato de anarquistas, sindicalistas, socialistas revolucionários ou de qualquer outra corrente da esquerda que ousasse reivindicar o fim da comissariocracia do partido e uma maior atuação dos conselhos na construção do socialismo.
Após o findar do período do “Comunismo de Guerra”, os conselhos já se encontravam totalmente destituídos da sua autonomia e completamente privados dos seus autênticos defensores. Segundo Rocker, esse foi o primeiro passo para que a guinada da política de Lênin rumo à direita se realizasse por inteiro. “Pois, com a implementação da Nova Economia Política surgiu a crença de que seria preciso “fazer com que o capitalismo fosse dirigido nas águas do capitalismo de Estado”, já que “o socialismo só poderia se desenvolver a partir deste” (p.454).
Comparando a Revolução Francesa com a Revolução Russa, Rocker lembra com propriedade que a política de Robespierre conduziu a França à ditadura militar de Napoleão Bonaparte. “Mas” questiona Rocker “ a que abismo a política de Lênin e seus camaradas conduzirá a Rússia?” (p.39). Embora nosso autor não pudesse ainda responder essa pergunta, haja vista que o seu livro havia sido escrito no calor no dos acontecimentos, ele pressentia com uma intuição quase certeira que esse abismo não poderia ser outro senão o totalitarismo estalinista.
Para concluir esta resenha gostaria de me ater a dois aspectos do livro de Rocker: o historiográfico e o político. O primeiro está relacionado ao fato que graças a livros como o de Rocker, a historiografia pode ir além da interpretação dada pelos partidos políticos que se pretendiam os donos da verdade científica e, com isso, mostrar o outro lado da Revolução Russa: a atuação dos conselhos operários. O segundo se vincula a constatação de que, assim como aconteceu na Revolução Russa, hoje em dia a esperança de mudar o mundo não pode vir de cima, por meio do Estado, até mesmo por que esse se mostra incapaz de fazê-lo. Essa esperança deve vir de baixo, através das próprias organizações que os movimentos sociais contemporâneos têm demonstrado poder criar.
Sob este duplo aspecto, o livro “Os Sovietes Traídos pelos Bolcheviques” permanece extremamente atual.