Por Vitor Hugo Rosa
A pesquisa Global Digital Statshot, de 2019, feita pelas empresas americanas de dados Hootsuite e We Are Social, afirma que 3,5 bilhões de pessoas possuem cadastros em alguma rede social. Isso é quase metade das 7,8 bilhões de pessoas do planeta. Num mundo cada vez mais digital, assuntos como a segurança e a privacidade dos usuários na internet vêm ganhando espaço. Recentemente a mídia tem noticiado alguns escândalos envolvendo esse tema.
A preocupação com a privacidade digital se dá principalmente pela quantidade absurda de informações pessoais que as empresas recolhem dos usuários de seus serviços. Ainda de acordo com a pesquisa Global Digital Statshot, a maior parte dos usuários de redes sociais está nos sites controlados por Mark Zuckerberg: Instagram e Facebook. Outra ferramenta extremamente popular e que também pertence ao grupo do Facebook é o Whatsapp, que conta com mais de 2 bilhões de usuários no mundo inteiro e mais de 120 milhões no Brasil.
Outra empresa que está completamente emaranhada na vida digital das pessoas é a Google. Mais de 1 bilhão de usuários ao redor do mundo utiliza o sistema operacional móvel da empresa, o Android. Além do mecanismo de buscas da gigante, que é o mais popular do planeta. Entre outras empresas que têm seus produtos usados por uma parcela muito grande da população podemos citar a Microsoft e a Apple.
Essas empresas, através de seus serviços, dispõem de uma quantidade absurda de informações coletadas de uma quantidade absurda de usuários. Elas sabem sua localização, onde você foi, a que horas você dorme, seus hábitos noturnos, suas preferências políticas e de compra, entre outras tantas informações.
Aí você pode dizer: “não vejo problema nenhum nisso, não tenho nada a esconder”. A questão é que essas empresas não estão interessadas necessariamente no que você tem a esconder. Não é como se elas vasculhassem seu smartphone em busca de alguma foto comprometedora. Essas informações são usadas, em teoria, para proporcionar uma experiência personalizada a cada usuário. Assim, você consegue ver anúncios de produtos que te interessam e não de um produto aleatório, por exemplo. Acontece que esses dados, supostamente mantidos apenas pela empresa, podem, em alguns casos, ser usados para definir uma eleição presidencial, como foi o caso da eleição do ex-presidente Donald Trump, nos EUA. Usando os dados dos usuários para criar uma série de perfis de personalidade, eles conseguem exibir anúncios certeiros de acordo com a preferência política de cada um.
Ainda que esses casos possam ser isolados, e se você ainda não se preocupa tanto com esse ponto, ao menos a meu ver, uma quantidade pequena de empresas gigantes, tendo acesso a inúmeros dados de bilhões de pessoas, não me parece uma ideia muito segura. A sensação que tenho é de que estamos lidando com uma bomba relógio.
Se você ainda não se preocupa com essa situação, talvez você se preocupe com uma coisa: você não possui alternativas. Praticamente não há como você continuar usando a internet sem que seus dados sejam usados por essas empresas. Na verdade, existe uma série de alternativas a esses serviços, como softwares de código aberto, que garantem uma maior privacidade aos usuários. Inclusive, existe o Movimento Software Livre, criado por Richard Stallman em 1983 com o lançamento do Projeto GNU [1]. Porém, essas alternativas nem se comparam, em termos de popularidade, com os produtos das gigantes empresas. Além do mais, a parcela da população que tem acesso a essas informações e que tem domínio tecnológico suficiente para procurar uma alternativa é extremamente baixa. Então, ficar limitado a escolher se vai ter suas informações expropriadas por empresa A ou B não me parece realmente uma escolha no final das contas.
A dependência nessas ferramentas vai muito além. Uma pesquisa realizada em 2019 pela Hibou mostrou, entre outras coisas, que 91% dos brasileiros não conseguem ficar longe do celular por mais de 1 hora. 60% dos entrevistados afirmaram que perdem a noção do tempo vendo posts e vídeos no celular. A dependência nas redes sociais é literalmente um vício. Denise De Micheli, chefe da disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas (Dimesad) do departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) defende a inclusão do Transtorno de Dependência de Internet (TDI) na listagem oficial do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM-6), da Associação Americana de Psiquiatria. Um estudo realizado por ela mostrou, por exemplo, que 60% dos jovens que participaram do estudo mencionaram achar que a vida é muito chata e sem graça sem internet. Além disso, 68% mencionaram ficar irritados quando não podem usar as mídias e/ou acessar internet; 65% mencionaram resistir ao sono ou dormir pouco para continuar conectados; e 82% se preocupam com o que pode estar acontecendo nas redes sociais enquanto estão ausentes. As consequências psicológicas e físicas negativas que isso acarreta são óbvias.
As tecnologias e as redes sociais causam uma dependência nos usuários. Assim como em todo vício, o indivíduo afetado tem por padrão achar que não existe problema com esses excessos. As empresas sabem disso e estimulam esse vício, afinal, quanto mais tempo o usuário passa utilizando seu serviço, mais lucro a empresa tem. Se realmente tempo é dinheiro, seus dados também são, e certamente é a moeda mais valorizada atualmente. Essas empresas não cobram do usuário pelos seus serviços porque os produtos delas são justamente os usuários.
Agora, o que me deixa ainda mais preocupado é ver que praticamente não existe discussão sobre o assunto no campo da esquerda. Na maioria das vezes que vemos sobre qualquer assunto relacionado à privacidade, à segurança na internet e ao compartilhamento de dados, esses assuntos são discutidos por liberais, ou ao menos por pessoas que não são de esquerda. Esse assunto é muito difundido por esse meio, já que os liberais pregam a liberdade individual, o direito de escolha etc. Outro fator é que o acesso a esse tipo de informação e os conhecimentos relacionados à informática e a esse tipo de tecnologia são, em sua maioria, condicionados às classes média e alta. Quando o assunto é discutido por essas pessoas, geralmente a discussão vai até aí. Porém, vendo de uma perspectiva progressista, há outros pontos que devem ser levados em consideração.
Além da dependência psicológica pelas redes sociais, uma grande parte da população apresenta uma dependência econômica. Ainda mais em tempos de isolamento social, as redes sociais e os aplicativos de comunicação são usados por diversos trabalhadores, para, por exemplo, fazer vendas. Não me parece nem um pouco estratégico dizer a uma pessoa que depende das redes sociais para ganhar seu pão, que exclua suas contas no Instagram, no Facebook e no Whatsapp.
Claro que um recorte geográfico, social e econômico deve ser feito. Segundo a pesquisa TIC Domicílios, do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), o número de usuários de internet no Brasil em 2019 chegou a 134 milhões, ou 74% da população acima de 10 anos de idade, com 71% dos domicílios com acesso à rede. Porém na região nordeste, apenas 65% dos domicílios possuem acesso à internet. Portanto, podemos notar que o uso das tecnologias difere muito, seja entre classes sociais, seja entre regiões do país.
Os problemas de segurança, privacidade e dependência relacionados às tecnologias digitais são recentes. O estudo “Google Consumer Barometer”, divulgado no início de 2017, mostra que, em 2012, apenas 14% da população brasileira possuía smartphones. Em 2016, esse percentual atingiu 62%, um crescimento de quase 450% em cinco anos. Ou seja, apesar de recente, o crescimento foi muito acelerado. Nesse pouco tempo, o aumento da perspicácia das grandes empresas se deu muito rapidamente, enquanto nossa capacidade de identificação, de debate e de resposta ao problema se dá em velocidade lenta. Pode ser que a visibilidade dessa situação só cresça daqui uns anos, porém seria muito mais interessante que agíssemos sobre o assunto o quanto antes.
Como dito acima, esse tema é mais debatido por pessoas que não são de esquerda. Quando debatido por pessoas da esquerda, temos um problema a mais. Os proprietários dessas grandes empresas, e por consequência dos seus dados, são os capitalistas. Esses burgueses são exatamente a classe inimiga da esquerda, principalmente da esquerda revolucionária. Ou seja, temos o adversário com os olhos em nós 24 horas por dia.
Ainda relacionado a esse tema, temos um debate que movimenta os ambientes virtuais nos últimos tempos: a limitação da “militância” às redes sociais. Além das dependências já citadas acima, é muito perigoso que os movimentos sociais fiquem limitados à internet. Tanto porque, acredito eu, essa “web-militância” não tem a capacidade de mudar concretamente nossa realidade, quanto porque, ficando limitados às redes sociais, os movimentos sociais podem ser mais facilmente suprimidos e/ou censurados.
As redes sociais podem configurar uma importante ferramenta de divulgação e propaganda dos movimentos sociais. Porém, não podemos nos manter dependentes dessas ferramentas. Devemos lutar para ter independência sobre nossas ferramentas de luta, para ter direito a escolher se desejamos ou não compartilhar nossos dados e para que não sejamos escravizados psicologicamente pelos instrumentos dos opressores.
Nota
[1] A filosofia do movimento é que a utilização de computadores não deve levar as pessoas a serem impedidas de cooperar umas com as outras. Na prática, isso significa rejeitar “software proprietário”, que impõe tais restrições, e promover o software livre, com o objetivo final de todos serem libertados “no ciberespaço”. Software livre é o software que concede liberdade ao usuário para executar, acessar e modificar o código-fonte, e redistribuir cópias com ou sem modificações. O software proprietário, privativo ou não livre, é um software para computadores que é licenciado com direitos exclusivos para o produtor. Conforme o local de distribuição do software, este pode ser abrangido por patentes, direitos de autor assim como limitações para a sua exportação e uso em países terceiros. Seu uso, redistribuição ou modificação é proibido, ou requer que você peça permissão, ou é restrito de tal forma que você não possa efetivamente fazê-lo livremente.